O MODELO DE DEMOCRACIA DA DIREITA RADICAL
O Caso Italiano: "Il Premierato"
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 11-2023
PUBLIQUEI AQUI vários artigos sobre a direita radical e populista (veja, por exemplo, o artigo “A Democracia Iliberal”, publicado aqui em Dezembro de 2022), onde procurava evidenciar o modelo de democracia que ela defende: no essencial, trata-se de um decisionismo centrado no reforço político do poder executivo e no enfraquecimento e limitação dos outros poderes: do poder judicial, do poder legislativo, do poder moderador (PR) e do próprio poder mediático. Estamos, pois, perante um processo deslizante tendente a reforçar progressivamente os poderes dos líderes/chefes de governo. Exemplo: Viktor Orbán (Hungria). O pano de fundo doutrinário é constituído essencialmente pela doutrina do soberanismo e pelo anti-liberalismo. Tudo sem grande clarificação formal ou constitucional, sobretudo em relação à clássica geometria institucional da democracia representativa. Mas, na passada Sexta-Feira, dia três de Novembro, em Itália, foi aprovado pelo Conselho de Ministros (que integra os partidos Fratelli d’Italia, Lega e Forza Italia e é chefiado por Giorgia Meloni, líder do FdI*), por unanimidade, um “desenho de lei constitucional“ – já conhecido como ddl do “Premierato” – que vai no mesmo sentido, mas que torna tudo constitucionalmente mais claro. Vejamos.
A – O Presidente do Conselho de Ministros (PCM) passa a ser directamente eleito por sufrágio universal directo e, coisa que não é de somenos, através de um único boletim de voto quer para o PCM quer para as duas Câmaras (“Le votazioni per l’elezione del Presidente del Consiglio e delle Camere avvengono tramite un’unica scheda elettorale”). De sublinhar esta integração das listas para a Câmara e para o Senado na do líder candidato ao cargo de chefe do governo. É fácil compreender que se pretende hiperpersonalizar a eleição. O presidencialismo de que falava Giorgia Meloni é, afinal, o presidencialismo do PCM.
B – O Presidente da República (PR) continua a ser eleito por um colégio eleitoral e vê as suas competências totalmente pré-determinadas, retirando-lhe margem de manobra no processo de formação ou de crise do governo e de dissolução do parlamento: a) o governo apresenta-se no Parlamento para obtenção da confiança e, se não a obtiver, o PR volta a indigitar o vencedor das eleições; não a obtendo, de novo, o PR obrigatoriamente dissolve o parlamento e convoca eleições; b) em caso de demissão do PCM, o PR poderá indigitar um parlamentar eleito na lista do chefe do executivo eleito, que, todavia, terá de manter o programa que foi inicialmente aprovado pelo Parlamento (“per attuare le dichiarazioni relative all’indirizzo politico e agli impegni programmatici su cui il Governo del Presidente eletto ha ottenuto la fiducia” ); c) voltando a não haver confiança parlamentar, ou em caso de demissão ou renúncia, o PR deverá dissolver o parlamento e convocar eleições.
C – Passa a haver para o vencedor das eleições um prémio de maioria que lhe atribuirá 55% dos mandatos em ambas as câmaras (sendo necessário atingir uma percentagem mínima ou então uma segunda volta entre os dois candidatos mais votados).
É este, no essencial, o conteúdo do “desenho de lei constitucional” (também acabam os senadores vitalícios de nomeação presidencial, mantendo-se apenas os ex-PR) que deverá ser agora submetido ao Parlamento para discussão e votação, sendo necessário, para a sua aprovação, uma maioria qualificada de dois terços. Não sendo obtida esta maioria qualificada proceder-se-á a um referendo de confirmação, como já anunciado por Giorgia Meloni. É necessário sublinhar alguns aspectos muito importantes:
1. A legitimidade política do PCM sai fortemente reforçada, embora as suas competências se mantenham inalteradas.
2. Estando rigorosamente previstas e definidas, as competências do PR ficam, na prática, congeladas, limitando-se este a ser um mero notário, sem qualquer de liberdade de acção.
3. A legitimidade política do PCM, do ponto de vista da sua génese, passa a ser superior à do PR.
4. Com prémio de maioria e com soluções obrigatórias para as crises internas de governo, que se deverão circunscrever ao interior da maioria e ao programa de governo aprovado no início da legislatura, a maioria fica, ipso facto, blindada.
