Artigo

PS – O RECOMEÇO

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 01-2024

DUAS NOTAS prévias antes de entrar 
no tema que hoje me proponho tratar.

1. No passado fim-de-semana ocorreu o 24.º Congresso do PS, que finalizou o processo eleitoral para os novos órgãos do partido, em particular, para o novo secretário-geral. E, a este respeito, não poderia deixar de referir a atitude do semanário “Expresso” referente aos dois momentos culminantes da vida recente do maior partido político português, que não só governou o nosso país nos últimos oito anos, mas que foi também o partido que durante mais tempo governou Portugal. E a atitude resume-se simplesmente nisto: nem em relação ao Congresso do passado fim-de-semana nem no dia em que se iniciaram as votações para a eleição do novo secretário-geral este semanário, que sai precisamente à sexta-feira, ou seja, nos dias em questão, dedicou uma chamada de primeira página a qualquer destes eventos, tendo apenas, e somente no jornal do dia 15.12, incluído uma curta referência às eleições internas deste partido no interior de um dos dois artigos de primeira página dedicados a António Costa (um sobre o caso em que o PM está envolvido judicialmente e o outro sobre a hipótese de AC vir a ser candidato às europeias). No mais recente número, de cinco de Janeiro, nenhuma referência em primeira página.

O assunto não merece grandes comentários tal é a evidência da posição deste semanário sobre os princípios fundamentais do código ético por que se rege, ou deveria reger, em particular sobre o princípio da “relevância”. O que se pode concluir é que a agenda do “Expresso” não coincide com a agenda do país. Quem o compra deverá ter isto em consideração.

2. Outro facto que merece um curto comentário é a notícia, saída no dia do congresso, de que António Costa está acusado de “prevaricação”, acusação fundada no facto de João Tiago Silveira ter sido escutado a dizer que teve uma reunião de quatro horas com o PM sobre o dossier relativo ao novo regime jurídico de urbanização e edificação, ou seja, reunião no âmbito do processo legislativo, em particular do processo de simplificação legislativa (onde JTS desempenha funções como coordenador do Simplex do licenciamento). Li o que a imprensa detalhadamente noticiou sobre o assunto e ficou para mim claro que o PM está acusado de perder horas a analisar importantes dossiers da governação, acusado de “prevaricar” ao intervir no processo legislativo, ou seja, acusado de fazer o seu trabalho. Estamos, pois, no bom caminho, o de procurar beneficiados especiais na produção de leis que, como se sabe, são gerais e abstractas, beneficiando por igual todos os que se encontrarem nas mesmas condições. Que eu saiba existe um tribunal habilitado a controlar a produção legislativa, a sua conformidade com a Constituição, tribunal a que o poder judiciário sempre pode recorrer, designadamente através de um pedido de fiscalização dos diplomas pela Procuradoria-Geral da República. E este é o Tribunal Constitucional. Criminalizar no âmbito do processo legislativo parece-me realmente excessivo e intrusivo relativamente a um poder que, também ele, desfruta da separação de poderes. Para tornar ainda mais estranho o processo, acontece que a norma em causa nem sequer ficou consignada no diploma entretanto promulgado, tendo a questão sido resolvida internamente durante o recorrente processo de ajustamento dos diplomas entre a Presidência da República e o Governo. Mas, em qualquer caso, “à justiça o que é da justiça”, tenha ela ou não os olhos vendados.

I.

