AS ELEIÇÕES PARA SECRETÁRIO-GERAL DO PS
Manual para uma Boa Decisão
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 12-2023
SÃO TRÊS OS CANDIDATOS a Secretário-Geral do PS: Pedro Nuno Santos (PNS), José Luís Carneiro (JLC) e Daniel Adrião (DA). A campanha está no terreno junto dos militantes do partido. Desta vez não houve primárias, como seria desejável, e nem sequer foram reivindicadas, mesmo pelos que as defendem. O tempo escasseia e, de certo modo, compreende-se que seja assim. Também já são públicas as moções das candidaturas e os candidatos são suficientemente conhecidos dos militantes. E é claro que a competição essencial será entre PNS e JLC, não por qualquer razão discriminatória em relação ao outro candidato, num partido que tem a não discriminação como bandeira e valor central, mas porque no partido ambos recolhem um apoio mais significativo. O peso político dos dois é muito maior, até pelas importantes funções políticas que ambos já desempenharam.
1.
Há um aspecto crítico que deve ser sublinhado nestas eleições: todos os candidatos dão uma importância residual às questões internas do PS, colocando-se mais como candidatos a primeiro-ministro do que como candidatos a secretário-geral do PS. O que no meu modesto entendimento é um erro grosseiro que parece reforçar a ideia de que: 1) o PS é sobretudo um partido eleitoral, ou seja, um partido-veículo para o acesso ao poder de Estado e à sua vastíssima máquina, da qual se alimenta; 2) tudo está bem na sua organização interna, no seu funcionamento e até no modo como se concebe como partido de esquerda, embora a insistência de que se vive no melhor dos mundos enfraqueça mais do que enrobustece; 3) o secretário-geral se tornou essencialmente um candidato a primeiro-ministro, pouco importando o que faça ou não faça no e do partido; 4) as eleições legislativas são essencialmente eleições para primeiro-ministro e menos eleições para os representantes da nação.
2.
Ora acontece que esta é uma eleição para líder de uma grande organização e, naturalmente, o seu discurso deveria centrar-se na estratégia que pretende desenvolver para governar o partido com vista ao futuro, tendo em consideração que a área da social-democracia em que se inscreve sofre hoje um profundo desgaste que urge resolver, antes de mais intervindo sobre a sua identidade e os seus referentes sociais, sobre a sua organização e sobre a sua relação com a sociedade civil. Depois, acontece que, como partido de esquerda que é e pretende ser, o PS não deve confinar a sua identidade a partido eleitoral ou a partido-veículo, totalmente dependente do Estado, devendo promover-se, bem pelo contrário, como organismo vivo capaz de gerar dentro de si não só bons dirigentes políticos, bons critérios de selecção dos seus quadros para altas responsabilidades e uma dialéctica interna democraticamente virtuosa, mas também desenvolver uma cartografia cognitiva em linha com os desafios históricos que se lhe põem, uma relação orgânica robusta com a sociedade civil e valores civilizacionais avançados correspondentes à sua identidade enquanto partido de esquerda. O secretário-geral de um partido como o PS é antes de mais o líder de uma poderosa e vasta organização que exige dele uma atenção total, à semelhança de uma grande empresa ou de outras grandes organizações que ocupam lugares relevantes na sociedade portuguesa. Ele não pode, pois, limitar-se a olhar para a gestão do Estado, descurando a gestão do próprio partido, deixando-o entregue aos “caciques” e às “bolsas de quotas” e permitindo que se transforme numa gigantesca federação de interesses pessoais. E tem sido isto que, de algum modo, tem acontecido. Nunca me esqueço de uma afirmação de Antonio Gramsci acerca do partido político: ele é um embrião do Estado, devendo no seu interior antecipar de forma virtuosa aquela que será a futura gestão do Estado ( Quaderni del Carcere, 7, 1930-32, § (90) ). É nisto que um partido de esquerda difere de um partido de direita, mais vocacionado para gerir os poderes e os interesses instalados. Depois, ainda, as eleições legislativas não são eleições para primeiro-ministro, mas para o Parlamento, de onde, isso sim, sairá uma maioria que há-de gerar um governo. Foi esta colagem das legislativas à figura do PM que levaram Marcelo Rebelo de Sousa a convocar eleições e a não tornar possível uma solução alternativa no actual quadro parlamentar de maioria socialista. Aprofundo ainda mais. Recentemente, a senhora Giorgia Meloni propôs a eleição directa do PM (o já famoso “Premierato”), num só boletim de voto onde constassem também as opções relativamente às duas câmaras do Parlamento italiano. Puro decisionismo que colhe na tendência actual para a hiperpersonalização da política e na desvalorização da matriz originária do sistema representativo. Por isso, é necessário ter muita atenção quando se envereda por certas orientações e opções políticas.
