DEMOCRACIA – A FORMA E O CONTEÚDO
As Legislativas de 2024
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 01-2024
TENHO OUVIDO, demasiadas vezes, dizer, e pelos próprios agentes políticos, que estas eleições servem para eleger o primeiro-ministro. A toada do discurso eleitoral é esta. E até quando se tratou de eleger o líder de um importante partido político a decisão foi centrada na escolha, não do melhor candidato a líder, mas sim de qual seria o melhor candidato para aquelas funções. E agora todos os líderes afunilam o discurso na figura do primeiro-ministro. Em termos de conteúdo do discurso não há qualquer dúvida. É sobre isso que os eleitores devem decidir, mais do que escolher entre candidatos a deputados, assim reduzidos a tropa de choque do candidato a chefe do governo. Na prática, está instalado em Portugal um presidencialismo do primeiro-ministro. A reforçar esta tendência está o próprio sistema eleitoral vigente que põe os eleitores a votarem numa sigla partidária que é corporizada e interpretada pelo líder-candidato-a-PM. E até é recorrente, e generalizado, ouvir dizer que o primeiro-ministro vale mais do que o próprio partido que o candidatou, reforçando, deste modo e erradamente, a figura do líder-primeiro-ministro. Qualquer que tenha sido o líder, os partidos da alternância (governativa) sempre mantiveram um consistente núcleo duro eleitoral que lhes garantiu a formação de governo. Na verdade, o que está a acontecer é uma forte aceleração do processo de personalização ou mesmo de hiperpersonalização da política.
1.
Esta tendência não começou ontem. Ela iniciou-se com a migração do discurso político (em sentido amplo) para os ecrãs da televisão, nos anos cinquenta, nos Estados Unidos, e com a personalização da política que isso comportou. Costuma-se apontar o famoso debate, em 1960, entre os candidatos John Fitzgerald Kennedy e Richard Nixon, onde o rosto de Kennedy se impôs ao discurso de Nixon, como provaram as sondagens feitas quer ao debate televisivo (com cerca de 70 milhões de espectadores) quer à transmissão radiofónica do mesmo debate, onde a maioria foi favorável a Nixon. No discurso venceu Nixon, na imagem venceu Kennedy. Nas eleições venceu este último. Esta tendência evoluiu reforçando cada vez mais a personalização da política, sendo, por exemplo, a transformação, em 1969, do Press Office da Casa Branca em White House Office of Communications e a mudança conceptual de information para communication, um claro sinal da estratégia de valorização da imagem presidencial sobre a estratégia de informação analítica acerca da governação. Da informação às relações públicas. Depois, seguiu-se o que já era de esperar: o reverso da medalha. Remetendo o poder para a imagem pessoal do presidente também ele se tornou alvo fácil para as “campanhas sujas”, centradas na sua vida, durante as campanhas eleitorais. Até hoje.
2.
Ora o que se passou recentemente em Portugal com a queda do governo e a convocação de novas eleições alinha perfeitamente nesta tendência de extrema personalização ou mesmo hiperpersonalização da política: por um lado, uma leve suspeita judiciária sobre o primeiro-ministro não só levaria à sua demissão, mas também à convocação de eleições, não obstante houvesse uma maioria parlamentar de suporte a um novo governo. Note-se que numa democracia parlamentar como a nossa os governos saem das maiorias parlamentares, havendo mesmo, pelo menos, um caso, o inglês, em que os membros do governo, para serem nomeados, têm de ter a condição de deputados. Ora, o que aconteceu foi que o PR, à revelia da matriz do nosso sistema constitucional, identificou o resultado das eleições de 2022 com a figura do primeiro-ministro (o tal discurso de que o líder “vale mais” do que o partido de que é líder e que o gerou), rejeitando, ipso facto, outra solução suportada na mesma maioria que ganhara as eleições. Foi assim dado mais um passo para a consolidação do presidencialismo do primeiro-ministro, só faltando mesmo, e coerentemente, dar-lhe dignidade constitucional, promovendo, agora formalmente, a eleição directa do primeiro-ministro e, já agora, com as listas dos deputados incluídas, por círculo eleitoral, na mesma lista que exibiria o nome do candidato a PM.