Posto isto, o PS teve uma campanha eleitoral muito participada (cerca de 40 mil militantes) e conduzida com elevação, embora pouco centrada sobre o próprio partido, e fez um bom Congresso. No primeiro dia, o palco ficou reservado para o secretário-geral cessante, António Costa, que teve a oportunidade de fazer um balanço geral dos oitos anos da sua governação. Os dois dias seguintes ficaram reservados, como é natural,  para o novo líder, Pedro Nuno Santos, que fez dois discursos: um, no sábado, e, o outro, no encerramento do Congresso. E confesso que fiquei bem impressionado por algo que em política tem grande importância: a coincidência entre o que o novo líder disse e o que pareceu ser a sua profunda convicção. Um discurso assertivo e sentido. Isto independentemente do conteúdo concreto das suas palavras. A imagem foi essa: convicção e valores. Depois, o clima de unidade interna por ele promovido: o elogio do antigo líder e do seu trabalho e o dos outros dois candidatos à liderança, que deram corpo à democracia e ao pluralismo internos. Uma colocação acima de eventuais clivagens que pudessem instalar-se e assomar publicamente, prejudicando a pré-campanha eleitoral para as legislativas, que já está em movimento. Depois, ainda, a preocupação em chamar ao discurso a política dos valores, recentrando o discurso naquilo que tem vindo a ser posto excessivamente em surdina. Ou seja, evidenciou a política dos valores em detrimento do habitual discurso sobre os grandes números da economia ou sobre os temas que todas as forças políticas assumem como eficaz retórica política para a conquista do consenso. Um discurso claramente orientado à esquerda, com enfoque no predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de singularidade. Do dever colectivo sobre o dever e a responsabilidade individuais. Mas também a clara assunção de que erros, sim, foram cometidos, e que é preciso corrigir, e de que muito há a fazer. Por exemplo, é necessário seleccionar os apoios em vez de os distribuir indiscriminadamente, para a todos contentar.  Outro dos erros cometidos e apontados foi o de o PS não ter apresentado candidato nas últimas eleições presidenciais, erro que, como o actual secretário-geral disse, com ele não voltará a acontecer. Depois, uma clara demarcação temporal, geracional e de liderança do PS: o ciclo de António Costa encerra-se aqui e uma nova liderança inaugurará um novo tempo político para o PS. Fez bem, pois, PNS em deixar claro que algo muda efectivamente, apesar de não ser através de rupturas. Mas isso deverá começar logo no modo de gestão do próprio partido que aspira continuar a ser hegemónico na sociedade portuguesa. Não o disse, mas espera-se que o faça, porque o PS precisa de ser reanimado na sua vida quotidiana e na sua própria organização e mobilização. A participação dos militantes nas eleições internas foi também um bom sinal e o Congresso foi outro sinal positivo. E creio mesmo que o modo como estes dois processos decorreram indicia que este partido pode muito bem ser revitalizado desde que haja vontade de o fazer. Esta declaração de PNS sobre um novo tempo político não foi, quanto a mim, circunstancial, mas de fundo, anunciando um estilo muito diferente de fazer política. A redução da política a pura táctica (que evidenciou um claro virtuosismo de António Costa) acabou, tendo sobrevindo um líder para o qual o importante é fazer, sim, e num quadro de valores enfaticamente assumido e verbalizado. E à esquerda. Programaticamente talvez António Costa tenha sido pouco eficaz e o discurso enfático de PNS sobre o fazer talvez também queira dizer isso mesmo. Decidir e fazer – ideias sublinhadas com convicção e com alma. Assim me pareceu ser a toada do discurso.

II.

Quem tem lido os meus artigos sabe que apoiei e votei no actual secretário-geral do PS. E também conhece as observações que fui fazendo sobre o partido ao longo da campanha (e não só), em artigos que aqui publiquei. E designadamente sobre os candidatos e as moções em disputa. Parece-me, pois, coerente propor, agora, uma reflexão crítica, mas propositiva, sobre o essencial, sobre a filosofia inscrita nos dois discursos que PNS fez no Congresso. E depois de ter evidenciado o que me parece ter sido positivo, cabe-me agora evidenciar o que me parece que deva ser melhorado ou mesmo corrigido no discurso do líder.

III.

Há três grandes temas sobre os quais é necessário reflectir, porque eles marcam, de facto, uma fronteira: a relação entre a comunidade e o indivíduo singular, as fronteiras da intervenção do Estado nas dinâmicas da sociedade civil e o papel do mercado nesta dinâmica e no funcionamento da economia. Os partidos socialistas sempre se afirmaram por demarcação relativamente aos defensores do maximalismo estatista e da economia de plano e aos defensores da redução do papel do Estado às funções de soberania, Estado mínimo, ou pouco mais. Foi essa posição politicamente virtuosa que sempre os tornou partidos centrais nos sistemas de partidos. Partidos que interpretaram e metabolizaram virtuosamente os avanços da democracia representativa ao longo da sua história: na passagem do Estado como garantia de segurança dos indivíduos singulares ao Estado social, inaugurado por Bismarck, nos anos oitenta do século XIX, prosseguido pela República de Weimar, nos anos vinte do século XX, aprofundado pelo famoso Relatório Beveridge, nos anos quarenta, e, finalmente, assumido pela União Europeia como “modelo social europeu”. Os partidos socialistas foram os partidos que melhor souberam interpretar e representar a evolução do Estado ao longo da história, assumindo o modelo social europeu como a solução mais virtuosa e alternativa quer à visão conservadora e mais restritiva do papel do Estado quer à visão maximalista das suas funções. E é aqui que se situa a sua principal virtude política, porque ela concilia a liberdade individual, a garantia e a afirmação dos direitos e das responsabilidades e deveres dos indivíduos singulares em face das injunções ilegítimas e excessivas do Estado na sua esfera, com a responsabilidade imperativa da comunidade perante si própria e perante os membros que a integram.

