E AGORA, PEDRO?
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 12-2023
NESTAS ELEIÇÕES INTERNAS DO PS, em que participaram, com voto válido, quase 40 mil militantes, ficou demonstrado que a dinâmica de escolha entre candidaturas alternativas com peso mobiliza e dignifica a política. Os resultados espelham bem o peso interno das candidaturas. Vejamos: total de votos – 39.492; Pedro Nuno Santos – 24.219 (61,3%); José Luís Carneiro – 14.891 (37,7%); Daniel Adrião – 382 (cerca de 1%). Quanto a delegados: PNS – 909; JLC – 407; e DA – 5.
O novo secretário-geral tem, pois, total legitimidade para gerir o PS, tendo obtido a maioria absoluta dos votos e sendo certo que irá gerir o partido respeitando os equilíbrios internos. Mas a figura do secretário-geral é muito importante, considerando a actual personalização (ou mesmo hiperpersonalizaçao) da política. A minoria pronunciar-se-á nos órgãos próprios e certamente será tomada na devida consideração, sem desvirtuar, todavia, aquela que será a orientação de fundo que o secretário-geral imprimirá legitimamente ao PS. Isto para não referir a necessidade de reconstituir integralmente o, lamentavelmente, extinto jornal do partido, de se decidir em qual das duas redundantes revistas (Finisterra ou Res Publica) irá apostar ou de reconstruir um dinâmico Gabinete de Estudos. Mas sobretudo há que clarificar questões de fundo que remetem para a identidade política e ideal do próprio partido e que podem e devem inspirar o programa de governo. Vejamos.
I.
Em artigos anteriores referi a pouca atenção dada, durante a campanha, às questões especificamente partidárias, tendo sido esmagadoras as propostas de natureza programática para um futuro programa de governo. Mas a verdade é que os programas de governo devem ter, a montante, linhas de orientação que entroncam na identidade dos partidos que os propõem, expressas, sem mediações, como ética da convicção. Esta clareza permite evitar ondulações e ambiguidades no plano programático, mas permite também saber o que, sendo assumido, mas não se inscrevendo na identidade do partido, foi objecto de negociação, de compromisso e de assunção em função de uma exigente ética da responsabilidade pública. É desta conjunção que resulta uma boa práxis política. Nenhuma delas deve ser menorizada, nem a ética da convicção nem a ética da responsabilidade pública. Lembro que se durante quatro anos a maioria de esquerda se manteve firme isso também se deveu à livre assunção e expressão pública da ética da convicção por cada partido, sempre reafirmada quando, em nome da ética da responsabilidade pública, eram adoptadas medidas que exigiram negociação e compromisso.
II.
É, pois, minha convicção de que só uma clara delimitação do que é ética da convicção e do que é ética da responsabilidade pode evitar confusões e neblina política e programática.
Assim, eu julgo que o PS, nesta nova fase da sua vida, ganharia em clarificar, antes de avançar para as concretas propostas programáticas, algumas orientações de fundo que não têm sido muito claras:
- A sua relação com o liberalismo clássico, tendo em consideração que existe há muito uma tradição conhecida como “socialismo liberal” ou “liberal-socialismo”, mas sendo claro que os partidos liberais têm assumido regularmente posições de direita, até em versão de direita radical, como acontece com o neoliberalismo. Mas o liberalismo clássico tem um significado histórico que não pode ser confundido com a prática dos partidos liberais. É disto que se trata, por exemplo, quando o Programa que emancipou a social-democracia alemã do marxismo (o Grundsatzprogramm de Bad Godesberg, de 1959) remete os valores centrais do socialismo democrático para a filosofia clássica (além do humanismo e da ética cristã) e para o binómio liberdade-justiça.
- A posição crítica do PS em relação ao wokismo, ao revisionismo histórico e às políticas identitárias, sobretudo atendendo a que estas posições contrastam com a matriz universalista da nossa modernidade política e da nossa própria civilização.
- Têm acontecido no nosso país várias incursões imprudentes ou infelizes de procuradores e juízes na política com graves sequelas não só sobre o sistema, mas também sobre concretas personalidades públicas que, de uma forma ou de outra, o representavam, sofrendo, com isso, graves e irreversíveis danos reputacionais. Como pensa o PS de Pedro Nuno Santos agir para evitar que incursões desta natureza deixem de se verificar, tendo em consideração que este partido tem no seu código genético a defesa dos direitos individuais como primeira prioridade?
