Artigo

FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO (VIII)

SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

JardimAnimado

“Jardim Animado”. JAS 2022 

O JARDINEIRO

O poeta é jardineiro de palavras coloridas e perfumadas que nascem a rodos lá no jardim da sua vida. E quando o jasmim está no auge e o seu perfume o inunda, o poeta fica um pouco embriagado e diz aquilo que sente e não sente, aquilo que pensa e não pensa e até o que não deve. Ou deve? O que não sente e não pensa… presume. Poeticamente falando, entenda-se. Ele nunca usa máscara (somente a de poeta, o que não é pouco) e, por isso, corre sempre o risco de ser atropelado pelas palavras que usa. In jasmino veritas. Pois é. É o risco que corre por andar sempre em busca do perfume perdido ou nunca encontrado, às vezes embriagado pelo perfume acre e intenso do jasmim. Acontece até porque ele cria e produz perfumes. Aromas (não ossos) do ofício, dir-se-ia. Depois deita-os ao vento que passa para que perfumem aqueles que o vento atinge com o sopro poético. Sobretudo a musa. Estamos no domínio aromático da levitação, que torna a vida mais suportável, retirando-lhe peso. E a poesia é mesmo levitação. O aeroporto é o jardim, o combustível são os aromas e as asas do voo são pétalas multicolores das flores do jardim. O jardineiro é o piloto que voa sempre em busca de novas paragens onde derramar os seus perfumes. Vida de poeta comprometido com a beleza, mas também com a musa que um dia o visitou e o continua a inspirar, mesmo quando não (a)parece, e com os fantasmas que sobraram para se alimentarem dos beijos que o poeta lhe envia (à musa) em forma de poema. Há vida no jardim da poesia e há poesia na vida do jardim. Ah, mas o poeta fala sempre em linguagem cifrada. É assim que se defende, mas é também assim que pode voar com as palavras que deita ao vento que passa. O poeta é jardineiro.

SENSIBILIDADE

“O poeta anda por aí…”. Sim, anda por aí a ouvir e a sentir a vida, olhando para ela por fora e por dentro, a partir do seu património afectivo, daquele que teima em subsistir de forma sensível na sua memória. Sim, o poeta olha o mundo com as lentes da sua sensibilidade, daquela que ia registando de forma impressiva os andamentos da (sua) vida. E procura elevar essa sua experiência, como redenção, mas também como dádiva, a esse terreno tão sofisticado da arte – o do culto da beleza. E ele também gosta de ser interpelado sobre a sua matéria poética. Sobretudo quando se fala do mistério que envolve, como neblina, a musa. Nem os olhos dela, quais faróis, ajudam a decifrar, a ver com nitidez o terreno movediço em que o poeta se espraia. Esses faróis, pelo contrário, ainda pioram as coisas porque acendem ainda mais a neblina, a tornam mais cintilante, chegando mesmo a encandear o poeta. Tanta luz, cega. E adensa ainda mais o mistério. Por isso, é verdade que a poesia não consegue penetrar totalmente o mistério, nas suas vãs tentativas de aproximação. Então, melancólico também ele, lamenta-se do estado afectivo do mundo e ensaia cânticos libertadores dessa vida sempre em neblina e em aparente perda. Mas, confesso, que outra vida será a dele que não seja essa? Se tudo fosse nítido e fosse ganho, nesse intervalo entre a sua sensibilidade e o mundo, provavelmente não haveria poesia. Mas é claro que a neblina permanente cansa e as palavras, que são os olhos do poeta (é com elas que ele vê), ficam exaustas e com vontade de migrar para outras paragens. Mas nunca migram porque elas existem para isso, são as pontes com que o poeta atravessa o rio revolto, agitado, da vida.

POLISSEMIA

A arte, tendo uma componente formal, extravasa sempre a forma e liberta sentido em várias direcções, que compete a quem frui captar. A arte não é denotativa porque exprime sobretudo uma visão subjectiva filtrada pela sensibilidade do artista, a que acresce ainda um ulterior e livre exercício formal e técnico, apenas determinado pelas categorias da arte (incluída a música). O resultado traduz-se sempre numa riquíssima e sofisticada polissemia.

APARIÇÕES

Os territórios da arte são territórios de evocação e de invocação. Uma flor ou um arbusto podem suscitar viagens interiores organizadas e ordenadas em palavras, sim, mas também reordenadas em riscos e cores. A memória pode ser o caminho por onde transita a fantasia do poeta em busca do impossível, sim, mas através de um veículo capaz de fazer milagres e de reverter o tempo perdido. De chegar ao impossível. As palavras têm asas, mas também podem servir de cinzel para esculpir desejos irrealizados e recuperar perdas de um passado sofrido. É esse o milagre da poesia. Aparições. Depois, insatisfeito com a intangibilidade das palavras, ainda que sensíveis na sonoridade que o poema lhes confere, lança-se, transmutando-se em pintor, na ousada tarefa de lhes dar forma e cor, propondo-as como matéria plástica a um olhar esteticamente comprometido. No fim, o poeta sente-se levitar, subtraindo peso, muito peso, à sua existência e acrescentando-lhe cor. Viajar é isso, mas viajar com a fantasia em duplo registo é muito mais.

