Artigo

O PS E A CRISE POLÍTICA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 11-2023

ESTA INESPERADA CRISE POLÍTICA, que dará lugar a novas eleições e a uma nova liderança no partido que tinha maioria absoluta no Parlamento, o PS,  já levou a algumas interpretações que introduzem novos factores disruptivos na crise. Nem falo da troca de nomes na transcrição das escutas ou da decisão do juiz de instrução relativamente à fragilidade dos indícios. Mas, falo da identificação da crise como lawfare, onde o direito substitui, “com vantagem”, as velhas “botas cardadas” para mudança de regime ou de governo. A sequência de acontecimentos com sede no Palácio de Belém pode mesmo levar a esta interpretação. Ou seja, que o comunicado da PGR tenha tido a “chancela” da Presidência. Tenho poucas dúvidas de que não tenha sido assim. Lawfare à portuguesa? Esta interpretação é muito abrangente porque inclui não só o poder judicial como os mandantes, que podem ser internos ou externos a este poder, internos ou externos ao próprio poder político ou ao poder económico. De resto, sobre este assunto já há uma vasta bibliografia que descreve minuciosamente o processo de aliança entre o poder judicial e o poder mediático para a desconstrução política do poder legítimo, aquele que resulta do mandato popular. Esta aliança foi analisada, por exemplo, por Alain Minc na obra L’ivresse démocratique (Paris, Gallimard, 1995) e em Au nom de la Loi (Paris, Gallimard, 1998). O caso de Lula da Silva é de todos nós conhecido – Lawfare. Eu próprio já aqui escrevi sobre este assunto: “Lawfare. O Direito como Arma”, em 24.12.2020 (https://joaodealmeidasantos.com/2020/11/).

1.

Com a imensidão de instrumentos de comunicação hoje disponíveis é difícil que algo possa escapar ao olhar do público e, por isso, a democracia só poderá sobreviver se respeitar rigorosamente as exigências da ética pública e mantiver um rigoroso funcionamento de controlo interno através do sistema de checks and balances. E cabe ao poder político, enquanto portador do mandato popular, garantir a efectiva separação de poderes, criando mecanismos que impeçam eficazmente a injunção ilegítima do poder político sobre o poder judicial ou a injunção ilegítima do poder judicial sobre o poder político. A separação dos poderes deve funcionar em ambos os sentidos. E não num só sentido, como parece estar a acontecer. O poder financeiro que hoje se concentra no Estado é suficiente para que este esteja permanentemente a ser condicionado pelos poderes fortes da economia e das finanças, à custa da permeabilidade dos agentes políticos à força do dinheiro, levando naturalmente a que seja inevitável e devida a intervenção do poder judicial. Mas também é evidente que cada vez mais se vai verificando uma intromissão excessiva do poder judiciário na política (conhecida com judicialização da política), rompendo a geometria da separação de poderes e promovendo até a paralisia da acção política. Esta intromissão vem sendo feita em aliança com o poder mediático, atropelando até a própria lei. O exemplo mais clamoroso é o do “segredo de justiça”. Por outro lado, algumas figuras penais são de tal ordem vagas que permitem injunções altamente problemáticas junto do poder político. Estou a pensar concretamente no crime de tráfico de influência (art. 335.º do Código Penal).

2.

A verdade é que a crise está aí e, posto isto, o que interessa é olhar para o futuro, para o que aí vem. E o que aí vem é um novo parlamento, um novo governo e novos protagonistas no centro do sistema. Uma coisa é certa: haverá uma recomposição, mais ou menos profunda, da geometria política, provavelmente com a densificação da fragmentação do sistema de partidos. Pode até vir a verificar-se que os dois principais partidos (os partidos da alternância) deixem de ter, em conjunto, mais de 50% do eleitorado (é para aí, para o limiar de 50%, que apontam as mais recentes sondagens, quando nas anteriores eleições a soma foi de 69%). O que representaria uma mudança substancial no sistema de partidos. Pode também acontecer em Portugal o que já está a acontecer noutros países, com a direita radical a crescer de forma muito significativa. Basta lembrar o que está a acontecer na Alemanha: nas sondagens disponíveis, o AfD já ultrapassou o SPD e é o segundo partido (uma das sondagens, a do Instituto Forsa, de Setembro, dá-lhe mais quatro pontos do que o SPD: 21% contra 17% do SPD e 27% da CDU/CSU, tendência que já se vem verificando há algum tempo). Na Itália, é a direita radical que governa, tendo acabado de aprovar um “desenho de lei constitucional” que eleva o poder executivo a pilar central de todo o sistema democrático (veja o meu último artigo aqui: https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/08/artigo-128/) e que poderá vir a fazer doutrina para toda a direita radical. Dois países muito importantes na União Europeia. Entre nós, o PSD parece, com esta liderança, não descolar, cada vez mais assediado politicamente pelo CHEGA, que, a crer-se nas mais recentes sondagens, já representará 16% ou 17% do eleitorado. Verifica-se um enorme défice de propostas programáticas e, quando as apresenta, mais parece que são inspiradas, ainda que em versão alternativa, nas do PS. Quase se poderia dizer que se trata do mesmo, mas com nuances diferentes. Depois, há o problema das mãos atadas de Luís Montenegro relativamente ao CHEGA, sendo quase certo que o PSD não poderá chegar ao governo do país sem o apoio deste partido. Mas prevejo que esta posição acabe por mudar. Passos Coelho aludiu (muito indirectamente) a este facto, sublinhando que “o CHEGA não é um partido antidemocrático” e que “tem toda a legitimidade de existir”. As sondagens mais recentes apontam, de facto, para um enorme crescimento eleitoral deste partido. A verdade é que quanto mais proscrito for pelos defensores do politicamente correcto mais ele cresce. É um facto, não uma opinião.