IV.

A democracia funciona politicamente segundo o princípio “um homem, um voto”, mas integra também a própria ideia de comunidade com poder de “sobredeterminação”, em questões essenciais para o bom funcionamento do sistema, sobre a esfera individual. Um delicado equilíbrio que é necessário preservar. E este equilíbrio é essencialmente aos partidos socialistas que cabe garantir. Por isso, pareceu-me excessiva a ênfase dada no segundo discurso de PNS à ideia de comunidade. Um discurso onde a matriz e a toada apontavam para excesso de comunidade e para défice de reconhecimento da centralidade que os indivíduos singulares ocupam no sistema, acabando, esta centralidade, identificada, por defeito, com individualismo egoísta e utilitarista. O indivíduo singular e a responsabilidade individual pareceram ser, no seu discurso, engolidos pela ideia de comunidade, um sufoco comunitário pouco compatível com os tempos que vivemos e com o próprio princípio da liberdade e da responsabilidade. Responsabilidade que é, sim, da comunidade, mas igualmente do indivíduo. Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, mas sim pelo que tu podes fazer por ele, disse Kennedy no seu discurso inaugural. Uma frase feliz e muito clara. E se o PS se identifica com o pensamento e a prática do seu fundador Mário Soares, então também a liberdade e, claro, a responsabilidade individuais não devem ficar na penumbra do discurso do líder. Na verdade, o excesso de comunidade conduz a uma visão organicista do sistema social, menoriza a liberdade, a responsabilidade e o sentimento do dever. E é pouco amiga da democracia representativa. Tudo é remetido para a comunidade (veja-se o meu artigo “A Culpa é do Sistema”: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/12927). O bom e o mau são da comunidade e as pulsões e utopias que movem os indivíduos singulares e os levam a construir futuro com as suas próprias mãos acabam por ser menorizadas e desvalorizadas, levando à paralisia, ao imobilismo e à falta de ambição. E a culpa, por isso, será sempre do sistema, isto é, da comunidade. Lembro o que Ferdinand Toennies e Max Weber disseram da comunidade e da diferença em relação à ideia de sociedade: uma, a comunidade, exprime identidade de afectos, subjectiva, de tradição, enquanto a outra, a sociedade, exprime uma relação de associação, uma relação de interesses motivada racionalmente, expressa em objectivos partilhados e em relações formais. O excesso de comunidade e de Estado, para além de enfatizar a dimensão orgânica e compacta das relações sociais, é, afinal, irmão gémeo do Estado mínimo, que deslaça e reduz as relações sociais à sua dimensão atomística, exterior e puramente formais. Ambas radicalizam as relações sociais a um ponto tal que arrastam a democracia para os seus níveis extremos (Estado máximo – Estado mínimo). Max Weber, em Economia e Sociedade, identifica a comunidade com os dois tipos-ideais “affektuel” e “traditional”, reservando os outros dois para a ideia de “associação”: “wertrational” e “zweckrational” (“racional em relação ao fim” e “racional em relação ao valor” – Milano, Ed. Comunità, 1980: I, 38), os dois tipos-ideais que identificam o plano de associação voluntária e racional das sociedades modernas e as distingue das comunidades orgânicas (sobretudo o tipo-ideal “zweckrational”).

V.

O PS deve, pois, mover-se com delicadeza e sensibilidade neste território societário (que também incorpora, mas supera, a própria ideia de comunidade), não só para melhor identificar as características da sociedade moderna, mas também para evitar um deslize fatal para o maximalismo e para a identificação do liberalismo clássico, que derrubou o Ancien Régime e fundou as bases da civilização moderna, com o puro individualismo utilitarista, identificando-o, sem distinções, com o neoliberalismo de inspiração hayekiana. Trata-se, afinal, de reconhecer os traços distintivos da modernidade, mas também de rejeitar o organicismo político e social como modelo prioritário da acção política.

