Artigo

ESFERA PÚBLICA, REDE E DEMOCRACIA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 01-2024

PARA QUE NÃO HAJA DÚVIDAS: trata-se, neste artigo, da questão do espaço público, daquela esfera onde corre o fluxo comunicacional acerca do que acontece na sociedade. As plataformas tradicionais eram a imprensa, a rádio e a televisão. Entretanto, juntaram-se-lhe as plataformas digitais e, em particular, os social media, as redes sociais, alterando profundamente aquilo a que Habermas chama Öffentlichkeit, palavra geralmente traduzida por esfera pública. O acesso ao espaço público ganhou assim novos canais individualizados (aquilo que Castells identifica através do conceito de mass self-communication), não regulados por códigos éticos (como, pelo contrário, acontece com os mass media) e onde o receptor é também produtor e autor de mensagens, aquilo que hoje se designa por prosumer (produtor e consumidor de informação e opinião). As grandes plataformas de comunicação digital administram, mas, no essencial, não se pronunciam sobre os conteúdos, a não ser em casos extremos, funcionando apenas como ecrãs brancos onde cada indivíduo singular “imprime” as suas mensagens escritas e audiovisuais. Rompeu-se assim, com a comunicação digital, o monopólio de acesso ao espaço publico detido pelos mass media e instaurou-se um novo paradigma de comunicação e uma nova esfera pública deliberativa. Os próprios mass media migraram para este novo espaço intermédio constituído pelas plataformas digitais. Em síntese, estamos perante uma nova esfera pública, para usar a terminologia atribuída a Habermas, desde a publicação do seu livro de 1962.

1.

Esta nova realidade tem dado azo a debates e tomadas de posição fortes, umas defendendo a natureza e a estrutura da nova esfera pública que integra a comunicação digital, outras combatendo a nova comunicação digitalizada, em particular a dos social media. A defender esta última posição estão muitos dos que perderam o monopólio do controlo e do uso das vias de acesso à esfera pública, mas a verdade é que esta nova realidade veio para ficar e está a transformar todo o processo de comunicação social pública e privada, interferindo fortemente na própria esfera pública política e nos processos de legitimação e de conquista do poder. Uma nova esfera pública com características e problemas diferentes da esfera pública tradicional, precisamente aquela a que se referia Habermas no livro de 1962. Um espaço onde opiniões públicas “qualitativamente filtradas” coexistem com uma “esfera pública” de tipo plebiscitario, com  “disrupted public spheres” que se separaram da clássica esfera pública integrada pela mediação jornalistica e onde a fronteira entre o público e o privado tende a ficar cada vez mais esbatida e nebulosa (Habermas, 2023: 64-69).

2.

O livro de Habermas, publicado em 2022 pela Suhrkamp com o título de Ein neuer Strukturwandel der Öffentlichkeit und die deliberative Politik  (mas cito a edição italiana: Habermas, J., Nuovo Mutamento della Sfera Pubblica e Politica Deliberativa, Milano, Raffaello Cortina Editore, 2023), dá-nos conta desta mudança que está a acontecer. E fá-lo de forma reflexiva e crítica, evidenciando os seus efeitos disruptivos sobre o processo de coesão e de inclusão política, no essencial apontando os aspectos negativos desta nova realidade. Para se perceber o raciocínio de Habermas é necessário, em primeiro lugar, saber que a sua mais influente obra  foi precisamente Strukturwandel der Öffentlichkeit, de 1962, concebida em linha com a natureza da comunicação social da altura, quando já estava a acontecer a queda das grandes narrativas ideológicas e quando a televisão já iniciara, nos USA, a sua marcha triunfal rumo ao controlo e domínio da comunicação política. Depois, a evolução de Habermas para a sua teoria discursiva da democracia e para a teoria da política deliberativa, ambas ancoradas num intenso racionalismo crítico. Evolução que exigia uma esfera pública ordenada e predisposta para um eficaz uso público da razão e para a argumentação socializada como meio de legitimação e de acesso ao poder. Ora, o que se verificou com o advento da comunicação via plataformas digitais foi a tendência para a fragmentação desta esfera pública, para o deslaçamento discursivo e argumentativo das comunicações e para um tendencial esbatimento das fronteiras entre comunicação pública e comunicação privada. E é aqui, neste plano, que ele vê o maior perigo, pela desqualificação da instância pública política e, consequentemente, pelo risco de dissolução da sua capacidade inclusiva. Ele considera que é necessário preservar a fronteira entre a instância privada dos direitos individuais e a instância do exercício da soberania e da afirmação dos vínculos societários colectivos. O mesmo cidadão deve agir politicamente tendo em conta estas duas instâncias. A contaminação da esfera pública com uma forte, difusa e indeterminada comunicação de natureza híbrida ou semi-pública, como é a comunicação digital das redes sociais, tende a ser desqualificá-la e a tornar a fronteira entre público e privado cada vez menos nítida, enfraquecendo os laços colectivos e, naturalmente, a política e a democracia. Não é por acaso que Habermas associa este processo à afirmação do neoliberalismo: “uma destas razões” (para a crise funcional da esfera pública política) “pode ser vista na coincidência entre a emergência de Silicon Valley, isto é, do uso comercial da rede digital, por um lado, e a difusão global do programa económico neoliberal, por outro. Uma área globalmente alargada de livres fluxos comunicativos, tornada, então, possível pela invenção da infraestrutura técnica da ‘rede’, tornou-se a imagem especular de um mercado ideal”. Por isso, ele não só considera necessária a responsabilização das plataformas digitais pelos conteúdos como também considera “um imperativo constitucional manter uma estrutura mediática que torne possível o carácter inclusivo da esfera pública e um carácter deliberativo para a formação da opinião e da vontade pública” (2023: 69-71). Habermas defende a estrutura clássica da esfera pública porque é esta que melhor se adequa ao seu modelo de democracia discursiva e deliberativa ancorada num racionalismo crítico e argumentativo como fonte de legitimação do poder.

