Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (V)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

Jas_AutoR2022

“S/Título”. JAS. 02-2024

A POESIA E O SILÊNCIO

NO SILÊNCIO encontramo-nos com nós próprios. E também é o momento de interpretar o silêncio dos outros, se lhe atribuirmos importância e significado. Mas a verdade é que nos tempos que correm anda no ar um imenso ruído, chovem palavras vindas de todo o lado. As palavras à procura de quem as queira interpretar ou apenas de quem as queira ouvir ou ver. “Bavardage”, dizem os franceses. Tagarelice, dizemos nós.  E é aqui que ganha mais sentido o silêncio, a vontade de permanecer em silêncio. Às vezes até me apetece fazer um silêncio ruidoso para que o outro seja obrigado a interpretá-lo. E a valorizá-lo. E entre em diálogo comigo. Com sinais. Apenas sinais. E a poesia é a linguagem que está mais próxima do silêncio. Diz muito com pouco. É como a linguagem de sinais. É um falar sem aparente destinatário (mesmo quando o tem e até é verbalmente explícito) ou uma conversa com nós mesmos. Um desabafo cifrado. Um suspiro. Um murmúrio quase inaudível. Como água que brota da fonte. Um som leve. E pressente-se, o silêncio. Quando diz algo. E às vezes nem se tem a certeza de que seja mesmo silêncio. Ou que seja simplesmente ausência sem significado. Mas a verdade é que, às vezes, o silêncio é doloroso. E muitas vezes é usado como castigo. Ou até como vingança. Destruo todas as pontes por onde possa passar uma qualquer forma de comunicação. Chega a parecer terrorismo. Outras é pura indiferença… não intencional. Simples diferença. Desconhecimento sem significado porque não pode ser referido a alguém. No silêncio, podemos ouvir muitas vozes, em parte já confundidas com a nossa fantasia. Vamos à procura do melhor que encontrámos na vida e colocamo-nos em levitação, com palavras, com traços e cores, com notas musicais, com o corpo em movimento… com poesia. Chamar o tempo até à nossa fantasia e recriá-lo com prazer, ao limite da beleza que tivermos connosco e à qual consigamos dar forma. Sinto necessidade permanente de escrever poemas sobre o silêncio. O que significa que o silêncio me perturba, me vem perturbando, mesmo quando lhe dou forma verbal. O silêncio ressoa, sobretudo quando o ruído lá fora cresce para intensidades insuportáveis.

O SILÊNCIO E O MISTÉRIO

O silêncio é como o mistério. De certo modo, é insondável. E transforma-se com a interpretação, com a assunção subjectiva do seu aparente sentido (aos olhos de quem o ouve e sofre). O poeta procura penetrar nesse mistério com palavras em associação, semântica e sonora. Uma reconstrução do mistério, como se tivesse sido revelado (ao poeta). Uma ida à profundidade do tempo, ao passado ou à ausência. Um diálogo com o vazio que a ausência representa. O que se segue é uma tentativa de o preencher, ao vazio, com algo que possa ser considerado belo. Fazer do vazio pleno. A poesia é indissociável do silêncio e do mistério. Quando tudo é linear, directo e presente o poeta procura outras paragens mais sedutoras e densas. Não há poesia quando se é feliz. Mas pode-se ser feliz com a poesia. Um oxímoro? Não. Nela se acolhe com palavras e nas palavras o tempo que já se foi ou a presença que se tornou ausência. E dá forma ao silêncio que esse tempo traz consigo. Esse tempo é ausência irrecuperável a não ser com palavras que o recriem em forma de chamamento, de empenho, como parte do presente. O poeta como unidade expressiva do tempo (passado, presente, futuro). E assim dá a palavra ao silêncio do (daquele) que está ausente, invocando-o como algo inspirador. Sim, não somente como perda sentida e sofrida, como falta ou como fracasso, mas, sim, como algo inspirador, não como passado, mas (agora) como futuro. Um amor que já se foi, que já dói menos ou até que pode ser parte da alegria poética, revivescência, solução e parte integrante dessa unidade expressiva que se exprime na poesia. É isso. Fazer da dor remota, já menos viva, fonte de inspiração. Sim, fonte que abastece um rio de sentimento e beleza em curso e em direcção ao futuro. Isto não é lamento. Isto é alegria ou mesmo felicidade, de que esse passado ou essa ausência fazem parte. E talvez seja precisamente o silêncio que permite tudo isto, porque abre espaço para que a palavra poética se instale.