3.

Quanto ao PS, depois dos permanentes desaires a que esteve sujeito o seu governo durante esta sua curta vida de cerca de dezanove meses, está agora perante o desafio de escolher uma nova liderança e, espera-se, uma nova reconfiguração política e programática. Há muitas coisas no PS que, como se vê, não estão bem e, por isso, é necessário mudar. E mudar profundamente. A área política onde o PS se inscreve está, como se sabe, em grave crise um pouco por todo o lado e é necessário e urgente proceder a uma mudança interna e a uma viragem programática que saia do círculo vicioso da “política caritas” ou do “Estado-Caritas”. Máximo de impostos para uma política esmoler. Neste e noutros importantes dossiers o próximo líder tem de ser muito claro e convincente para os que professam a social-democracia ou o socialismo democrático de forma convicta. Por exemplo, uma atenção à vida interna do PS, pois o que parece é que o partido se encontra em estado comatoso, funcionando mais como uma enorme federação de interesses pessoais do que como uma formação portadora de uma robusta ética pública e de um projecto ideal, ético-político, transformador e de futuro – a sua verdadeira matriz. Entre tantos dossiers de enorme importância, o da política fiscal é um deles, não sendo aceitável que mais pareça uma voraz política contabilística do que uma política inscrita na justiça e na moderação fiscal, numa visão integrada que compatibilize direitos e liberdade do cidadão contribuinte com uma visão eficiente, mas não caritativa ou esmoler, do Estado social. Na verdade, o conjunto dos impostos directos e indirectos (mais taxas e multas) representa um violento saque fiscal aos cidadãos. Acresce que só pouco mais de metade dos agregados fiscais pagam IRS. Os mesmos que apostavam nos anteriores certificados de aforro e que o Ministro Medina castigou, em nome do bem estar dos bancos (veja o meu artigo sobre este assunto em “Confissões de um Aforrador” – https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/06/artigo-105/ ).  Mas até mesmo no plano da União Europeia o PS deveria promover uma visão clara acerca do sistema institucional e político – o que também não se verifica. Se me perguntarem se o PS defende uma visão funcionalista ou uma visão constitucionalista da integração política europeia, confesso que não saberei responder. São muitas as frentes que requerem clarificação por parte dos candidatos à liderança, não bastando limitar-se a falar de continuidade, de contas certas e de Estado social.  Mas também não me parece razoável que em eleições internas não se diga uma palavra sobre o partido que se quer liderar, sabendo-se que este vive graves dificuldades e problemas que se torna necessário resolver. Nas actuais circunstâncias, é fácil dizer que o que importa é o combate das legislativas, que se avizinha, tendo a próxima liderança pouco tempo para se preparar. O PS teve uma maioria absoluta e o resultado foi este. Nunca é o momento certo para resolver o que há a resolver. A verdade é que toda a legislatura revelou gravíssimos problemas internos que se repercutiram na governação. Em boa verdade, os problemas só se resolvem na raiz, a montante e não com fugas para a frente. Se não se resolverem agora, não se resolverão no futuro. Vivemos tempos de fronteira e o futuro líder terá responsabilidades acrescidas.

4.

O que digo não é de agora, pois há muito que venho reflectindo e publicando sobre estas questões. E faço-o não só pela minha própria posição política pessoal, mas também porque considero que o espaço político ocupado pelo PS é, em si, um espaço político virtuoso. E também porque reconheço as graves dificuldades por que está a passar a área política em que o PS se inscreve, designadamente nos países da União Europeia, ao mesmo tempo que vemos a direita radical crescer a olhos vistos. É por isso que o próximo líder do PS  terá grandes responsabilidades, não só no imediato, mas também para que no futuro não aconteça o que tem vindo a acontecer a muitos partidos socialistas e sociais-democratas. Julgo não ser necessário enumerá-los.

5.

Pedro Nuno Santos parte com uma clara vantagem. Que é até independente da sua radicação no aparelho partidário – é aguerrido, lutador e livre. Não se deve esquecer que provavelmente foi o único dos dirigentes em funções no actual PS que sempre falou (e com sentido de responsabilidade) sem pedir autorização ao líder. E isso é uma marca de liberdade, de personalidade e de fortes convicções. Mas não estou tão certo de que o seu desenho doutrinário e de enquadramento político esteja totalmente alinhado com as exigências de mudança que se estão a impor cada vez mais à medida que o tempo passa. Não me passou despercebida a ausência de qualquer referência programática relativa ao próprio partido no seu discurso de candidatura. E também estarei atento ao séquito que o acompanhará. O que já vi não me impressiona por aí além. Acontece que sem essa mudança não será possível travar o processo, visível à vista desarmada, de retracção do espaço político em que o PS se inscreve. Mas tenhamos esperança que a mudança venha realmente a acontecer. Jas@11-2023

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