 “ONDAS REVOLTAS”

O poema “Ondas Revoltas” ( link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/01/20/poesia-pintura-191/ ) é todo ele uma dialéctica entre o cadenciado, mas tumultuoso, movimento das ondas e a paz que o mar suscita a quem o observa, o sente por dentro e ouve o seu marulhar ou a quem, neste caso, o canta. Serena emoção, poder-se-ia dizer. Melodia silenciosa. Nestas ondas é possível vagar… com o olhar e com a alma. O poeta sofre o potente embate delas, sim, mas depois levita sobre elas. Poética levitação. Com alguns poços de ar, mas sempre levitação. Tudo nessa pequena praia da meia-lua, na sua forma semi-circular, o lugar onde nasce sempre um poema. Uma praia inspiradora que é recorrente nos exercícios do poeta. Razões haverá para isso. Depois, a Milva e a sua canção “Thálassa”. Outro mar, o da Grécia, o mesmo sentimento e a mesma emoção. E o regresso a um tempo que sempre o inspirou. Esse mar que nos leva para paragens impossíveis e perigosas. O mar onde as sereias nos seduzem e levam a que nos amarremos ao mastro do poético navio para impedir que sigamos o seu melodioso, encantatório e perigoso canto. Mastro poético e sereias inalcançáveis (é sempre esse o destino do poeta). Então fica-se a vagar por ali, na praia da meia-lua. Poeticamente, entenda-se. “Esculpir as emoções do poeta”, alguém me dizia referindo-se a este poema. Assim acontece com as ondas que batem nos rochedos. Ou com o vento nas dunas. E surgem formas inesperadas desenhadas na pedra ou na areia. Estilizadas, como se houvesse uma mão invisível (que não há) a desenhar a pedra ou a areia. A força das ondas ou do vento a produzir efeitos estéticos, de beleza, tal como as emoções sobre as palavras, na poesia. As emoções são vento sobre palavras, com esse poder mágico de as esculpir. Também aqui não há uma mão invisível. Simplesmente acontece. Acontece em dias tumultuosos ou quando nos encontramos na rua, no meio da multidão, e somos repentinamente fascinados por “une passante” que rapidamente se esgueira, engolida pela multidão. Depois, a escuridão, diria o Baudelaire. Mas há sempre uma praia da meia-lua como ponto de reencontro… poético.

CHÃO

O poeta-pintor desenhou, com palavras e com cores, este chão e, lá no alto da montanha, a luz (o quadro “Luz na Montanha”), com o céu como fronteira a acariciar o seu cume (link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/02/03/poesia-pintura-193/). E com este horizonte ao alcance do olhar quem poderia permanecer alheio ao canto e à dança? Só o canto e a dança nos permitem voar até à linha do horizonte. “Ballon” – o poder de levitar induzido pelo canto. Os braços são as asas, sopradas pela alma em epifania. E quando o céu é límpido e de um azul profundo o poeta sente-se mais intensamente interpelado ou mesmo magnetizado e atraído. Com vertigens. E nem lembro a neve e a cintilante neblina que, quando cai, nos envolve e nos põe em imanência total. Não. Falo da luz cintilante que ilumina com perfeição a linha do horizonte e desenha uma fronteira que só pode ser percorrida pela arte. A fronteira da beleza, a que só a arte pode aceder. Aqui, neste chão primordial, as raízes prendem e libertam, um oxímoro que densifica e enriquece a vida nas suas múltiplas contradições. Húmus. Território com profundidade temporal que atrai e liberta do circunstancial. A dialéctica profunda do tempo. Sim, uma força telúrica a que não se pode resistir, a não ser pela arte, mas uma forma de resistência cúmplice, animada e alada pelo princípio da sedução. Resistir a este chão é manter-se em tensão com ele, vivificando-o e mantendo essa profundidade temporal que nos humaniza. E por isso se configura também um princípio de esperança ancorado nas raízes.

Luzna MontanhaREC

“Luz na Montanha”. JAS 2021. Detalhe

“A JANELA”