O SILÊNCIO E A MUSA

Um dia destes tive uma conversa com o magnífico Walt (o das “Folhas de Erva”) sobre o silêncio da musa, o seu vasto mar que o meu frágil barco solitário está sempre a navegar. E sabem o que me respondeu o Whitman? Que se trata de murmúrios de uma velada voz que o poeta tem de ouvir e interpretar. Mas também falou de vagas imperiosas nesse mar de murmúrios da musa. Pobre poeta que tem de (con)viver entre murmúrios indecifráveis e ondas imperiosas. Vida difícil, a dele. Não admira que esteja sempre a naufragar. Felizmente que adquiriu, por dádiva das deusas Athena e Aphrodite, o poder de levitar. Quando parece estar a afundar-se nas águas escuras e agitadas do alto mar, pode remar com a fantasia e elevar-se, levitar até à linha do horizonte. Palavras leva-as o vento e o barco ganha asas. É este o fabuloso, mas delicado e difícil, mundo do poeta, onde a musa o desafia permanentemente. As musas existem para serem abraçadas e beijadas pelos poetas, com a benção das duas deusas. Assim, é beijo seguro. Mesmo que seja bebido por fantasmas. Foi o Kafka que mo disse. E eu acreditei.

Os poetas têm diálogos sob a forma de monólogos, como quem as interpela, as musas. A verdade é que o poeta (também) faz a musa: dá-lhe vida, dá-lhe voz, interpela-a, (re)constrói-lhe o perfil, pedindo ajuda ao pintor, cobre-lhe o silêncio com palavras. Inunda-a de palavras e melodia. Sendo Erato, o seu perfil é o que o poeta traça: mistério. Porque o amor é isso. Só mistério, nada mais. É no mistério, coberto pelo silêncio, que o poeta navega. Ela não canta, não pinta, não dança – nada. É pura existência, sem definição. É isso que o desafia (ou desafiou) e o encanta. O inquieta. E como tem vida na memória do poeta, ele pode continuar sempre, “à la recherche du temps perdu”. Du visage perdu. De l’amour perdu: le poète à la recherche de ce qu’il ne trouvera jamais.

O POETA E O AMOR

Na poesia “pode o amor nem se reconstruir, porém, reconstrói-se o poeta”. Isto dizia um amigo a propósito de um poema meu (“Os Seios”). Sim. Talvez o amor persista como pulsão que tem de ter a sua vazão… neste caso pela poesia e a favor do poeta. É nesta forma de descompressão, de dar forma ao fluir pulsional que o poeta se reconstrói, se recompõe. O amor físico, esse fica lá perdido no tempo do insucesso. É coisa séria, profunda, que o obriga a falar do único modo possível. Como se o poeta se deitasse no divã do psicanalista e desse curso a associações livres, que depois são interpretadas com recurso à “tecnologia” poética. Esta leitura das associações tem exigências estéticas e assume uma forma que pode ser partilhada, embora seja uma linguagem iniciática, nem descritiva ou denotativa nem analítica. Uma das suas dimensões é a de se constituir como pauta musical que cobre, com a melodia e a rítmica, a própria semântica, que já nem é sequer explícita, linear. Exactamente: iniciática. A linguagem adequada ao mistério. Uma mensagem cifrada (dirigida a um imaginário interlocutor) em invólucro esteticamente desenhado. É neste labor e neste processo que o poeta se reconstrói. Por isso, sim, “pode nem o amor se (re)construir”, mas o poeta reconstrói-se em cada acto poético, como acto de amor, sem mais. É o processo, o percurso, que interessa, até porque nele não está inscrito o desejo de obter um concreto resultado (por exemplo, o da reaproximação do interlocutor original ou originário). Até porque sabe que isso é impossível. A poesia trabalha sobre e com o impossível.

