YOU MUST LOOK AT FACTS
BECAUSE THEY LOOK AT YOU
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 04-2024
ONTEM, às 18:00, tomou posse o minoritário 24.º Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro. Houve dois discursos, o do Presidente da República e o do Primeiro-Ministro empossado. Nada de muito importante, a não ser três referências que, “sem jogos de semântica”, merecem algum destaque: 1) a distinção feita por Luís Montenegro, referindo-se ao PS, entre fazer oposição e comportar-se como força de bloqueio, numa vaga alusão à velha doutrina de Cavaco Silva; 2) a vontade de cooperar com todos, todos, todos, sem ter referido os 50 deputados do CHEGA e o milhão e 170 mil eleitores que votaram nele; 3) a vontade de, sendo um governo com um suporte ultraminoritário no parlamento, querer fazer reformas estruturais. Uma antecipação do discurso que fará por ocasião da apresentação do Programa de Governo no Parlamento e a primeira fase da longa campanha eleitoral que se seguirá. Mas vejamos como estão realmente as coisas.
1.
De uma maioria absoluta passou-se a uma absoluta minoria, devido a uma mais do que duvidosa injunção do ministério público na política – a inopinada demissão de um primeiro-ministro que dispunha de maioria absoluta no parlamento, eleições e a formação de um novo governo que dispõe, à prova dos factos, sim, de uma minoria absoluta no Parlamento. Viu-se como funcionará esta minoria, no futuro, considerando o processo de eleição do actual Presidente da Assembleia da República. Só com a muleta do principal partido de oposição conseguiu eleger o seu candidato, embora, a tomar em consideração a dimensão dos grupos parlamentares, devesse ter sido eleito, para os dois primeiros anos, o candidato do PS, pois este é o maior partido presente na AR (tem mais votos do que o PSD). Erro do PS? Não sei, mas parece. O CHEGA, depois da confirmação do cordão sanitário que a direita moderada (e toda a esquerda) criou à sua volta, declarou que esta minoria absoluta não iria contar com o seu apoio para formar uma maioria absoluta. Não é estranha, esta posição. E, à esquerda, que, no seu conjunto, dispõe de mais 4 deputados do que a base parlamentar de apoio do governo, sendo natural que se comporte politicamente como oposição, não parece razoável pedir, em nome do estafado sentido de Estado que agora serve de bandeira aos seus serviçais televisivos, que se junte à minoria e, em sede de orçamento, dê o seu generoso aval ao governo. Em nome do supremo ideal da estabilidade, o mesmo que não inibiu o PR de dissolver um Parlamento estável e que não impediu António Costa de se demitir-se apressadamente, logo a seguir a um suspiro da senhora PGR. Sim, não fazer oposição ao país parece ser razoável, como diz o deputado Brilhante Dias, mas o que não parece razoável é fazer fretes a um governo de direita absolutamente minoritário, quando esse mesmo governo poderia, caso quisesse, dispor de uma confortável maioria absoluta. Nestas circunstâncias, e a manter-se a actual situação, o orçamento de Estado será chumbado e o Presidente da República, se seguir a linha política já por três vezes por si adoptada, e designadamente em 2021, deverá, em Novembro, dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.
2.
O processo de lawfare não foi, como esperavam, devidamente concluído e, por isso, continuaremos a assistir às prédicas dos papagaios de serviço, a cânticos auspiciosos em honra do sentido de Estado e da estabilidade. Por exemplo, na SIC, o canal do PSD. O que, entretanto, urge saber é se quem manda no ministério público é a Procuradora-Geral ou o sindicato dos magistrados do ministério público. E, já agora, se quem decide os critérios para a escolha do Procurador-Geral é o sindicato ou os representantes do povo soberano. Esta deveria ser, sim, uma preocupação do governo e do Parlamento, uma vez que está em causa a relação do poder político – e, através dele, do povo soberano – com o poder judiciário, uma vez que é em nome da colectividade que ele actua e é dela que deriva a sua legitimidade. Mas em Portugal parece que quem decide da validade do voto popular é este mesmo ministério público que responde apenas perante si e já nem sequer perante o topo da sua própria hierarquia, sabendo-se que há na Europa países onde o ministério público “faz parte integrante do executivo e está subordinado ao ministro da justiça (por exemplo, na Alemanha, na Áustria, na Dinamarca ou nos Países-Baixos)”, como se lê num Relatório (de 03.01.2011) da Comissão de Veneza do Conselho da Europa sobre o Ministério Público *. Mesmo assim, nada impede que o topo da hierarquia, confortado pela Presidência da República, que o nomeia (sob proposta do governo), sempre possa emitir devastadores comunicados públicos que suspendem a soberania popular na sua forma de mandato eleitoralmente conferido.
3.
