AS RAZÕES DO MEU VOTO
Considerações sobre as Eleições Legislativas de 2024
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 03-2024
ESTAMOS A VIVER um tempo em que ocorrerão sucessivas eleições – legislativas, europeias (e, provavelmente, regionais na Madeira) e, em 2025, autárquicas, a que se seguirão, em 2026, logo em Janeiro, as presidenciais – e o que se constata é que, cada vez mais, elas vão perdendo o carácter orgânico e territorial que antes tinham e que, também cada vez mais, elas ocorrem sobretudo no espaço audiovisual, no televisivo e no das redes sociais, colocando no centro do processo eleitoral sobretudo a linguagem dos rostos que o interpretam.
1.
O processo vai-se, assim, afunilando para um hiperpersonalismo político que, de algum modo, altera a matriz do sistema representativo em que ele assenta. Em Itália, como já aqui tive ocasião de referir, a actual coligação de governo aprovou um “desenho de lei constitucional”, conhecido como “premierato”, onde todo o processo se concentra na eleição de um todo-poderoso primeiro-ministro, a ponto de o próprio boletim de voto onde consta o nome do candidato a PM integrar também as candidaturas ao Parlamento, produzindo um efeito de arrastamento, com um perverso efeito político: o processo remeter para uma só figura, a de um líder (supostamente) carismático. De qualquer modo, com ou sem “lei constitucional”, na prática o que se está a verificar também em Portugal é a redução das legislativas a uma eleição do primeiro-ministro. Ganha, pois, mais sentido a forma como os italianos chamam às eleições legislativas: “elezioni politiche”. O mandato parlamentar fica, assim, muito diminuído politicamente agora não só na génese, ou seja, na propositura (sobretudo dos cabeças de lista) decidida pela liderança, mas também na própria legitimidade derivada do voto, agora imputável, no essencial, ao carisma do candidato a PM. Será, em todo o caso, um voto por arrastamento polarizado pela figura do líder. O processo não está formalmente estatuído, entre nós, mas, na substância, está assumido e a funcionar plenamente.
2.
Depois, o factor programa, uma peça importante do processo eleitoral. Note-se que é comum a tendência para elaborar e publicar extensos programas que, em boa verdade, não são susceptíveis de leitura pelos eleitores, dada a sua dimensão – se somarmos as páginas dos programas dos três maiores partidos do sistema de partidos português, o do PS, o do PSD e o do Chega, a soma será de 504 páginas. Imaginemos agora a quantas páginas não corresponderá a soma total de todos os programas dos partidos em competição. Um absurdo. Alguém terá paciência para ler estas “listas telefónicas” onde os partidos, todos eles, despejam tudo o que lhes dá na real gana, sem se preocuparem em ir ao essencial, em diagnosticar as causas dos três ou quatro problemas centrais com que o país se debate e em propor respostas credíveis e eficazes? Não será mesmo falta de respeito pelos eleitores? Acresce que estes programas nem sequer são vinculativos, pois estamos perante mandatos não-imperativos, ou seja, mandatos livres de qualquer vinculativo “caderno de encargos”. Por isso, poucas páginas seriam mais que suficientes. Trata-se de uma eleição pessoal, não da eleição de um programa, embora, como se compreende, haja uma espécie de compromisso moral em cumprir o que se prometeu em campanha. O programa que realmente vincula é o programa que se apresenta ao Parlamento, em fase já de instalação de um novo governo. Mesmo assim, ele é um dos três elementos fundamentais que influenciam e determinam a escolha dos eleitores: a figura do líder (sobretudo), o espaço político e de valores em que se insere e o respectivo programa Mas, assim sendo, ou seja, faltando eficaz informação analítica sobre os programas, o que resta ao eleitor é seguir o que acontece no espaço do audiovisual.
3.
Torna-se, pois, decisiva a arena principal onde ocorre o essencial da disputa eleitoral, ou seja, o espaço televisivo, esse com que se iniciou, nos anos cinquenta, nos Estados Unidos, a personalização da política. Um espaço mais apropriado a frases de eficaz efeito retórico e à performance corporal, verbal e comportamental do candidato (veja-se o clássico debate de 1960 entre Kennedy e Nixon e os seus resultados) do que a discursos analiticamente estruturados. Como procurei demonstrar no meu livro Homo Zappiens (Lisboa, Parsifal, 2019, 2.ª edição) se a televisão é emocionalmente forte e cognitivamente fraca os seus mais eficazes efeitos são sobretudo de natureza emocional e menos de natureza racional e analítica. Também nas redes sociais, a nova arena onde também ocorre a competição eleitoral, o código comunicacional utilizado é dominantemente de natureza emocional e abundantemente instrumental. De facto, também aqui se inscreve a tendência para a hiperpersonalização da política. Um rosto como “agente fiduciário” global da cidadania e o princípio de que uma imagem vale mais do que mil palavras.