O poeta, gosta de contar e de conter histórias na poesia. Nem que seja de fugidios, mas impressivos, instantes. No poema a que me aqui já me referi não é disso que se trata. Trata-se de uma longa história que alude à presença da figura maternal numa relação amorosa. O poema “Os Seios” simboliza isso. É um tema muito sensível, delicado e complexo, mas por isso mesmo só a linguagem poética, polissémica e metafórica, o pode tratar como deve ser tratado. Como se a própria poesia interviesse nele como sua expressão, como sua fala, sim, mas também como sua superior resolução. Ao mesmo tempo libertação e redenção, sem que a pulsão original se extinga, mantendo-se sob uma forma diferente, como pulsão amorosa, e, depois, como exaltação espiritual, na poesia. A presença no adulto da relação maternal figurada pelos e nos seios. É uma história de amor contada por um poema. Poeticamente reconfigurada. Onde a beleza é não só formal, mas também semântica. Onde a sensualidade se inscreve no mais profundo da natureza humana. É o sentido da presença dos seios no poema. Não é a explanação de uma tese ou a descrição de um estado de facto – é simplesmente um poema, um “grito” de alma poético, uma libertação, uma dupla libertação. Ou até um recomeço, uma entrada na maioridade afectiva guiada por um belo e nobre sentimento e pela exaltação da sensualidade. Na verdade, trata-se do exercício poético de fundir, através dos seios, o amor-paixão com a raiz profunda da própria maternidade matricial. É um tema delicado, mas desafiante para um tratamento poético que o envolva pela moldura da beleza. Sim, Mulher-Mãe, neste caso. O que sobrevive ao corte do cordão umbilical e subtilmente se transforma em fonte de sedução, de prazer e de amor.

A CLANDESTINIDADE DO POETA

De certo modo, todos os poemas são clandestinos. Têm uma identidade clandestina. O sujeito poético é sempre e somente poético. Fala de forma cifrada. Os poemas são obra da fantasia e, por isso, produzem ilusão poeticamente induzida. Mas não são pura ficção porque se inscrevem no “pathos” e são animados por aquilo a que o Nietzsche, na Origem da Tragédia, chamou “espírito dionisíaco”. Nascem de uma combustão, de um fogo que arde sem se ver.

ENCONTRO E DESENCONTRO

Perder-se de paixão em poesia sem o risco de desencontros – eis a questão. Mas se a poesia nasce sob o signo do desencontro, ela converte-o em encontro num patamar superior imune ao arbítrio da vontade, do interesse ou da circunstância porque as suas únicas leis são a da beleza e a da sedução. Perder-se, sim. Se não nos perdermos nunca conseguiremos reencontrar-nos. Perder-se é como sair de si para, depois, regressar mais rico, mais cheio de mundo e de maior consciência de si. O poeta só é poeta porque se perdeu. Reencontrou-se na poesia. Voilà.

DESPERDÍCIO

“Desperdício”. Fiquei a pensar nesta palavra quando uma leitora assídua da minha poesia a referiu à musa que parece inspirar o poeta. Parecia estar a dizer: “Ela não te merece, poeta!”. E não encontro resposta plausível. Mas, pensando bem, talvez encontre: desperdício por o amor só acontecer como poesia. Alguns chamam-lhe amor platónico. Eu não. Mas pergunto: se não houvesse “desperdício” teríamos poeta e poesia? Talvez não. Lembro-me sempre do passarinho do Vinícius: não há poeta, sou feliz. É a dor, não a felicidade, que faz dele “um poeta de alto nível”. É sempre necessária uma dissociação entre o poeta e o sujeito poético, para poder manter a própria condição de fingido “fingidor”. O poeta é um foragido das leis da vida. Não um desertor, porque leva a vida consigo, para dentro si, submetendo-a livremente aos seus códigos de beleza. Mas o “desperdício” parece estar escrito nas estrelas. Não depende da vontade. Sim, o poeta finge a dor (e o amor) que realmente sente, mas nunca encontra fisicamente o ser amado. Não será a poesia filha do “desperdício”? A musa diz-lhe: “Vem até mim”. Mas o poeta só pode ir no veículo poético. E, por isso, nunca lá chegará. É como Sísifo, a viagem não tem fim. A musa é como uma utopia que o atrai… chegado a ela seria o êxtase e o poeta morria. Mas nem Athena nem Aphrodite o permitem. É, sim, como a condenação de Sísifo, só que aqui a pedra é a poesia… que ele carrega nos ombros da sua atormentada alma.