3.
Li as três moções, com alguma fadiga, confesso, e, no total das 202 páginas (48, a de PNS, 94, a de JLC, e 60, a de DA), são escassas as páginas e as propostas dedicadas ao partido por qualquer um dos candidatos. São nove ou dez páginas no total e com vagas alusões a uma estratégia de gestão do PS no futuro. Não mais. Tudo o resto, em qualquer das moções, é dedicado a percorrer os inúmeros sectores da governação – como se já estivéssemos em plena campanha para as legislativas – com pequenas modulações ideológicas: maior ou menor intensidade nas propostas de assistência ou prestação social à cidadania, mas todas no quadro de um fortíssimo Estado Social. Discurso que, afinal, bem poderia ser desenvolvido, não nesta campanha interna, mas, sim, ao longo dos cerca de três meses de pré-campanha e campanha eleitoral. Ainda assim, e sobre estes discursos estratégicos para um futuro governo do PS, mais do que uma exaustiva lista de medidas muito marcadas por um excessivo assistencialismo estatal e por uma obsessiva ideia de sustentabilidade (palavra que já enjoa) transversal (na moção de JLC), teria sido interessante ter encontrado sobretudo opções prioritárias e selectivas, analiticamente argumentadas, em relação aos grandes problemas que nos afligem (habitação, SNS, investimento e produtividade, reorganização do aparelho de Estado, política fiscal, imigração, futuro da União Europeia, entre outros). Clarifico: nestas questões nucleares do que se trata é sobretudo de detectar a causa causans, ou a causa eficiente, a que permite construir uma efectiva solução estrutural. Por exemplo, na questão da habitação – a expansão do mercado de arrendamento (que tem efeitos decisivos também sobre o preço das casas para venda). Ou na questão do SNS – o acesso massivo e injustificado às urgências dos hospitais, que urge estancar. Mas não, o que encontramos é um vasto cardápio de medidas mais centrado numa visão assistencialista do que numa analítica reconstrutiva argumentada capaz de enfrentar com eficiência os dossiers fundamentais.
4.
Na verdade, o texto das moções que acompanha as candidaturas a secretário-geral não parece ser de grande utilidade para decidir acerca do candidato preferido. Pode ser um auxiliar, mas o conteúdo sobre o partido é absolutamente minimalista e não permite antever a natureza das respectivas lideranças. Então, em que se pode fundamentar a decisão do militante para optar por um ou por outro candidato? É claro que a opção não é dissociável do facto de o secretário-geral vir a ser o futuro candidato do PS, a referência da maioria para chefiar um governo, mas a verdade é que não é isso que aqui está em causa. O que está em causa é, sim, saber quem poderá vir a ser o melhor secretário-geral do PS, que o mesmo é perguntar quem melhor poderá conduzir o PS neste período de mudança e de grave crise da social-democracia. Há um tempo para tudo e este é tempo para falar do PS, enquanto partido. E não me parece que seja muito instrutivo dizer que os portugueses preferem este ou aquele candidato para primeiro-ministro, porque, nestas eleições, não são os portugueses que votam, mas os militantes com quotas pagas.
5.