4.
Estes factores, a inacessibilidade prática (por excesso) e a insuficiência explicativa dos programas eleitorais, a inorganicidade crescente da política, a sua hipersonalização e a natureza da arena onde se processa a competição política, apontam para um processo decisional centrado sobretudo, ou quase exclusivamente, nas lideranças, e mais propriamente naquelas que estão em condições de vir a ter sucesso na candidatura ao cargo de primeiro-ministro. Mesmo que não se esteja num regime de “premierato” formal. A decisão político-eleitoral centrar-se-á, pois, na figura dos candidatos, no rosto, na retórica e na performance audiovisual, na personalidade, na sua história pessoal, além, naturalmente, da sua pertença a um concreto espaço ético-político que mobiliza o chamado “sentimento de pertença”, que, todavia, tem vindo a perder pregnância desde o fim das chamadas grandes narrativas políticas e ideológicas e da entrada em cena da televisão na competição política.
5.
Eu considero que esta evolução – que é um facto incontornável – não ajuda à consolidação do modelo clássico de democracia representativa pois não convoca a razão e a informação para instruírem a decisão político-eleitoral, para uma avaliação analítica e responsável das propostas das formações políticas em competição, ficando os eleitores mais sujeitos à eficácia retórica do discurso político e à linguagem de um rosto do que à substância programática. E, por isso, sou cada vez mais defensor de uma orientação no sentido da construção de uma democracia de tipo deliberativo, onde é privilegiado, reconhecido e assumido o aprofundamento e o alargamento do debate público através de instrumentos que invertam esta situação, convocando a razão analítica e os respectivos meios de informação para a vida política, em campanha e fora dela (na hoje assumida permanent campaigning). Neste aspecto, compreendo muito bem a posição de Habermas – no seu mais recente livro sobre “Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa”, de 2022 (Milano, Raffaelle Cortina Editore, 2023) – sobre a política deliberativa, ao considerar essencial para o bom funcionamento da democracia a promoção de uma robusta dialéctica discursiva racional na esfera pública política a cargo dos clássicos meios de comunicação e dos seus agentes orgânicos e profissionais (garantes de uma informação profissionalizada e certificada) perante o receio de uma hiperfragmentação e diluição da esfera pública política a cargo dos “social media”, eles também propícios à eficácia retórica e instrumental (e às famosas fake news), desprovidos de uma qualquer forma de regulação e promotores de uma diluição da fronteira entre a esfera pública e a esfera privada. Como diz Habermas: o uso exclusivo dos “social media” poderia mudar a “percepção da esfera pública” (…) “de modo a fazer desaparecer a distinção entre ‘público’ e ‘privado’ e, portanto, o sentido inclusivo da esfera pública” (2023: 64). Alem disso, estes últimos aprofundariam o negativo que já está a acontecer com essa espécie de política tablóide promovida pelo audiovisual, em particular pela televisão. O racionalismo crítico que ele defende, com a sua teoria discursiva da democracia, não é, pois, compatível com esta tendência crescente para o tabloidismo político e para hiperpersonalização, nascidos com a televisão e aprofundados agora pelas redes sociais.
6.
Sim, é verdade, mas os media e a rede podem ser utilizados de forma racional, analítica e argumentativa na esfera pública política sobretudo através dos meios de comunicação escritos e da rede nos seus inúmeros espaços de informação analítica – um espaço público deliberativo enormemente alargado onde o indivíduo se pode protagonizar sem ter de pedir licença a gatekeepers, aos antigos detentores do monopólio do acesso a este espaço. Uma combinação, pois, dos meios de comunicação, media e rede, que favorece a informação, o debate, a argumentação numa lógica onde a razão pode ser dominante e a emoção subalterna. É essa a política deliberativa e é também essa a democracia deliberativa, aquela que não se vislumbra nesta caminhada a largos passos para a hiperpersonalização da política e do poder. E, todavia, é isso que está a acontecer e, pasme-se!, quem melhor compreende e sabe utilizar esta evolução é a direita radical, precisamente aquela que a quer constitucionalizar (e sobre a qual já aqui escrevi).
