O OCIDENTE EM QUESTÃO
O Conflito no Médio Oriente
Por João de Almeida Santos
![FCO 308 - Israel Travel Advice [WEB] Ed4](https://joaodealmeidasantos.com/wp-content/uploads/2023/10/jas_israel_1jpg.jpg?w=584)
“S/Título”. JAS. 10-2023
O CONFLITO Israel-Palestina ganhou subitamente a atenção mundial, sobrepondo-se à devastadora e ilegítima guerra entre a Rússia e a Ucrânia, depois do acto de guerra do Hamas contra Israel e do sangrento massacre de populações israelianas, a que se seguiu uma violenta e mortífera resposta de Israel sobre a Faixa de Gaza. Se o objectivo do Hamas era esse, a guerra, conseguiu-o. Não se tratou de um acidente de percurso. Creio mesmo que este ataque bélico se inscreve num mais amplo movimento político mundial em curso.
1.
Tratou-se, de facto, de um inopinado acto de guerra. Um desafio bélico e sangrento ao poderoso Estado de Israel. E, como era previsível, Israel não deu a outra face e respondeu, atacando o Hamas na Faixa de Gaza e provocando inúmeras mortes na população civil. Danos colaterais inevitáveis pois o Hamas encontra-se confundido com a população civil, um autêntico escudo humano. Danos que, de resto, também aconteceram com o ataque, com milhares de rockets e mísseis, de sete de Outubro, mas a que se juntou, desejado e executado a frio, o enorme e cruel massacre de inocentes israelianos. E esta é uma diferença que tem de ser sublinhada. O mísseis mataram inocentes, de um lado e do outro, mas aqui foi uma matança individualizada, preparada e executada a frio, olhos nos olhos.
2.
Tratou-se de uma acção longamente programada e, portanto, de uma acção consciente e impiedosa, sabendo que o inimigo responderia de forma violenta. Estamos, pois, perante uma guerra desejada e racionalmente programada pelo Hamas.
3.
Esta crise é muito complexa e tem um historial de violência longo e difícil de compreender e resolver. Não se trata de reivindicar tradições territoriais milenares ou de saber quem tem mais direito a ocupar territórios, desde tempos imemoriais. E também nunca será demais lembrar as tentativas bélicas, promovidas por vários Estados árabes, de aniquilar o Estado de Israel, logo desde 1948. A história é conhecida. E a definição territorial está há muito definida: Israel, Faixa de Gaza, Cisjordânia. É aqui que se centra o problema, que reside no estabelecimento, ou não, de dois Estados nos actuais territórios tal como estabelecido pela ONU, em 1947. Pelo meio, há o problema dos colonatos com centenas de milhares de israelianos a ocupar o território da Cisjordânia, espaço de um suposto Estado governado pela Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Um novo Estado e a retirada dos colonatos israelianos – eis a questão. Da Faixa de Gaza há muito, em 2005, sob a batura de Sharon, que Israel se retirou. E há muito que a ANP foi derrotada e de lá expulsa pelo Hamas (2006-2007), que a governa. Em 2017 houve, no Egipto, a assinatura de um acordo global entre o Hamas (que controla a Faixa de Gaza) e a Fatah (que controla a parte árabe da Cisjornânia) com vista à promoção de um Estado palestiniano. Solução que, de resto, em 2000, já o trabalhista Ehud Barak propusera, como veremos.
4.