O POETA E O ARBUSTO

O poeta fala para o arbusto do seu jardim encantado como se fosse uma mulher. Estranho? Às vezes os arbustos têm nomes de mulher. Vê o arbusto e sonha com uma mulher? Não sei, mas parece que sim. O jardim é ambiente idílico. E esse é o ambiente em que a sonha. É natural. Mas a mulher cultivará sempre um certo mistério, um seu lado obscuro, uma certa e espontânea frieza, acrescida de um persistente silêncio. À primeira vista, uma coisa parece não bater com a outra. Mas o ambiente em que cresce a fantasia do poeta acaba por se impor. Afinal, como sempre acontece na poesia. Mistério e desencontro, mas, depois, a harmonia e a beleza poética a imporem-se sobre a inquietação e o abandono, sobre o desconforto existencial, sobre a nostalgia e a melancolia, sobre um destino que parece estar traçado. Sobre tudo isto se eleva a poesia como veículo que transporta o poeta para regiões superiores, onde até a turbulência e as tempestades são suaves e belas. O poema tem referente? Sim, o arbusto (um loureiro). E o arbusto tem referente humano? Não sei, mas talvez tenha. E, se tiver, isso acontece nesse jardim encantado do poeta, para onde o transportou. Querem coisa mais bela do que esta, pôr beleza onde só parece haver mistério, desencontro ou até mesmo fracasso e tristeza? Envolver tudo isso em moldura idílica de formas, cores e aromas, temperados com palavras e melodia… ver beleza onde até pode haver dor é redenção. Levitação. Sim, é bom levitar e a poesia permite-nos levitar sobre a dor, levando connosco os que a partilham. Sim, tudo parece conduzir a um movimento de libertação pela palavra em pauta musical. O triunfo da leveza sobre a força gravitacional da privação sofrida, “como reação ao peso do viver”, como diria o Italo Calvino: quando a tristeza se transforma em melancolia, quando se dissolvem os últimos resíduos da opacidade corpórea (Calvino, Lezioni Americane, Milano, Garzanti, 1988, pág. 21).

A MUSA E O BEIJO

As musas, afinal, andam por toda a parte. Havendo arte também no futebol é natural que por lá também andem musas. Evadem-se da poesia e vão divertir-se a jogar futebol. Não se limitam a inspirar. Entram em jogo, em competição. O Rubiales que o diga, pois parece ter-se inspirado excessivamente numa musa, a Hermosa Erato, sem se aperceber que também ela estava em campo. Concordo: há que obedecer às musas, muito senhoras do seu nariz. Ah, sim. Não podes agarrá-las à bruta e dar-lhes beijos, mesmo que seja dia de festa. O seu poder é imenso e não há manuais de procedimento para interagir com elas. Nunca sabes como vai acabar. É como estar em alto mar com ondas altas e com um barco frágil. Deixar-se ir com elas, sem lhes resistir, para não ser esmagado por elas. Não nadar contra a corrente. O infeliz Rubiales, que não é poeta (julgo eu), foi atirado pelas ondas contra as rochas. Não se salvou. Devia ter deixado a vida correr sem se ter atirado a ela, à musa. Estatelou-se, depois de, como o Benfica, se ter inspirado nela, na musa. É coisa muito séria, esta.  Que o digam os poetas. Um poeta famoso, de seu nome Shakespeare, até estava disposto a ir para o inferno por um beijo: “aqui estou”, diria aos diabos, “mas antes eu vi o paraíso”. Cumpriu-se a profecia: por um beijo o Rubiales foi parar ao inferno. E nem teve tempo de ver o paraíso (creio). Mas há mais: onde há beijos também há fantasmas e não se sabe bem o que fazer quando o alimento escasseia e não há beijos para beber. Os fantasmas precisam dele, do alimento, do beijo. E os poetas já sabem que têm de enviar beijos às musas, não assim, como fez o Rubiales, mas através do veículo poético, sempre sujeito ao assalto dos fantasmas (e eles, os poetas, sabem disso). O ambiente em que tudo isto se processa é sempre de mistério e navegar nele é sempre difícil e delicado porque ao mínimo erro pode mesmo haver uma revolta dos fantasmas. E das musas, das nove, de todas. Eu acho que a única maneira de abordar as musas é mesmo através do veículo poético, que transporta os beijos dos poetas. Elas gostam de viajar nele. Às vezes até pedem boleia. Mas estão sempre protegidas pelos fantasmas porque são elas as destinatárias dos beijos, do seu próprio alimento. E pelas irmãs, as outras musas. Os beijos devem ser-lhes dados sempre de forma indirecta (não digo de cernelha, porque é feio e pouco poético) e nunca como fez o pobre do Rubiales. Quando o futebol feminino entra em campo, também as musas passam a estar lá e não só como inspiração. São protagonistas. O Rubiales não tomou isto em consideração. Pelo contrário, os poetas não se enganam, apesar de também correrem riscos. Porquê? Porque dão os beijos de forma intangível (beijam à distância) e é por isso que os fantasmas os podem beber ao longo do percurso, quando são levados ao destino, pelo vento. Não admira, pois, que os beijos não cheguem ao destino. É o preço a pagar, sim, mas o beijo fica dado. Fica mesmo. O beijo do poeta é coisa muito mais sofisticada do que o do Rubiales. Assim, o beijo, dado directamente e de qualquer modo, pode ser como a medusa: petrifica. Foi o que lhe aconteceu.