3.
Estamos, assim, numa clara dissociação entre o que está inscrito na matriz do sistema representativo (a fórmula presidencialista inspira-se nas monarquias constitucionais) e a prática política que vem crescentemente sendo assumida pelos partidos da alternância, do establishment. Ou seja, o que se verifica é uma inversão na hierarquia dos poderes, onde o primeiro poder, o legislativo (que exprime directamente a soberania popular) cede lugar ao segundo poder, o do executivo, cuja génese e legitimidade deriva do primeiro. Este torna-se, portanto, o primeiro e decisivo poder na hierarquia dos três poderes (ou dos quatro, se o PR, o poder moderador, for considerado). Nasce assim um decisionismo centrado na figura do PM com a consequente subalternização do parlamento, da casa dos representantes. Não foi por acaso que Giorgia Meloni aprovou em Conselho de Ministros um “disegno di legge costituzionale” que prevê isto mesmo (a que chamam “premierato”), procurando instituir constitucionalmente, com isso, o que a direita radical vem tentando já em vários países, a começar pela Hungria do senhor Viktor Orbán. Precisamente um decisionismo de primeiro-ministro.
4.
De resto, o mecanismo formal é claríssimo e só não o vê quem não quer: a eleição é para os representantes e não para um PM que, numa democracia parlamentar ou num regime semipresidencial, não é eleito directamente. Stricto sensu, o primeiro-ministro é sempre nomeado (ou indigitado), não eleito. Entretanto, quanto mais se reforça o poder e a legitimidade directa do PM mais poder se subtrai ao poder legislativo, já tão subalternizado com a formação de listas fechadas e voto no símbolo do partido, em sistema proporcional, e com a imposição dos cabeças de lista nos círculos eleitorais pelas lideranças partidárias. Para não falar do monopólio de propositura detido pelos partidos políticos. Não é por acaso que muitos defendem – e eu estou entre eles – a criação de círculos uninominais, em sistema maioritário e a duas voltas, como modo de, além das tão necessárias primárias, responsabilizar (enquanto representantes da nação) os candidatos perante os eleitores que os irão votar, devolvendo-lhes, por isso mesmo, maior densidade e autoridade política, também perante as próprias lideranças. A questão é mais funda, mas esta orientação é seguramente melhor do que a que temos. Na verdade, o fundo da questão reside no activismo e na maturidade da sociedade civil, capaz de obrigar o establishment a mudar. E hoje já há instrumentos para isso. Lembro as plataformas digitais bottom-up (do tipo da moveon, da meetup ou mesmo da momentum, ligada ao Labour) e a capacidade que elas têm de influenciar fortemente o eleitorado e a cidadania. A não ser assim, a mobilização ficará a cargo da direita radical, que sabe, essa sim, mover-se no interior das brechas do sistema político e social, ganhando significativas quotas de eleitorado a ponto de já governar em vários países. E em Portugal também parece estar a desenhar-se a ruptura definitiva do bipolarismo de governo, com o forte crescimento da direita radical.
5.
Em poucas palavras, a mim parece pouco consistente esta hiperpersonalização da política nos termos a que me refiro porque tende a retirar-lhe a sua tão necessária rede orgânica e a ficar ancorada numa única pessoa, sujeita, portanto a uma excessiva volatilidade, como se viu no caso do primeiro-ministro português, António Costa. A política democrática torna-se inconsistente e extremamente volátil se não dispuser de organicidade territorial, social e política, ficando sujeita ao construtivismo ou ao subjectivismo político de um protagonista dotado de excessivo poder, o que acontece no caso de consolidação do presidencialismo executivo e decisionista do primeiro-ministro. Não é por acaso, como disse, que esta é a orientação que está a ser assumida pela direita radical. JAS@01-2024