3.

O que parece ser evidente neste livro é uma clara responsabilização da comunicação digital dos social media pela desestruturação da esfera pública política, pois é esta que garante e legitima os vínculos de comunidade imprescindíveis para que uma democracia funcione, na “sociedade dos media”, de forma racional e intersubjectiva (2023: 57), garantindo ao mesmo tempo os direitos subjectivos àquele que Habermas chama Gesellschaftsbuerger, cidadão da sociedade, mas garantindo também a sua condição de Staatsbuerger, de cidadão do Estado (2023: 96). A tendência centrífuga inaugurada pela rede prejudica, segundo Habermas, a função integrativa e legitimadora da esfera pública e abre caminho ao deslaçamento político da democracia e à emergência de um plebiscitarismo digital pouco compatível com a matriz liberal da democracia representativa. Tendência que favorece e alimenta as visões populistas, que navegam à vontade nessa zona cinzenta e sem fronteiras entre o público e o privado e onde cada um pode colonizar livre e perigosamente o outro.

4.

A posição de Habermas é clara e tem algum sentido, sobretudo se a entendermos no quadro da sua concepção discursiva da democracia e do racionalismo crítico que o inspira. O que, no meu entendimento, ele não valoriza suficientemente é o potencial de libertação da cidadania em relação ao monopólio de controlo do acesso à esfera pública das tradicionais plataformas de comunicação (mass media), muito em particular quando elas se comportam como a outra face do poder, mesmo que seja o legítimo poder democrático. Mas, referindo a emergência de uma dimensão autoral do cidadão, enquanto produtor de informação e de opinião, autêntico prosumer, Habermas não a valoriza suficientemente porque, no seu entendimento, não é garantida por reconhecidas competências institucionais e expressos códigos éticos partilhados, como, pelo contrário, acontece com o jornalismo e com os media tradicionais. Na verdade, o que acontece, a par de fake news e de exibicionismo de massas e de mau gosto, é que outros protagonistas com créditos firmados na sociedade civil se podem afirmar na esfera pública digital, independentemente da autorização dos famosos gatekeepers, mantendo, entretanto, padrões de garantia ética e de competência intelectual superiores aos dos encartados jornalistas e dos consagrados meios de comunicação. O que ele não vê, pois, é o potencial de libertação que a expansão digital da esfera pública pode trazer consigo, ainda que ele possa contaminar a linearidade e a aparente racionalidade discursiva e argumentativa da esfera pública mediática.

5.

Claro, é um universo onde, para o bem e para o mal, o real é replicado e por isso é muito mais complexo e desregulado do que o mundo concentrado dos mass media. Mas, por isso mesmo, é também um universo mais rico, mais variado e até mais exigente, porque tem de ser filtrado com as competências cognitivas que cada um tem, seja ele o “cidadão do Estado” ou o “cidadão da sociedade”, sem as delegar comodamente nos profissionais da comunicação, tantas, demasiadas, vezes meras câmaras de eco dos poderes instalados. Por outro lado, o alargamento do espectro da esfera pública corresponde ao alargamento da própria esfera da deliberação pública e política exigindo maior atenção aos fluxos que correm livres na área deste enorme espaço intermédio, que funciona no intervalo entre a esfera privada e a esfera pública política, integrando funcionalmente ambas as esferas, precisamente como aquele cidadão que Habermas designou através dos conceitos de Gesellschaftsbuerger e Staatsbuerger, um mesmo indivíduo com duas dimensões essenciais em si, a pública e a privada. Diz Habermas: “A comunicação pública constitui o nexo necessário entre a autonomia política do indivíduo e a formação da vontade política comum de todos os cidadãos” (2023: 96). Mas é precisamente “o Estado democrático constitucional” que “garante a cada cidadão de modo co-originário tanto a autonomia política como as iguais liberdades próprias de um sujeito de direito privado” (2023: 96).

6.

Claro, trata-se uma realidade nova e que exige novos e sofisticados meios de gestão e controlo, por exemplo, um novo constitucionalismo digital, até porque as grandes plataformas digitais já estão a intervir com intuitos comerciais, chegando mesmo a transformar os clientes em matéria bruta para a sua transformação em produtos preditivos do comportamento para a economia e para a própria política. E, todavia, o potencial da nova esfera pública é enorme, quer em sentido negativo quer em sentido positivo. O que não é aceitável é ver só um dos dois lados da questão. Mesmo que seja em nome do racionalismo crítico. JAS@01-2024

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