Artigo

“RICOMINCIO DA TRE”

As Eleições e o PS

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 03-2024

ESTE É O TÍTULO de um filme (de 1981) com o saudoso actor e realizador italiano Massimo Troisi e, à parte a trama do filme (ele não quer recomeçar a vida a partir do zero e por isso recomeça-a a partir de três, que até pode ser com a Marta e com o filho que está para nascer e ao qual darão o nome de Ciro), serve bem de pretexto para caracterizar o recomeço da política portuguesa depois das eleições de domingo, no ano em que Abril faz meio século. De facto, este filme fez-me lembrar o que aconteceu no domingo: a democracia portuguesa não recomeça do zero, não, nem a partir de dois, mas, ao que parece, recomeça a partir de três. Sim, surgiu, como já se previa, um terceiro protagonista, de seu nome, não Ciro, mas CHEGA. Não digo que, como no filme (onde, todavia, haja incerteza sobre a paternidade de Gaetano), seja filho directo dos dois personagens que já existiam (PS e PSD), mas ele resulta da vida que os dois protagonistas anteriores foram levando ao longo dos anos. O terceiro resulta do desagrado pela não resolução dos problemas que afligem os portugueses e que estão há muito diagnosticados. Mas também é verdade que a tendência que este novo protagonista representa há muito que se vem afirmando na Europa, acabando por chegar a Portugal. De forma muito consistente, eleitoralmente. E isso significa que estamos perante algo que é mais profundo do que parece. Seja ele, o terceiro, filho de quem quer que seja, a verdade é que a política portuguesa parece agora recomeçar precisamente a partir de três.

1.

A situação é algo disruptiva vistos os resultados das eleições: o aprofundamento da fragmentação do sistema de partidos e o início do fim da clássica alternância em regime de bipartidarismo; a provável falta de uma maioria relativa da AD com a Iniciativa Liberal perante uma maioria relativa da esquerda, não considerando o CHEGA; a necessidade do voto favorável deste partido para que o primeiro orçamento seja aprovado; a recusa manifestada pelo PSD de qualquer acordo com este partido, não rejeitando, provavelmente, o que este partido vier a decidir autonomamente, se for o de deixar passar o orçamento; e, finalmente, uma maioria absoluta muito significativa de toda a direita, a moderada e a radical – tudo isto (e independentemente da real composição do parlamento, onde o PS pode vir a ter o maior grupo parlamentar) pode levar a novas eleições muito em breve, se a direita moderada mantiver o proclamado cordão sanitário sobre o Chega e este, com a dimensão que adquiriu, não aceitar esta condição de segregação e agir em conformidade, por respeito a mais de um milhão de eleitores que lhe confiaram o voto. Uma coisa é certa: a maioria é de direita e a esquerda tem de se reinventar e de mudar de rumo. Em particular, o PS, partido sempre decisivo numa alternativa de esquerda, apesar de exibir um respeitável resultado eleitoral, embora tenha caído cerca de treze pontos percentuais em relação às eleições de 2022 e cinco e meio em relação à média das dezasseis eleições disputadas em democracia.

2.

Pedro Nuno Santos foi, na noite eleitoral, peremptório e claríssimo ao afirmar a linha do partido relativamente ao governo que aí vem, mas também foi muito claro ao dizer que iria mudar o partido e que uma época (a de António Costa) acabara de ser encerrada definitivamente. E disse-o de forma muito contundente, logo a seguir ao insólito e quase surreal episódio da conferência de imprensa de António Costa em plena noite eleitoral, no Altis. A sua saída intempestiva do Altis, antes de o Secretário-Geral do seu partido fazer a declaração da noite, é isso mesmo que indicia. O PS recomeça, assim, o seu caminho de coração limpo e com uma nova liderança livre de tutelas do passado, pronta a mudar profundamente o partido e a enfrentar uma direita que já é consistentemente maioritária no país. E este é um sinal muito claro deixado por PNS na noite eleitoral. Um bom sinal.

3.