5. Todo este processo vem limitar não só os poderes do PR, mas também alterar a natureza do sistema representativo, que assenta no princípio do mandato não imperativo e na consequente possibilidade de livre composição de maiorias parlamentares para suporte de um governo. Com efeito, como vimos, a génese do governo já não resulta da composição parlamentar pois passa a ser determinada pela eleição directa do chefe do governo. Sendo, de facto, a maioria o corpo parlamentar (poder-se-ia até dizer o “corpo orgânico”) do chefe de governo eleito (o boletim de voto único leva-me a concluir isto), ainda por cima reforçada como maioria absoluta pelo prémio de maioria, todo o processo se centra na figura do líder e chefe do governo, subalternizando a função do PR, que deixa de ser poder moderador para passar a ser um mero notário dos actos do executivo. Mas também o mandato parlamentar resulta diminuído, ficando, neste aspecto, somente com a competência de aprovar ou rejeitar o executivo e o seu primeiro programa, deixando de lhe estar confiada, sequer em tese, a possibilidade de livre formação de uma maioria para uma solução governativa alternativa ou de promover a alteração do programa de governo. É que, em tese, cada mandato parlamentar é totalmente livre, devendo, portanto, poder exprimir-se livremente para gerar uma maioria de governo. Mas assim não é. O governo não sai da maioria parlamentar, mas sim directamente do voto para o líder do executivo. Trata-se, de algum modo, de uma solução plebiscitária e de um hiperpersonalismo político, onde a figura do líder determina todo o processo, a montante, mas também a jusante. A blindagem na formação do governo, sempre interna à maioria obtida pelo líder e candidato à chefia do governo, é prova disso. Do que se trata é, de facto, de um presidencialismo do primeiro-ministro.
6. O que aqui temos é uma desvalorização do poder representativo, como instância fundamental de intermediação, do mandato não imperativo e do poder moderador, com o consequente agigantamento do poder do executivo e da sua liderança. Deste modo, este “desenho de lei constitucional” vem dar corpo e forma à solução que até aqui vinha sendo imposta na prática, passo a passo, pela direita radical no poder. Presidencialismo do primeiro-ministro, esvaziamento do poder político do PR, mas também subtracção de um poder do parlamento: o da livre composição parlamentar para uma solução governativa ou da promoção de uma alteração do programa de governo, que fica inalterável. A solução resulta directamente do voto e não requer a expressão explícita da vontade do parlamento, mas tão-só a sua não oposição. Mas mesmo em caso de oposição nunca haverá lugar a uma qualquer alternativa política e programática – nem o presidente tem poderes para isso nem o parlamento a pode gerar pois ela dará automaticamente lugar a novas eleições. É neste sentido que falo em blindagem.
7. Giorgia Meloni foi clara a este respeito: não haverá mais lugar a práticas transformistas, a jogos de poder, a “ribaltoni”, a governos de técnicos ou a maiorias “arco-íris”. Em 75 anos a Itália teve 68 governos. E nos últimos 20 anos 12 PCM. A proposta aponta no sentido de retirar poder às instâncias de intermediação. Tudo em nome da estabilidade e da duração dos governos, mas, no fundo, tudo assente na doutrina de um decisionismo tendencialmente adverso à matriz liberal da democracia representativa.
8. Dir-se-á que o presidencialismo é equivalente a esta solução. Não é. Aqui o presidencialismo é do chefe do governo, daquele que tem o poder executivo nas mãos e apoiado por uma maioria absoluta, sendo o PR mero notário das decisões de outrem por imposição constitucional, e estando o processo de gestão do mandato obrigatoriamente confinado às fronteiras internas dessa maioria, sem possibilidade de alternativa exterior, por eventual acção do PR. Assim não sendo, a única saída é a de novas eleições. É claro que o poder de desencadear eleições fica nas mãos da maioria, já que o segundo indigitado, caso exista, em situação de crise pode renunciar, provocando-as automaticamente. Ou seja, este terá nas suas mãos o poder de dissolução do parlamento e de provocar eleições. Mas acresce que, ao contrário do presidencialismo, as câmaras são aqui eleitas em boletim de voto único, onde consta a figura do candidato a chefe do governo como polarizadora do voto. Uma amálgama que não se verifica nos regimes presidencialistas, onde as câmaras são eleitas autonomamente, precisamente para condicionar o poder presidencial, garantindo uma legitimidade própria. Pelo contrário, aqui poderá ser sempre invocado o argumento de que foi a liderança que, por efeito de arrastamento, “puxou” pelo voto nas câmaras.
9. Duas eleições numa só: PCM e parlamentares eleitos na sua lista. Um só processo, dois resultados. O boletim único encabeçado pelo candidato a PCM alude a um só corpo cuja cabeça é representada pelo líder. Neste desenho, é evidente que o parlamento é desvalorizado, surgindo como uma espécie de função orgânica do líder, e o PR também, pois não só tem uma legitimidade inferior como todas a suas competências ficam minuciosamente pré-determinadas.
10. O “desenho de lei constitucional“ de Giorgia Meloni é coerente com a doutrina que a inspira e intervém sobre a constituição nos limites do sistema representativo, fazendo lembrar a arquitectura da nossa democracia local, onde todos os poderes estão concentrados no Presidente da Câmara e onde a Assembleia Municipal exibe poderes diminutos, pois, no essencial (na minha interpretação), pode somente aprovar ou rejeitar as iniciativas do executivo que obrigatoriamente tenham de lhe ser submetidas.
11. A ser aprovada, por maioria qualificada ou por referendo, esta “mãe de todas as reformas” (Meloni) a direita passa a ter um modelo constitucional coerente com aquela que tem vindo a ser a sua prática, digamos, informal.
- Sobre Giorgia Meloni e o partido Fratelli d’Italia veja o meu artigo “Os Herdeiros de Mussolini. A Terceira Geração”, publicado aqui a 12 de Julho de 2023. JAS@11-2023

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