Há quem ponha a hipótese de um só Estado, binacional ou federal. Coisa algo difícil pois pôr-se-ia de imediato a possibilidade de vir a acontecer rapidamente a hegemonia política israeliana ou árabe (mais provável, porque os árabes já são em maior número) com as complexas consequências que daí poderiam advir. A conquista por via eleitoral do novo Estado e a regressão para um Estado étnico. Problema que é ainda o de hoje e que é da própria democracia, onde não pode haver distinção de condição étnica entre cidadãos de um mesmo Estado. Sabe-se o que aconteceu na Faixa de Gaza em 2007 com a ANP, ou a Fatah, depois da vitória eleitoral do Hamas, em 2006. Esta é, pois, uma solução, que não tem pernas para andar. De resto, a discussão que se travou em Israel acerca da identidade hebraica e democrática do Estado foi condicionada precisamente pela ameaça de pressão demográfica árabe: daí a necessidade de assegurar uma maioria hebraica (Israele, Enciclopedia Treccani). Enquanto Israel ou o eventual futuro Estado palestiniano forem Estados étnicos e não Estados centrados numa constituição baseada nas Cartas de Princípios universais e onde se exija somente o chamado “Verfassungspatriotismus”, o “patriotismo constitucional”, para determinar a cidadania de todos, não será possível avançar nesta delicada solução. Só ela poderia garantir a convivência de duas nações num só Estado (veja-se o que a este propósito diz Tony Judt, em Quando os Factos Mudam, Lisboa, Edições 70, 2015, pág.s 132-133,162, 171). Mas, provavelmente, isso nunca acontecerá, pelas razões expostas.
5.
Há também quem considere que a existência de um Estado palestiniano, por exemplo Tony Judt, seria a melhor garantia para a estabilidade de Israel pois passaria a ter um Estado com quem estabelecer acordos de paz, e não só, acabando com o terrorismo. Mas subsiste o problema dos colonatos e de cerca de 450 mil israelianos que estão sediados na Cisjordânia (a que se juntam os de Jerusalém este), mas também a dimensão do território actualmente ocupado por Israel.
6.
Israel é governado por uma direita radical e tem problemas internos graves muito devido às políticas e às idiossincrasias de Benjamin Netanyahu e à influência dos radicais ortodoxos. Numa palavra, ao radicalismo de direita por ele (e por aqueles a quem se tem aliado) sempre representado. Os trabalhistas já não contam politicamente. Têm neste momento quatro deputados (em 120) na Knesset. E é muito claro que as forças representadas por Netanyahu, sempre activas a rasgar os acordos de Oslo, de 1993, têm gigantescas responsabilidades na evolução violenta do processo. Basta olhar um pouco para a história. De resto, foram elas que promoveram o Hamas (a política do quanto pior melhor) para enfraquecer a mais moderada ANP, com os resultados que se conhece. O objectivo foi sempre o de obstar à criação de um Estado palestiniano. É preciso lembrar que o trabalhista Ehud Barak, que, no partido trabalhista, sucedeu (1999-2003) a Shimon Peres e a Yitzhac Rabin (assassinado por um jovem fanático israeliano), viria a propor, em 2000, em Camp David, a criação de um Estado palestiniano com 73% do território da Cisjordânia (que em 25 anos evoluiria para 90%), 100% do território da Faixa de Gaza e Jerusalém Este (Capital). Arafat não aceitou nem sequer avançou com uma sua proposta (veja Marco Travaglio, “Storia d’Israele”, I-V, em “Il Fatto Quotidiano”, de 14.10 a 19.10). Creio que se se olhar com atenção para todos estes factos não será difícil ver o outro lado da questão: a responsabilidade do Likud e dos ultras na radicalização do conflito. Do outro lado, dominam os radicais, perante uma ANP politicamente muito enfraquecida. Ou seja, as orientações políticas dominantes de ambos os lados não parecem favoráveis a uma solução pacífica do conflito e do direito de ambos os povos a um Estado. Depois, ao que parece, a diáspora israeliana também exibe tradicionalmente soluções políticas mais radicais, sendo menos sensível ao problema da violência e de uma segurança estável. É o que sugere o historiador judeu Tony Judt, na obra que citei. E do outro lado ainda é pior, pois o Hamas nem sequer reconhece o Estado de Israel (apesar de nas eleições de 2006 ter aceitado o princípio de “dois povos, dois Estados”) e os seus amigos, o Hezbollah do Líbano e sobretudo o amigo regime teocrático de Teheran, são inimigos figadais de Israel. Estas companhias não ajudam em nada a uma solução pacífica pois os padres do regime iraniano beijam as mãos manchadas de sangue dos militares do Hamas (declarações do Irão posteriores ao massacre de 7 de Outubro).