- É conhecida a diferença da social-democracia relativamente à economia de plano, assumindo, sem reservas, como sua a ideia de uma economia (não de uma sociedade) de mercado, regulada pelo Estado, em defesa do cidadão e do consumidor, presas fáceis dos oligopólios. Como exprime, e com que intensidade, o PS esta ideia de protecção do consumidor relativamente à prepotência dos oligopólios instalados em Portugal? Esta centralidade do consumidor já era também apontada claramente no programa de Bad Godesberg.
- É velha a discussão em torno da justiça fiscal a partir da gestão dos impostos directos, sendo certo que os impostos indirectos atingem indiscriminadamente ricos e pobres. Como pensa o PS dosear a relação entre impostos directos e impostos indirectos para uma aceitável equidade fiscal, tendo em consideração que o bolo dos impostos directos (IRS) recai somente sobre três milhões num universo de 5,4 milhões de agregados? Uma coisa é certa: não é legítimo nem justo praticar um autêntico saque fiscal em nome do Estado Social e muito menos em nome de um assistencialismo caritativo, excessivo e paralisante. A prevalência da ideia de comunidade não deve significar esmagamento dos direitos individuais e anulação das responsabilidade individuais.
- De que modo o PS pretende melhorar a eficiência do aparelho de Estado que não seja exclusivamente no plano da cobrança de impostos e de receitas?
- Que papel o PS atribui ao mercado de arrendamento como principal factor de resolução não só do problema da habitação em geral, mas também do custo excessivo das casas para venda? Na relação entre oferta pública e oferta privada para uma eficaz política de arrendamento qual considera o PS que deva ser prioritária e dominante?
- Qual é para o PS a principal causa da actual crise do SNS? A remuneração e o excesso de trabalho dos agentes das prestações do SNS ou o excesso de procura das urgências no serviço público prestado pelos hospitais, enquanto os centros de saúde se estruturam quase exclusivamente como escritórios de prestação de serviços e não como centros operativos de cuidados primários (de primeiro nível)? Que valor atribui à oferta privada para uma melhoria das prestações do serviço público de saúde?
- Pretende o PS acabar com a actual distinção entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, repondo a igualdade de tratamento dos trabalhadores do sector público e do sector privado em matéria de tempo semanal de trabalho e equidade contratual entre o público e o privado?
- Pretende o PS, no plano da ciência e da investigação científica, manter a actual política de delegação exclusiva, pela FCT, em equipas estrangeiras da avaliação dos centros de I&D e, depois, dos projectos de investigação, alienando, na prática, o próprio dever de decisão e mostrando não confiar na isenção dos avaliadores portugueses?
- Qual a posição do PS em relação à evolução institucional da União Europeia? Adopta uma posição constitucionalista (uma constituição para a União) ou uma posição funcionalista (uma lógica simplesmente intergovernamental). Na verdade, não é conhecida a posição do PS sobre esta alternativa (que já tem uma longa história, desde 1984, com a aprovação do projecto de constituição pelo PE, promovido por Altiero Spinelli). Não deveria o PS construir e divulgar uma doutrina muito clara acerca da filosofia evolutiva da União Europeia?
III.
Poderia continuar, mas creio que chega. A resposta clara a estas questões permite identificar a actual identidade do PS, fundamentando as opções programáticas que serão propostas ao eleitorado, além, naturalmente, da qualidade dos representantes que as saibam naturalmente interpretar. Não me parece que seja muito útil e significativo apresentar um volumoso e minucioso cardápio de propostas para todos os sectores em que o novo governo se verá necessariamente envolvido. Até porque o que verdadeiramente estará em causa será a escolha dos representantes e não a aprovação de um programa de governo (os representantes não levam consigo um caderno de encargos, porque não se trata de um mandato imperativo). O importante é ir ao essencial e com sólidos fundamentos, que só poderão ser realmente certificados se se inscreverem numa robusta e clara identidade ético-política do PS e forem assumidos com coragem e sem tibiezas. A clareza ajuda à decisão não só porque as propostas são mais compreensíveis, mas também porque ficam politicamente melhor identificadas. Como quer que seja, desejo sinceramente os maiores sucessos ao novo secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos. O seu sucesso será também um sucesso da nossa democracia, visto o papel central que nela desempenha o PS. JAS@12-2023