Sendo certo que o PS soube mobilizar-se durante esta campanha, também é verdade que, enquanto partido, exibe insuficiências graves há muito. E eu creio que a principal insuficiência é comportar-se como uma enorme federação de interesses pessoais que se sobrepõe a uma exigente, sólida e mobilizadora coesão ideal assente em valores comunitários e a uma clara cartografia cognitiva que proponham, ambas, quer uma clara identidade política filiada no melhor que o socialismo democrático e a social-democracia têm vindo a exibir ao longo da história quer uma visão que, filiando-se nessa tradição, saiba definir com clareza as fronteiras da acção do Estado, a sua relação com uma cidadania cuja identidade tem vindo a mudar profundamente sobretudo devido à metabolização ou internalização das novas tecnologias no processo cognitivo, comunicacional e comportamental, o lugar da liberdade, da esfera privada, da sociedade civil e do indivíduo singular no seu desenho global de sociedade e, finalmente, um modelo de Estado social renovado que conjugue racionalmente as devidas prestações sociais do Estado com uma efectiva eficácia no serviço prestado à cidadania.

4.

Este partido não pode continuar a ser construído nem como albergue de quem só o concebe e usa com espaço de oportunidade pessoal para uma vida melhor nem como um território colonizado pela liderança. Ele deve reconstruir-se numa sã dialéctica entre um robusto movimento bottom-up ancorado na sociedade cilvil e um movimento top-down, ancorado numa estrutura organizacional robusta e eficiente, mas onde a autonomia de cada um destes dois níveis seja efectivamente respeitada, em particular sem a colonização do território partidário pela liderança, em particular quando o líder é ao mesmo tempo primeiro-ministro e dissemina as suas escolhas pessoais por todo o território partidário nacional. Por outro lado, entre cada um destes dois níveis, o PS deve organizar-se de forma diferente de como se tem vindo a organizar. Por exemplo, ao nível da Fundação Res Publica, do Gabinete de Estudos ou do Jornal do Partido. Este último foi pura e simplesmente desmantelado (sem que os militantes se tenham sequer apercebido disso), transformando-o numa mera secção informativa do site do partido (felizmente, parece que vai agora ser reconstituído, sob a direcção de Porfírio Silva); da existência da Fundação não há notícia, com um director que anda lá por Bruxelas há anos sem cuidar de a gerir com eficiência ou mesmo de simplesmente a gerir, numa inexplicável tendência à acumulação de funções sempre pelos mesmos, como se um partido desta dimensão não tivesse outros quadros capazes de o fazer; o Gabinete de Estudos é um arremedo de organização que se limita a publicar números de macro-economia sem qualquer leitura. Ou seja, nada disto é para levar a sério como não são para levar a sério tantos personagens que andam por lá há décadas a tratar da vidinha nada dando de si ao interesse público a não ser nas performances que exibem quando se trata de serem novamente eleitos ou nomeados. A endogamia é grande e é um mal que, como se viu nestas eleições, se paga caro. Por outro lado, ainda, a captura do partido por pequenos grupos instalados em certas instituições (universitárias, como, por exemplo, o ISCTE) não parece ser muito favorável a uma sua maior expansão e permeabilidade na sociedade civil e no país. De resto, a presença difusa do PS nos organismos da sociedade civil é altamente deficitária num partido que exibe uma centralidade decisiva para a democracia portuguesa. Jeremy Corbyn deveu a sua força no Labour não só aos sindicatos, mas também, ou sobretudo, à plataforma digital Momentum que integrava nas suas fileiras sobretudo a juventude. A coesão ideológica do partido parece estar confinada às cartilhas do politicamente correcto, da ideologia de género, do pensamento identitário ou mesmo de um vago wokismo, em vez de se centrar nos valores clássicos da social-democracia devidamente aggiornati e numa nova cartografia cognitiva que instrua criticamente os que nele se filiam e revêem. O “sentimento de pertença” está hoje muito enfraquecido e o que se torna necessário reforçar é uma cartografia cognitiva capaz de instruir os militantes e os simpatizantes do partido para, em liberdade, lutarem e promoverem aquilo em que acreditam e que conhecem de forma reflexiva e analítica. Sabemos que a direita radical se alimenta não só do filão antiliberal (o mesmo em que se filia essa esquerda dos novos direitos), mas sobretudo naquelas ideologias, além, claro, dos filões da corrupção, da imigração e soberanismo. Alimentá-la, dando-lhe pretextos para se alimentar de ideologias identitárias pouco compatíveis com a própria tradição do socialismo democrático ou da social-democracia é não só errado como também desviante em relação à própria tradição em que se inscreve o partido.