Assim sendo, o militante, não se podendo orientar pelas (quase nulas) medidas propostas para o partido, deverá centrar-se na figura, na personalidade do futuro líder e sobre ele fazer uma reflexão que o leve a decidir. Contará o seu trajecto, a experiência política, as posições que foi assumindo ao longo da sua vida política, a qualidade das suas intervenções, a frontalidade e a clareza das suas posições perante os temas mais quentes da agenda política, a liberdade de discurso quando o PS se jogava em delicadas e polémicas decisões, a sua independência relativamente às relações de força em determinados momentos. Tudo no plano da avaliação política. Há nesta disputa mais uma forte personalização da competição eleitoral do que uma exibição de programas convincentes dirigidos à racionalidade do militante. E, como disse, a textura das moções pouco ajuda à decisão, não só pela sua extensão, mas porque não se vê a determinação de prioridades selectivas essenciais analiticamente argumentadas e em linha com o património ideal do PS, que, de resto, continua nebuloso em certos aspectos. Por exemplo, na sua relação com o património liberal clássico e com o iluminismo. Lembro, a mero título de exemplo, que as moções (nenhuma delas) não tomam na devida consideração a centralidade do cidadão-consumidor no sistema social e a necessidade de o proteger activamente do arbítrio dos oligopólios em matérias de importância vital para as suas vidas (banca, centrais de consumo, energia, operadoras de telecomunicações, etc., etc.). É um mero exemplo de uma questão que é central e que mereceria uma atenção especial na hierarquia selectiva das prioridades. Mas a verdade é que a personalização, ou mesmo a hiperpersonalização, tem determinado a evolução da política desde que a televisão entrou prepotentemente no jogo político, nos anos cinquenta do século passado. E, por isso, deverão também contar as características comportamentais e psicológicas dos candidatos, tendo em consideração a necessidade de tomar decisões duras sobre alguns dossiers e assumir posições de independência e mesmo de confronto em relação aos, recorrentemente insidiosos, poderes fortes da sociedade civil. Também, mas em menor escala, poderá contar como ajuda para a decisão uma avaliação do entourage do respectivo candidato, sendo certo que, em alguns casos, o círculo restrito dos apoiantes pode influenciar decisivamente as suas decisões ou até mesmo capturá-lo. A personalidade do líder pode dar alguma garantia acerca das escolhas, da sua liberdade, independência e autonomia de acção, que deverá ser sempre guiada, no quadro da ética pública, por um único princípio: o do interesse público ou interesse geral, que não seja excessivamente centrado numa visão caritativa da acção política e que garanta inequivocamente os direitos individuais, sem os subsumir numa visão comunitarista da vida social. Não se pode dizer, como é dito numa das moções (a de PNS, pág. 23), por exemplo, que baixar o IRS não é muito eficaz, do ponto de vista da justiça fiscal, porque a medida não atinge quase metade dos agregados portugueses (precisamente os que não pagam IRS). No mínimo, esta afirmação revela pouco respeito pelos cidadãos-contribuintes que pagam impostos directos.
6.
Tendo em consideração todas estas variáveis parece-me que o PS beneficiaria de uma liderança que se mostrasse mais em linha com as necessidades de mudança no interior do próprio partido, cujas fragilidades eu tenho aqui vindo a analisar em várias ocasiões, e de uma atitude de maior combatividade do partido perante uma larga frente de adversários que aspiram (legitimamente) a formar um bloco de governo alternativo, de direita. e que as sondagens já apresentam como bloco maioritário. Não me parece que uma linha de tacticismo e de compromisso, quer interno quer externo, e uma orientação que reduz a política a mero management, a governance ou a pura tecno-gestão dos processos sociais, condimentada com caridade católica em doses abundantes, possam indiciar um real avanço nas posições do PS relativamente a tantas fragilidades que acabaram por deixar o partido à mercê de forças externas, inclusivamente à política, e que induziram a crise que estamos a viver. É por isso mesmo que o establishment, integrado pelos partidos da alternância governativa (PS e PSD), tem vindo a perder eleitorado. Por falta de alma, por não assumirem o conflito estratégico como natural na dialéctica política, por reduzirem a política a management e a gestão ideológica dos grandes números, àquilo que um psicanalista meu amigo chama “algebrose”, e por praticarem um discurso que “dá ao público o que o público quer”, os partidos da alternância ou do bloco central têm vindo a perder quotas significativas de eleitorado um pouco por todo o lado (e já também no nosso país, a crer nas sondagens disponíveis). A situação já não era boa desde o início da maioria absoluta e piorou com as escolhas de António Costa para a constituição da equipa governativa. E o partido socialista, há que o reconhecer com frontalidade, também tem culpas na crise que se instalou a 7 de Novembro, pelo que a exibição acrítica e encomiástica do seu legado não me parece ser a melhor resposta à crise. Tendo o poder, enredou-se nele e não o soube usar, mudando o que há a mudar, no partido e no país. Por exemplo, na justiça. Na passada sexta-feira (01.12.2023), nas páginas do “Expresso”, Miguel Sousa Tavares pôs o dedo na ferida: o único poder que não conhece controlo de nenhuma espécie é o Ministério Público. Um qualquer procurador pode derrubar um governo legitimamente eleito, com maioria absoluta, baseando-se em coisa nenhuma, no momento do facto. Não é coisa nova, mas o PS nada fez, durante os governos de António Costa, no domínio da justiça, para mudar as coisas. A anterior ministra, a senhora Francisca Van Dunem, não era mais do que uma sindicalista encapotada do ministério público. E também a actual ministra nada fez.
