SOBRE A MINHA PINTURA
A propósito da Exposição de Pintura “LUZ NO VALE”, no Museu da Guarda
João de Almeida Santos

“Uma Casa no Jardim”, 2022. JAS. 02-2024
NOTA PRÉVIA
Publico, hoje, um texto (com algumas alterações) sobre a minha pintura que integra o Catálogo da Exposição “Luz no Vale”, aberta ao público até sete de Abril, no Museu da Guarda.
I.
A MINHA PINTURA, digital, está associada à poesia. Nasceu em terreno poético, o seu húmus. Para cada poema, um quadro. Para cada quadro, um poema. Há muitos anos que venho regularmente publicando aos domingos, aqui, poesia associada à pintura, em torno de um tema ou de uma história, que até pode ser a expressão de um breve, mas intenso, instante. É um delicado processo de sinestesia, perseguido com determinação, um diálogo entre duas artes, mas onde cada uma das expressões estéticas conserva a sua própria autonomia de linguagem e de narrativa. A pintura explora, com as suas próprias categorias estéticas, ângulos de visão que resultam de uma intencionalidade temática sempre associada à poesia, funcionando também como uma sua especial extensão ou projecção, onde a semântica conta. Por isso, é possível manter na pintura um registo semântico claramente identificável e que alude sempre a uma originária intencionalidade poética.
II.
Gosto de explorar sobretudo cores quentes, as que melhor exprimem a carga semântica da poesia com que a pintura converge, e de usar fundos negros, como recurso que permite evidenciar, com maior pregnância, as formas e as cores. Até porque o negro que uso tem, no tipo de papel que utilizo, uma textura e um tom muito especiais. Parto sempre de uma mancha original, que capto através de prótese fotográfica, sempre accionada tendo em vista explorar plasticamente um determinado ângulo de visão, seja de um rosto, de um corpo, de uma flor ou de uma paisagem. E, para além do traçado central que dá forma e pregnância ao tema, procuro dar vida às figuras que nela se insinuam, originariamente ainda sob forma larvar, como se estivessem a pedir que lhes desse uma identidade definida. Um processo de gestação estética de formas inscritas originariamente num tecido ainda vagamente definido.
III.
Rostos, corpos, flores, paisagens – em todas as formas ainda informes (para o fim em vista) procuro animação, vida, movimento. Parto à descoberta de figuras que, à primeira vista, são de difícil percepção, porque de pequena dimensão e de contornos indefinidos, mas que vão ganhando forma no processo de desenvolvimento da pintura. Como se se tratasse de uma construção a partir de uma estrutura molecular. E é esta animação interna da pintura que sugere os desenvolvimentos posteriores, sempre subordinados, claro, à unidade estético-expressiva do todo, que sempre sobredetermina esteticamente os elementos que o integram. Mas há uma constante na minha pintura – a presença e a influência do discurso poético. Como se o real de que parto fosse já o que a própria poesia configura, traduz, apresentando-se a pintura como discurso metapoético, mas por ela já marcado originariamente, na génese, na origem. Uma estética da cor e do traço assente na semântica poética. A poesia funciona, assim, como uma espécie de mediação entre o pintor e o real. Um real já devolvido pela poesia e por ela reconfigurado. Uma “second life” de natureza poética como ponto de partida da pintura. Mas também acontece, cada vez mais frequentemente, que, sendo sempre a pulsão originária que me leva a compor de natureza poética, o processo se inicie com a pintura, acontecendo a poesia em momento posterior como resposta à proposta plástica que a antecedeu. O quadro “O Aurífice”, de 2022 (n.º 15 do Catálogo, pág. 29), para o poema “Esculpir-te”, é exemplo claríssimo de escrita que se desenvolve baseada no olhar do poeta sobre a pintura já executada. O mesmo vale para o quadro “Rasto de Luz”, de 2023 (n.º 49 do Catálogo, pág. 63), para o poema “Ocaso”. E, todavia, a intencionalidade originária é sempre de natureza poética, a matriz da criação, um olhar poeticamente já comprometido.