Sim, este poema e este quadro (ambos com o mesmo nome, “A Janela” – link: https://joaodealmeidasantos.com/2024/02/11/poesia-pintura-194/) até poderiam equivaler à garrettiana janela e à garrettiana Joaninha, como dizia um Amigo a propósito deste poema. E também um Carlos cuja silhueta se esfumaria para além dos vidros daquela janela. Como esfumou, ao que parece. Mas quem sabe se o poeta não se disfarçou, se “outrou”, como dizia este Amigo, e bem, em mulher para melhor, de forma mais sensível e delicada, exprimir os seus sentimentos? Não ouso perguntar-lhe. Responder-me-ia com a estrofe do Pessoa, com a Autopsicografia. A silhueta pode até personificar o mundo e o tempo que se nos escapa por entre os frágeis dedos da nossa alma e até do nosso coração. E a janela, vista de dentro, é bem outra coisa (que uma visão a partir de fora), é projecção, sim, até à linha do horizonte. Os vidros reflectem o mundo de fora, mas com o olhar consegue-se transcender e superar as imagens transparentes da vida que se projectam nos vidros da janela. O olhar é, também ele, por isso, tábua de salvação. Mas para isso precisamos de uma janela, mais do que de uma porta, porque esta nos leva à rua (às suas limitações, que são as da vida real) enquanto a janela nos projecta no horizonte, onde nos idealizamos e voamos sobre o mundo, como Sininho, com suas asas, em direcção a uma ilha encantada, a Never Land. É por isso que o seu (dela, do sujeito poético) mundo é mais o da janela que o da rua. Como o do poeta. É mesmo. Também a Joaninha, afinal, sempre esteve à janela, por detrás de cortinados transparentes. E o Carlos nunca conseguiu sair da rua. Havia um muro invisível (na vida) apesar da janela (na fantasia). Mas concordo: “Não é possível tapar e esconder a Janela da Vida”. Sim, sim, porque os poetas não deixam… Cada vida tem a sua janela. E cada janela tem a sua vida. E quando a vida é a de um poeta, a janela acende-se e ilumina a rua, quaisquer que sejam os transeuntes. E pode-se voar para o infinito, darmo-nos asas e ir além daquilo aquilo que a vida nos dá ou nos deu. Se a janela simboliza a liberdade, a rua simboliza a contingência e as amarras da vida. Na janela se dá corpo a desejos que a rua não contempla nem permite. O poeta gosta da janela porque ela representa a liberdade. Todos temos uma janela e o importante é abri-la e dar asas à solidão. Voar. A porta dá para a rua, a janela para o mundo. Dois modos diferentes de entrar no mundo. O dela é o da janela. O dele é o da rua. Juntos entram no mundo pela porta e pela janela. E encontram-no com o olhar e com a fantasia. Como o poeta. Que é mais da janela do que da rua:

“O MEU MUNDO
É a janela,
O da rua
É o teu,
É dela que
Eu te revejo,
Na rua
Já não sou eu.”
Janela2024

“A Janela”. JAS 2022 

PAISAGENS

Não digo, como ele (o Bernardo Soares), que, na minha poesia, não tem importância o que confesso (como sujeito poético) ou, então, que faço férias das sensações. Falo em nome do poeta. Autorizado, claro. Mas tento fazer paisagens daquilo que sinto. Isso, sim. Paisagens interiores que partilho com os que me acompanham na viagem. E a febre diminui. Mas que há febre, lá isso há. E há musas, claro. Poucas, mas há. E fantasmas. Mas com eles convivo bem. Fazem parte da paisagem e estão sempre à espera dos beijos escritos que mando às musas… para os beberem, pelo caminho. Alimentam-se deles. E eu sei disso. Por isso é que tenho de estar sempre a enviar beijos escritos, para ver se algum chega ao destino. E como não sei se chega, tenho de estar sempre a enviar. Como Sísifo. É como chegar à montanha, regressar e logo ter de voltar a subir… com palavras às costas. A montanha é o Parnaso, neste caso. E eu tenho (nós temos) um Parnaso que tem outro nome e tem cerca de dois mil metros. Subi-lo não é, pois, coisa fácil. Ah, sim, o Bernardo era mais desprendido do que eu.

PERDÃO

O poema é perdão cantado. E pedido. E a pintura é exaltação. A beleza cromática anima o discurso estético do poema. Uma coisa é certa: o tempo leva-nos rio acima ou rio abaixo, levados (também) pelo desejo de a encontrar, a beleza. Na fonte ou na foz, que é aí que mais ela se dá. Pelo caminho, rio acima ou rio abaixo, ela, a beleza viva, vai inocentemente pecando. E ficam cicatrizes. As do embate com a vida. É assim. Mas há sempre quem procure a beleza na sua pureza original (na fonte) ou na sua densidade existencial, já profundamente marcada (na foz), para a recriar ou simplesmente a fruir. E o tempo tem esse poder de esculpir as vidas ou de as deixar toscas, à deriva, no rio que corre sempre sem parar. Mas é verdade, as palavras são barcos em que sempre podemos embarcar para melhor navegarmos neste rio tumultuoso da vida. Rio acima ou rio abaixo. Quem decide é o tempo, sim… mas também o desejo. A ponto de, aliado com as palavras, os riscos e as cores, quase se poder, imprudentemente, desafiar o tempo ou o destino e ir rio abaixo ou rio acima à procura da beleza perdida ou nunca encontrada. É este o risco que os artistas e os amantes da arte sempre correm. Porque o tempo e o destino são poderosos e podem provocar naufrágios existenciais e, pior, artísticos. Mas vale bem a pena navegar se pudermos aportar à foz da sedução, que atraia a sensibilidade e a ponha a levitar, com palavras ou com riscos e cores. Então valerá a pena. Seduzidos e felizes. Mas nunca é certa e segura esta viagem, porque há rápidos e escolhos contra os quais podemos embater. Mas o risco faz parte da vida… e da poesia. JAS@03-2024

Jas28Luzna Montanha2021Rec

“Luz na Montanha”. JAS 2021. Detalhe

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