7.
Como dizia Tony Judt, há um problema de fundo que obsta a uma solução pacífica do conflito. E esse problema consiste na falta de confiança recíproca, condição essencial para que possa vingar uma solução diplomática (Judt, 2015: 172). Acresce que Israel está rodeado de Estado árabes, que na segunda metade do século XX mostraram querer exterminá-lo pela guerra, mantendo ainda com eles alguma tensão, apesar dos esforços diplomáticos que levaram à normalização das relações com alguns (designadamente com o Egipto e a Jordânia, com os quais mantém relações diplomáticas). Depois, é a própria situação interna de Israel que não ajuda, tendo em conta a sua extrema-direita e a quase inexistência de um centro-esquerda favorável à solução outrora avançada pelo partido trabalhista, numa lógica que custaria a vida a Rabin.
8.
Israel é a única democracia desta região. No território palestiniano não há eleições desde 2006, e este facto não é assunto menor. Mas também é verdade que as dificuldades da democracia israeliana, provocadas em grande parte pelos governos do actual primeiro-ministro, não têm ajudado sequer a uma estabilidade interna necessária, mesmo perante o exterior, e útil para tomar em séria consideração o problema da Palestina e da segurança regional em geral. Bem pelo contrário, a extrema-direita israeliana não se tem mostrado amiga de uma solução de paz e, pelos vistos, nem sequer de verdadeira segurança, como acaba de se verificar, preocupada que estava em prosseguir a política dos colonatos, investindo sobretudo nela a segurança e deixando desprotegida a fronteira com Gaza. E o que, além disso, se verificava é que o Hamas já estava a passar a uma fase de guerra, depois da fase do terrorismo. E isso quer dizer alguma coisa.
9.
Há Estados interessados em agudizar a instabilidade nesta região, a começar pelo Irão, mas não é de descartar que os países que hoje declaram o Ocidente e a matriz da Civilização Ocidental como o inimigo a abater constituam uma ampla frente que favorece este tipo de intervenções. A Rússia faz parte desta frente. Na Ucrânia é também isto que está em causa. A China, de forma mais subtil e sábia, também. O Irão também. Uma parte importante dos movimentos políticos ocidentais não se revê na matriz liberal e iluminista da modernidade. Por exemplo, a nova esquerda identitária. E a extrema-esquerda clássica. Por exemplo, o PCP. E o Bloco de Esquerda. Há uma linha subtil que liga uma certa orientação de esquerda relativa à matriz moderna da civilização (a crítica feroz à democracia burguesa, ao capitalismo, ao actual capitalismo da vigilância, ao imperialismo, à globalização) aos movimentos mais radicalmente anti-ocidentais (no sentido da modernidade) que se estão a movimentar no plano nacional e no plano internacional. Por cá, basta ouvir os excessos da senhora Catarina Martins contra Israel ou ler a proposta facciosa de Resolução desta Esquerda (The Left) no Parlamento Europeu. A estes é necessário lembrar, por exemplo, que Israel, durante meio século, esteve sob ataque bélico cerrado de blocos de países árabes (Egipto, Síria, Iraque, Jordânia, por exemplo) com vista à sua destruição como Estado: 1948, 1967, 1973, 1981 (OLP), 1991 (Iraque).
10.
O iluminismo e a matriz liberal clássica da nossa civilização parecem constituir o horizonte crítico e comum em questão. É ler o filósofo inspirador de Putin, Aleksandr Dugin, para tirar todas as dúvidas. Eles, iluminismo e liberalismo, são também o adversário da extrema-direita ocidental. Trata-se aqui de uma claríssima linha de demarcação que permite separar sem grande dificuldade os dois lados em confronto nas suas inúmeras variantes. Na verdade, nem há grandes novidades.
11.