Nota a este fragmento: A questão Rubiales estava-me aqui entalada e, para não implodir, socorri-me da observação do JN sobre o jogo Gil Vicente-Benfica para me libertar deste peso. A coisa é complexa e delicada, mas, pelo menos, pude olhá-la a partir da mitologia e da poesia. Se o outro falou de “rebelião das massas”, agora estamos perante a “rebelião das musas”, ainda por cima nesse terreno mundial e explosivo do futebol. L’important c’est… le baiser. Quando um gesto de amor ou de júbilo (digo eu, somente por hipótese) se transforma em guerra, em “luta de classes”, em violência simbólica, em inominável agressão, em questão mundial, provocando mesmo a intervenção de governos – então há que reflectir sobre o sentido de tudo isto. “Eu já não sei”, para glosar a Roberta Sá e o Zambujo, se um dia destes os beijos poéticos não poderão ser também eles alvo de censura social ou até mesmo governativa, ainda que beijar a barriga de uma grávida seja considerado, e bem, um gesto de ternura presidencial. Já sei, talvez possa ser o Ortega y Gasset de Famalicão da Serra e publicar o livro “A Rebelião das Musas”, com prefácio da Isabel Moreira e da Fernanda Câncio (se elas aceitarem a prosa de um empedernido cisgénero, claro). Pronto, já me sinto melhor.

NAUFRÁGIO

Os poetas sofrem um pouco de desnorte, ziguezagueiam na vida, vagueiam por aí… É que a bússola é a sensibilidade e, por isso, dependem muito dos estímulos sensoriais, dos aromas, das paisagens, dos olhares e dos corpos… Penso que há sempre um estado de alma primordial que lhes faz disparar a sensibilidade. A este mar de sensações chega a poesia e o poeta transfere-as para lá livremente e voa, voa nesse mar de palavras, com as asas que as deusas da beleza e do amor lhe deram. Os jardins perfumados são a pista de onde os poetas descolam nos seus voos para a linha do horizonte. Mas é verdade, os poetas são filhos dos poços de ar, das turbulências, da tempestade, do deserto, das águas revoltas do mar. Por isso, venham ventos e marés que eles saberão sempre navegar neles. Mas nos mares habitados pelas musas o naufrágio é sempre iminente… só que ele nunca se conclui porque a fantasia o põe em levitação poética e o conduz sempre até à linha do horizonte… E o que é curioso é que ele leva sempre a musa consigo. Tudo recomeça, como se revivesse a pena de Sísifo. Eterno retorno, que é também a constante procura de uma linguagem de sedução pela beleza… Só seduzindo ele poderá redimir-se, salvar-se. Nem as musas aceitam outra linguagem que não seja a da sedução. Redenção pela arte, a que eleva e, assim, resgata.