7.
São estas as razões que me levam a apoiar e a votar em Pedro Nuno Santos e não em José Luís Carneiro (ou em Daniel Adrião). Reconheço no primeiro maior combatividade e independência, tendo mostrado nos últimos anos que nunca precisou da autorização do líder para dizer e fazer o que pensa. Fê-lo, por exemplo, nas eleições presidenciais, onde defendeu que o PS devia ter tido o seu próprio candidato. Na ocasião elogiei-o por isso. Bem sei que Daniel Adrião fez um bom serviço ao partido, candidatando-se contra António Costa e evitando um unanimismo sempre democraticamente pernicioso, mas isso não faz dele um candidato suficientemente ancorado no partido para o liderar. Conheço o percurso de José Luis Carneiro e reconheço-lhe qualidades políticas e pessoais, mas não me parece que tenha evidenciado no seu percurso independência suficiente e autonomia de pensamento e de acção. Esteve sempre colado às lideranças (primeiro a António José Seguro e, depois, a António Costa) e não me oferece garantias de que seja suficientemente ousado para mudar o que tem de ser mudado. Que me perdoe, mas é o que penso. A sua moção pouco ou nada me esclareceu (e sobretudo em matéria de partido) e o seu centrismo faz-me pensar que alinha no modelo de política que está a levar o centro-esquerda e o centro-direita a uma crise tão profunda que dá cada vez mais lugar a uma complexa fragmentação do sistema de partidos, com emergência de uma forte direita radical. Pelo contrário, o que espero de Pedro Nuno Santos é ousadia política, ruptura com a ideia de acção política por inércia e com o centrismo inócuo e asséptico e a superação da ideia de partido como organização exclusivamente eleitoral, partido-veículo totalmente dependente do Estado; o que espero é que recupere o partido como organismo vivo e que o prepare para soluções de futuro, com dirigentes à altura dos desafios; que sobre os principais problemas do país faça escolhas fundamentadas e liberte o partido (e o país) da ganga ideológica da esquerda identitária (que tanto tem alimentado a direita radical); que melhore o sistema de eleição dos dirigentes e dos candidatos para altas funções políticas; que levante o partido do estado comatoso em que se encontra e que acabe com a endogamia partidária; que recupere o desaparecido (sem que os militantes se tenham apercebido disso) jornal do partido como instrumento de debate político e de coesão ideológica, e tantas outras coisas que uma verdadeira moção estratégica deveria conter, mas que, infelizmente, não contém. A personalidade de PNS dá-me mais garantias de que o PS possa enveredar por um novo rumo capaz de iniciar um processo de superação de uma crise que não é só sua, mas, em geral, de toda a social-democracia. Compreendo que faltou tempo para um programa mais estruturado e dedicado ao partido, mas sempre poderia ter sido dito mais do que duas ou três ideias vagas que se encontram em duas páginas e meia, das 48 que a moção tem. Há um tempo para tudo e esta é a eleição do secretário-geral, não dos representantes ao parlamento nem do primeiro-ministro. Como militante com quotas pagas, é isto que espero do PS, um partido que a democracia portuguesa tem no seu ADN e de cujo destino também depende o futuro de Portugal.