7.
Pois bem, se é isto que está a acontecer realmente, a hiperpersonalização da política, então, por um lado, na concreta decisão político-eleitoral há que ter a maior atenção e o maior cuidado ao votar num ou noutro candidato, sabendo-se que, depois, isso se traduzirá em hiperpersonalização do poder, sempre acompanhado tendencialmente de um uso pouco respeitador da separação de poderes e da sua autonomia, pelo uso discricionário do poder e pelo atropelamento da ética pública inscrita no sistema democrático representativo. Os casos em que isso já acontece (ou aconteceu, como no caso da Polónia do senhor Kaczinsky) são sobejamente conhecidos. E não sendo possível alterar de imediato as condições de exercício da cidadania no plano eleitoral através de uma inversão de rumo e da promoção efectiva de uma política deliberativa, então há que reforçar a vigilância sobre as lideranças que se propõem governar, na sequência de eleições políticas. Lembro que esta hiperpersonalização do poder levou, em Portugal (e de forma argumentada por parte do PR), à queda de um governo suportado por uma maioria absoluta e à dissolução do Parlamento, tendo bastado para tal que fosse desencadeado – ao que parece insipiente, pouco explicado e nebuloso – um inquérito judiciário no Supremo Tribunal de Justiça (ao que parece sem que o próprio presidente deste tribunal tenha sido previamente informado) ao ainda primeiro-ministro.
8.
É neste panorama que, entre outras razões, se inscreve a minha decisão de votar no PS nas próximas eleições de 10 de Março e, naturalmente, de sufragar a candidatura de Pedro Nuno Santos a próximo primeiro-ministro, sem, naturalmente, abdicar de continuar a lutar, com os meios (escritos) de que disponho, por uma democracia deliberativa que abra caminho a uma inversão de tendência, a uma melhor performance política da cidadania (e das organizações que a representam, incluídas as plataformas digitais) e a uma política deliberativa centrada na distanciação crítica (Entfremdungseffekt, diria o Brecht) dos cidadãos em relação ao espectáculo da política e à política de espectáculo e ancorada, pois, em mais sólida formação e informação política, em maior e mais robusta e articulada legitimidade política, numa mais intensa e harmoniosa sociabilidade orgânica e territorial e na criação de condições para que seja possível promover escolhas racionais no processo de decisão política. E não só. Também para que o próprio processo decisional seja mais transparente e mais qualificado, pelo aprofundamento e alargamento da deliberação pública – tudo no quadro da democracia representativa. De resto, só assim os partidos políticos poderão superar a crise de representação que continua a instalar-se nas sociedade desenvolvidas e que está a ser muito bem aproveitada pela direita radical.
9.
Neste sentido, e porque é este o processo de escolha eleitoral que temos, a decisão a tomar deve ser em grande parte guiada pelas características dos candidatos a líder, particularmente daqueles que estão em condições de ascender ao cargo de primeiro-ministro. E a mim, exactamente ao contrário do que dizem o professor Cavaco Silva e o conhecido trânsfuga do Goldman Sachs, o senhor Barroso, parece-me que o líder do PS demonstra maior autenticidade e convicção e maior capacidade de enfrentar o risco e de romper com essa política do movimento por inércia e transformista que parece ter tomado conta da política dos partidos de centro-esquerda e de centro-direita, levando, como se sabe, à fragmentação dos sistemas de partidos. Foi por isso que votei nele para líder do PS e defendi a sua candidatura. Pelo contrário, Luís Montenegro continua a ser um intérprete, nem sequer muito qualificado, desta política e por isso não votarei nele, até porque o meu espaço de intervenção política é, sim, o de uma social-democracia renovada e a caminho de uma democracia deliberativa. Na verdade, tenho a convicção de que, com Pedro Nuno Santos, a evolução para esta democracia é mais viável, para não falar dos valores sociais e da sociabilidade solidária que ele defende, de resto, com muito maior autenticidade e convicção do que as que o candidato da AD exibe na defesa das suas opções. Tudo isto também independentemente dos concretos programas em que se inscreve a própria acção política e que naturalmente também deverão estar em avaliação, embora aqui, pelo que já disse, não se vislumbre grande clareza na determinação do “princípio activo” (a causa causans) que poderia dar solução aos principais problemas com que o país se confronta.
10.
Não desvalorizo as prestações dos outros partidos, à esquerda e à direita, mas será nestes dois partidos que o rumo da nossa política se decidirá.