 GOETHE

Há um poema meu (“Reminiscências”) que tem várias inspirações na base. Precisamente Goethe (“Selige Sehnsucht”), Thomas Mann/Goethe (“Lotte em Weimar”) e, claro, Manuel Bandeira (“Desencanto”). Mas a base essencial é Goethe. Tudo partiu dali. Depois, Florença, onde vivi durante alguns meses, logo quando fui para Itália, em casa da minha Amiga Laura. Sim, a poesia propicia o renascer de memórias intensas e antigas. Musas, afinal, são nove. Para mim, são sobretudo quatro. E é um eterno retorno, um regresso permanente. Só não é como Sísifo porque a poesia é mais leveza do que peso. Mas talvez seja castigo da vida por algum fracasso amoroso. Há castigos destes. Ficas castigado a cantá-lo (o amor) ou a cantá-la (a musa) enquanto durares. Aos domingos, o dia do teu ritual laico. Só que a poesia tem este poder de elevar o efémero e de o preservar no tempo, de trocar o peso pela leveza, de libertar. Sim, tens de subir a montanha sempre, do Vale para a Montanha e da Montanha para o Vale. Só que aqui existem asas (dadas por Athena) que te levam, movidas pelo vento que te sopra na alma e na fantasia. Hermes, o mensageiro.

São múltiplas, sim, as referências que este poema traz consigo. A epifania toscana é uma delas. É lá, na Galleria degli Uffizi, em Florença, que está a Primavera do Sandro Botticelli. A primeira inspiração do desenho que ilustra o poema foi numa das suas figuras. Mas também há reminiscências da minha viagem literária por “Via dei Portoghesi”. Por ali andou Goethe, que viveu na rua que continua esta, a “Via dell’Orso”. Reminiscências – o poeta vai lá e procura preservar o efémero das suas vivências mais intensas. A minha canção preserva o efémero, diz Goethe (creio que no diálogo com Lotte), em “Lotte em Weimar”, do Thomas Mann (1939). Imortalidade? Pelo menos, desejo de preservar o que de mais precioso lhe coube viver. Isto dá mais sentido à poesia. Mas aquele poema “Selige Sehnsucht”, de Goethe, agarra o tema da chama que atrai a borboleta: ansioso por luz, qual borboleta, ardeste; ou a vida: “quero celebrar a vida /que morrer em chamas anseia”. É um tema fascinante, este, a celebração da vida, a luz intensa que atrai e que queima. A borboleta, a fragilidade e a beleza da vida. Muitas vezes, indo lá mais atrás nas nossas vidas, deparamo-nos com algo semelhante. Reminiscências. Depois a Epifania – algo se manifesta através de sinais. Por que razão um poeta se atira inexoravelmente à poesia e por ali fica sem poder exilar-se? Algo mais forte do que ele o obriga a mover-se. Reminiscências que afloram e que exigem nova descodificação? Talvez. A poesia também é exegese do poeta. Sobre si próprio. Que exige comunicação, partilha, para se completar como exegese.