5.

O PS obteve um resultado eleitoral cerca de 5,5 pontos abaixo da média geral que mantém desde 1976 (34% e 92 deputados), menos do que o PSD, com cerca de 6 pontos abaixo da sua média geral (35,5% e 96 deputados), o que representa, apesar de tudo, um resultado consistente tendo em conta a tendência para a fragmentação do sistema de partidos que se está a verificar um pouco por todo o lado (a soma de ambos os partidos baixou de cerca de 70 para 58 pontos percentuais). Pedro Nuno Santos já manifestou uma clara decisão de promover uma profunda mudança no partido. Há muito a revisitar na história do socialismo democrático e a aprender com as suas vitórias e as suas derrotas, mas sobretudo com o modo como estes partidos se relacionaram com a história, as respostas que souberam dar. A identidade da cidadania tem vindo a mudar de forma substancial e torna-se necessário identificar essas mudanças. Vivemos uma época de uma certa anomia internacional e de um mundo muito interdependente, para o bem e para o mal. Verifica-se um revivalismo da direita radical assente cada vez mais no soberanismo, na ideologia antimigratória e no populismo iliberal. Mas verifica-se também, simetricamente, uma crise do centro-esquerda e do centro direita, incapazes de ler o processo de profunda e rápida mudança que está a acontecer, permitindo que os extremos do sistema cresçam desmesuradamente. A narrativa ideológica clássica da esquerda perdeu força mobilizadora e tende cada vez mais a ser substituída pela ideologia agressiva e iliberal dos novos direitos, suscitando uma forte rejeição da sociedade civil. Os partidos clássicos da alternância governativa têm vindo a viver no essencial dos recursos e da ocupação do Estado, descurando a ligação à sociedade civil (a não ser nos períodos eleitorais), reproduzindo-se através de uma endogamia que se tornou crónica e descurando também a sua própria organização interna, a sua eficiência, a sua capacidade de interpretar autonomamente a sociedade civil e a sua própria identidade ideológica, acabando por se tornarem meras máquinas eleitorais ao serviço do poder interno e, até nisso, recorrendo regularmente a outsourcing, em detrimento do desenvolvimento de capacidades próprias e de uma militância motivada por valores e não por interesses pessoais.  A imagem tornou-se o alfa e o omega desta política em detrimento dos valores e dos programas.  Tudo isto explica a crise e é sobre isto que é necessário agir. Mas por isso mesmo não é possível agir com os mesmos de sempre e com as mesmas formas de sempre. A mudança também deve ocorrer nas pessoas e não só nos métodos e nas ideias.

6.

O dia 10 de Março foi o dia em que definitivamente a nova liderança do PS se consolidou. A intempestiva saída de Costa do Altis e o discurso do Secretário Geral do PS têm este valor simbólico. Pois deverá ser a partir do dia seguinte que o novo ciclo deve começar. Até porque a vida não pára e a urgência política é cada vez maior. Mas a acção não deve ser interpretada como mero movimento: ela deve começar nas ideias e na sua concretização. Nunca a acção pela acção levou a bons resultados. Em tempos houve uma polémica acerca da 11.ª Tese sobre Feurbach: interpretar o mundo, sim, mas também transformá-lo. Este mas não era adversativo (sondern), mas sim complementar (aber). Interpretá-lo para o transformar. Mas interpretá-lo, sim. É esta a sugestão que aqui deixo a Pedro Nuno Santos, que apoiei e em que votei para líder do PS. JAS@03-2024

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