IV.
Todas as pinturas têm, por isso, um poema associado. Assim, é possível detectar na pintura também uma sua função orgânica – a de tornar visível o discurso oculto da poesia, dar-lhe cor, prolongá-lo até ao ponto em que a própria pintura se desprende, transportando consigo, sim, a intencionalidade poética, mas exibindo-a em total autonomia, com a própria plasticidade e a própria hermenêutica. Poderia exemplificar com alguns quadros, nos quais se desenvolve e converte a própria fala poética. Mas essa sinestesia pode ser consultada livremente aqui, no separador “Poesia-Pintura”, onde se encontra publicada a maior parte da minha obra poética, associada à pintura. E, todavia, não é possível dizer que a pintura seja a ilustração plástica da poesia, porque o mesmo poderia ser dito da poesia, dizendo que ela seria a ilustração discursiva da pintura. Mas também se poderia dizer que, sim, é uma coisa e é a outra, ou as duas em simultâneo. O efeito sinestésico resulta da convergência intencional e livre – animada por uma originária ou primordial relação poética com o real – das duas artes em torno de um mesmo tema ou história, tratados com a linguagem própria de cada arte. Também no meu livro de poesia (João de Almeida Santos, Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, 438 pág.s), tal como nesta Exposição “Luz no Vale”, onde estão expostos sete poemas associados espacialmente a sete pinturas, é possível encontrar exemplos desta sinestesia, estando treze poemas associados a treze pinturas (entre as pág.s 98-99, 106-107, 114-115, 126-127, 194-195, 252-253, 256-257, 262-263, 298-299, 302-303, 306-307, 328-329, 340-341 e, finalmente, para toda a poesia, entre as pág.s 52-53). Livro onde também se encontra desenvolvida a minha concepção de arte num ensaio de estética e de introdução à poesia e à pintura ou, ainda, nas respostas aos meus leitores digitais sobre vinte poemas.
V.
Há um lugar inspirador central: o meu jardim no Vale de Famalicão da Serra e os horizontes que o enquadram. Ali colho grande parte da inspiração, mas interceptando sempre, por um lado, remotos, mas intensivos, fragmentos de memória e, por outro, as figuras que se insinuam na mancha original de que sempre parto. Depois, acontece o livre desenvolvimento da pintura, em obediência aos meus próprios critérios de beleza e de harmonia, mas também às exigências semânticas que respondem ao chamamento poético. Não concebo a arte sem semântica, tal como não concebo a poesia sem música, mas também não compreendo a subordinação da forma e da totalidade estético-expressiva às puras exigências da semântica. É como se se tratasse de camadas que se desprendem de uma mesma matéria orgânica, ganhando autonomia e sentido próprio, embora contaminadas pelo próprio processo criativo e pela sua palingénese. Não me filio em nenhuma corrente estética, por uma única razão: o real é o centro do meu discurso estético, ainda que, na pintura, seja um real já portador de sentido conferido pelo olhar poético do pintor sobre a realidade, sobretudo sobre a sua realidade interior. Conjugando pintura e poesia procuro interceptar e interpelar o observador, o fruidor, com uma clara intencionalidade. É uma interpelação complexa onde poesia e pintura cooperam para intensificar o chamamento e a convocação para a experiência estética. Mas também é possível detectar alguma intertextualidade na pintura. Por exemplo, a presença, em alguns quadros, de citações, de fragmentos klimtianos (“Uma Casa no Jardim”, 2022, n.º 7 do Catálogo, pág. 21, o quadro que ilustra este artigo). Um autor, Gustav Klimt, que me seduz, desde sempre.
VI.
Para verificar em concreto o que disse, o melhor é, podendo, visitar a Exposição que está aberta ao público no Museu da Guarda até 7 de Abril, onde a pintura e a poesia expostas falam por si, em cinquenta e um quadros e sete poemas (veja aqui a notícia da inauguração da Exposição, e algumas imagens, na passada quinta-feira, dia 8 de Fevereiro). JAS@02-2024