O que hoje está já no topo da agenda política internacional é esta contraposição entre o Ocidente e todos aqueles que não aceitam a sua matriz civilizacional e política, que está, sim, inscrita na famosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789. Tudo isto soa, de facto, a construção de uma alternativa ao velho bipolarismo entre democracia burguesa e socialismo de Estado, entre economia de mercado e economia de plano, contraposição outrora bem representada pelos Estados Unidos, de um lado, e pela União Soviética, do outro. Contraposição assumida pelos mesmos de sempre. Os que, criando novas terminologias, não deixam de dizer sempre o mesmo. Talvez este clima, esta atmosfera renovada, tenha animado o Hamas para uma acção bélica desta envergadura e tão intensa contra um adversário militarmente tão poderoso. Os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e Israel estão claramente do lado da matriz liberal do Ocidente (mesmo com os desvios promovidos pelo senhor Netanyahu). E até nem será muito difícil e arriscado ver no bloco hoje representado pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a que em Janeiro de 2024, sob convite da China, se juntarão a Arábia Saudita, a Argentina, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos, a Etiópia e o Irão, um novo bloco político, liderado pela China, tendente a reconstituir um novo bipolarismo substitutivo do antigo. Bem sei que é uma linha subtil com muitas nuances (por exemplo, a Índia condenou a acção do Hamas: “solidarizamos-nos com Israel”, terá dito o Primeiro-Ministro indiano – veja-se o artigo de Eva Borreguero, no “El País” de ontem, 24.10), mas é claro que se trata de uma frente crítica comum. Se quisesse simplificar (muito, mas com muitas nuances) poderia dizer que os Estados Unidos representam, para essa vasta frente, o símbolo a rejeitar.
12.
Entretanto, não se compreende o falhanço dos serviços de inteligência israelianos, a Mossad, e das suas forças armadas na prevenção de uma acção programada durante tanto tempo, ali mesmo ao lado. Já referi o desequilíbrio entre a atenção prestada à protecção dos colonatos e a prestada a sul, na fronteira com a Faixa de Gaza. E em Israel muitos já pedem a cabeça Netanyahu e dos responsáveis pela segurança de Israel. A verdade é que também ali há um problema de alternativa e de insistência no apoio eleitoral ao Likud.
13.
Alguém pode mesmo ser levado a pensar que o modo de resolver a crise por que o governo e o partido que o suporta, o Likud, estavam a passar seria o de um recrudescimento da ameaça externa (e não só aos colonatos), solução clássica sobretudo aplicada pelas ditaduras. Só que a violência e a natureza deste ataque alteraram de tal modo a situação que hoje, no meio da unidade nacional contra o Hamas, muitos já se levantam a pedir contas e reponsabilidades a Netanyahu pela tragédia. Esperemos que, de facto, haja um ajuste de contas eleitoral com esta direita, para depois de terminada a fase aguda do conflito. Israel bem precisa disso. E a Palestina também.
14.
Será muito difícil que algum dia haja negociações entre Israel e os radicais do Hamas, mas não será impossível que a Autoridade Nacional Palestiniana possa vir a ganhar importância política se ela for activa na busca de uma solução política para o conflito e sobretudo se conseguir que Israel, com um novo poder político, aceite, de uma vez por todas, a criação de um efectivo Estado palestiniano, retomando, por, exemplo, a proposta de Ehud Barak. Deste modo, a ressurreição da ANP poderá estar também nas mãos da política israeliana. Não do Likud, mas pelo menos de um (improvável) ressuscitado partido trabalhista (ainda que sob outra forma). Caberia à ANP, depois, promover a integração política das forças mais radicais, como o Hamas, o que se apresenta possível sobretudo depois de assinados os acordos do Cairo, de 2017. A definição de uma clara estratégia para a paz fica agora também, e de forma muito significativa, nas mãos de Israel. Mas o problema deste confronto alargado e multipolar de civilizações, ou de visões do mundo, persiste, parecendo estar de volta um novo bipolarismo internacional. Uma nova guerra-fria, que teria, a oriente, uma nova liderança, a da China? JAS@10-2023
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