VI.

E é daqui, deste aparente deslize ideológico para uma visão comunitarista da sociedade moderna, que resulta também uma certa aversão ao funcionamento do mercado, para onde são remetidas todas as culpas e ao qual são imputadas as falhas do sistema social. Se as culpas são do sistema, no essencial elas são do mercado. Por exemplo, na política para a habitação, onde ao mercado de arrendamento (mas também de compra e venda) são apontadas as falhas de oferta da habitação, propondo-se em alternativa (ou, pelo menos, algo mais do que um complemento) uma política do Estado como senhorio. O parque público de habitação como solução para a falha do mercado, não a criação de condições para que o mercado (na verdade, a sociedade civil) funcione. Daqui resulta também uma fiscalidade excessiva por necessidade de financiar a carga gigantesca de responsabilidades que recaem sobre a comunidade em relação ao indivíduo singular, ao qual não são, no discurso, imputadas quaisquer responsabilidades no rumo e no desfecho da sua própria vida. O excesso de assistencialismo caritativo a que temos vindo a assistir também é filho desta visão. Mas também pode daqui resultar um excesso de intervenção do Estado na economia a ponto de se aproximar perigosamente da economia de plano, como tendencialmente se pode ler no discurso, de agora ou anterior, sobre o problema da habitação. Se a selectividade é um bom princípio, porque governar é escolher, também é verdade que o Estado não se pode substituir às dinâmicas da economia real, de resto hoje globalizada, e da sociedade civil, fazendo recair as decisões fundamentais na máquina administrativa do Estado, como acontecia – mais radicalmente, claro – na economia de plano. Por isso, torna-se decisivo o método a usar pelo Estado para intervir no rumo da economia. Na verdade, para os partidos socialistas e sociais-democratas a função do Estado sempre esteve tipificada mais como função de regulação do que como função de planeamento.  Também o elogio da decisão é positivo desde que não se caia no decisionismo, pouco respeitador do equilíbrio de poderes. Com efeito, o decisionismo é hoje uma linha política estratégica dos partidos da direita radical, tendo, em Itália, Giorgia Meloni chegado a fazer aprovar, pelo Conselho de Ministros, um “desenho de lei constitucional” com a eleição directa do primeiro-ministro e a eleição dos dois ramos do parlamento no mesmo boletim de voto do candidato a Premier. O chamado “Premierato”. O triunfo e a consagração constitucional do decisionismo (do primeiro-ministro). Já uma vez tive ocasião de criticar, no meu segundo artigo como colunista do “Diário de Notícias”, nos anos oitenta, precisamente o decisionismo, naquele caso, o do secretário-geral do PSI, Bettino Craxi. Sabe-se como acabou não só o seu reinado, mas também o regime de bipartitismo imperfetto que vigorava na Itália de então.  Por isso, mais uma vez, o PS deve orientar o seu discurso e a sua prática para aquele que sempre foi o seu virtuoso espaço político, evitando recaídas num território que há muito parece ter sido superado não só por ele, mas também pelos partidos que partilham da mesma mundividência. Lembro somente, a título de exemplo, o Congresso do SPD de Bad Godesberg, em 1959, ou a reforma do Labour, iniciada por Neil Kinnock em meados dos anos oitenta, e que já fora tentada por Hugh Gaitskell nos anos cinquenta.

VII.

Eu procuro, com este artigo, apenas chamar a atenção para a compreensão e a gestão de um território muito complexo e delicado e que pode dar origem a desvios políticos muito graves, que urge evitar. Bem sei que PNS assume a tradição ideal do PS e com forte convicção, mas o que me pareceu nos discursos foi um forte deslize discursivo para a sereia comunitária como fonte de justiça social, correndo o risco de se desviar das fronteiras daquela que é a matriz do PS e, em geral, dos partidos socialistas e sociais-democratas. Em qualquer caso, e como é natural, desejo-lhe os maiores sucessos, mas também a maior atenção às questões que aqui referi e à filosofia que as inspira. Que não é matéria de somenos. JAS@01-2024

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