A POESIA ACONTECE

Busca, magia, reinvenção – três palavras certeiras para captar o essencial da minha poesia. E, então, “o poema acontece”. Creio que era o Pessoa que dizia que a poesia lhe acontecia, retirando-lhe aquela dimensão, sempre ameaçadora, do construtivismo da vontade. A poesia como algo natural, algo que decorre da vida de um poeta. Acontece-lhe, a poesia, enquanto caminha. E logo se põe asas e voa até ao fio do horizonte. Ele procura sempre seduzir, através da beleza. Ele, que foi seduzido. É assim que procura a perfeição, porque sabe que só seduz se for perfeito. Aconteceu-lhe ter sido seduzido, mas, sem jeito para as coisas práticas da vida, falhou, fracassou. Foi então que decidiu repor poeticamente a ternura das palavras e dos actos falhados, mesmo (ou sobretudo) quando já interditos e quando foram submersos pelas altas vagas das marés da vida. Um modo diferente de responder aos desafios e aos desencontros da vida. Sim, é verdade. O poeta tem sempre uma razão profunda para cantar. E quase sempre se trata de perda ou de impossibilidade. Mas o canto não é fuga, porque ele transporta a dor consigo, dá-lhe forma, di-la e, com isso, consegue metabolizá-la, transformando o peso em leveza. A poesia é um belíssimo divã. “Malheur intérieur” – o poeta tem sempre de conquistar a sua própria (in)felicidade. De a construir com os sentidos interiores. Em permanência, como se tivesse sido condenado a transportar todos os dias as palavras até ao cimo do Monte. Feliz melancolia é o que ele sente no fim de cada percurso. Parnaso e Sísifo que transporta consigo palavras sob as asas da fantasia até lá ao alto do Monte. O poeta é um artífice da leveza.

KARMA

Não duvido de que o amor faz parte do código genético da poesia. Um amigo dizia-me que, neste poema, tudo disse sem filtros. Talvez, digo eu, que sou outro que não o poeta. Melhor, que não sou o sujeito poético. Mas é verdade que o poeta finge, mesmo quando diz o que sente. É a força e a fraqueza da poesia. A pergunta é a de saber se o poeta se distancia da experiência. Sim, porque se eleva para um plano que pretende ser universal. Mas levando consigo esse peso gravitacional. Não foge, enfrenta-a com as armas de que dispõe. Por isso o poeta é um combatente. Sofisticado, mas combatente.

O que, ou quem, estará na origem desta pena sisifiana? Só perguntando ao poeta. Mas já se sabe que ele fingirá. Karmamarga, referi eu na resposta a uma Amiga. Sim, mas a origem? O Thomas S. Eliot dizia que a visita da musa fazia nascer o poeta. Musa-parteira? Ou musa que provoca estremecimento de alma e condena o estremecido a uma permanente subida ao Monte? Mas eu também acho que os deuses ou as fadas não são estranhos a este acontecimento. O estranho é esta associação de uma pena à criação, sobretudo â criação poética. Eu acho que o Eliot tem razão e, se for assim, fica tudo explicado. E é verdade, pois acho que isto acontece com todos os poetas. E até com a predisposição para gostar de poesia.

O título deste poema a que o meu Amigo se referia era, primeiro, “Desabafo”. Depois, mudei para “Lamento”. Sim, vai longa a caminhada e o silêncio do lado de lá do poema pesa. Depois recomeça o lamento e a subida ao Monte. Não há disfarce possível a não ser o da própria linguagem poética e o do seu código. Mas eu creio que só assim a poesia exprime o seu próprio poder e desempenha eficazmente a sua função. Se é que ela tem uma específica função que transcenda a sua própria performatividade. Algo que lhe seja exterior. Acho que não, embora às vezes pareça que sim. O poeta nada espera a não ser uma bela fruição na partilha estética. E sedução. Isso sim.

Talvez a palavra Karma seja apropriada. Ritual para a redenção. Lixado, sim: ao fim de sete dias chega ao Monte, mas logo começa a descida, para, de novo, ao fim de sete dias, voltar ao topo do Monte. Karma. Há anos (curiosamente, sete) que este percurso acontece todas as semanas. Rigorosamente. Por isso falo de Sísifo. Como se fosse uma condenação. Mas não uma maldição. A subida é uma depuração de sentimentos (através de palavras). Lá no alto há sempre neve (figurei a neve e o palácio das artes, na pintura que ilustrava o poema). Beleza e frio. Sim, a beleza é sempre fria porque só exprime o essencial. Eu sinto-a assim. Mas não há razão para “inveja” porque o acto de fruição, com a alma, equivale ao acto da criação. Tem outra intensidade e não tem o sofrimento do “parto”. Mas é também acesso ao essencial. Participação no ritual. Partilha. Há também um estado que se chama karmamarga (“La via di salvezza consistente nell’osservanza delle norme rituali e nell’esecuzione dei sacrifici prescritti” – in Enciclopedia Treccani). Gosto mesmo desta palavra.

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