A verdade é que separação de poderes não significa igual legitimidade entre o poder judicial e o poder político, porque se este é portador de uma legitimidade de primeiro grau, ou seja, ontológica, aquele só é portador de uma legitimidade derivada, de segundo grau, ou seja, meramente técnica, e, por isso mesmo, a separação de poderes também não pode significar incomunicabilidade entre os poderes ou separação absoluta, o que acabaria por negar o carácter democrático do próprio regime. Na verdade, o que se espera é que o poder político defina com rigor estas relações, tendo sempre presente a natureza do Estado de direito democrático. Uma boa clarificação poderia evitar casos como este.
4.
Entretanto, haverá eleições europeias, em Junho, e os resultados tornarão a situação política mais clara, em qualquer dos casos, certifiquem elas ou não os resultados das legislativas de Março. Elas não modificarão a geometria política, a relação de forças no parlamento, mas darão ulteriores indicações para o rumo a seguir pelos principais protagonistas, o PSD, o PS e o CHEGA. A mais recente sondagem da IPSOS (divulgada ma passada sexta-feira pelo jornal “SOL”) dá uma vitória tangencial ao PSD e uma ligeira quebra do CHEGA, que conseguiria eleger 3 eurodeputados (e, de novo, igual número de mandatos para o PS e o PSD). Se este quadro se verificasse, nada de essencial mudaria. Mas se o PS vencer as eleições, confirmando-se como o maior partido, a fragilidade política do governo aumentará. E muito mais se o CHEGA confirmar o seu score eleitoral ou até o aumentar. Por isso, o mais provável é que a imediata acção do governo que ontem tomou posse seja, por um lado, tomar medidas que visem reforçá-lo nas próximas eleições europeias e, por outro, preparar-se para eleições legislativas a curto prazo. Ou seja, este governo provavelmente tornar-se-á uma mera máquina eleitoral para preparar um seu futuro politicamente mais robusto. Continuaremos, pois, em intermezzo eleitoral, ou seja, em permanent campaigning. Uma prática que tem vindo a contribuir para o descrédito da própria política e, consequentemente, da própria democracia.
5.
Em qualquer caso, a esquerda não tem maioria no parlamento. E a direita moderada, se quiser manter-se no poder, deverá retirar o cordão sanitário ao CHEGA e com ele negociar. Trata-se, afinal, de um partido constitucionalmente reconhecido, havendo no interior do PSD muitos que o reconhecem como possível aliado. Na verdade, nem se trataria de algo insólito pois a direita radical faz parte de soluções governativas em vários países da União Europeia (por exemplo, na Suécia ou na Finlândia) e governa, por exemplo, em Itália e na Hungria, tendo já governado também na Polónia. Aqui ao lado, o PP governa comunidades em aliança com o VOX. E eu creio que a assunção de responsabilidades é sempre uma excelente via para a moderação e para pôr à prova o verbo (ainda que desmedido) que se exibe quando isso não implica assunção de responsabilidades perante o país. Mas esse compromisso e o abandono do radicalismo verbal e anti-sistema talvez tenha também como resultado uma efectiva redução eleitoral, pois o discurso de tipo tablóide, que atrai audiências, tenderá a reduzir-se. A segregação do CHEGA, pelo contrário, levá-lo-á a colocar-se fora do sistema, a suscitar uma forte polarização da atenção social e a lutar com redobradas forças para chegar a primeiro partido, a única forma de chegar ao poder. O caso italiano é muito ilustrativo do que também aqui pode vir a acontecer. O Fratelli d’Italia foi o único partido que não integrou a grande coligação de apoio ao governo de Mario Draghi (02.2021-10.2022). O resultado foi uma subida de 4.5%, em 2018, ou de 6,4%, em 2019, nas europeias, para 26%, nas legislativas de 2022. Este caso, onde a líder sempre exibiu um carisma e uma capacidade de controlo do partido muito alta, certamente está a ser tomado em séria consideração por André Ventura, que dispõe das mesmas condições (e não exibe o mesmo grau de filiação histórica num passado de regime ditatorial).
6.
Tenho a convicção de que não existe actualmente uma clara percepção pública da distinção entre uma parte consistente do centro-direita e o centro-esquerda, sobretudo porque o PSD mantém uma posição política e ideológica ambígua, a começar logo no nome. E esta posição de intransigência confirma essa incapacidade de assumir sem tibiezas o espaço político que realmente ocupa ou deveria ocupar, ainda que a linguagem dos adversários o qualifique sistematicamente como partido de direita. Foi também por isso que apareceram, à direita, dois partidos que, somados, exibem uma força eleitoral quase igual à sua (CHEGA e Iniciativa Liberal, hoje com cerca de 24% e 58 deputados). É uma questão antiga que representa a sobrevivência de resíduos ideológicos do tempo do PREC, em que este partido se afirmava, e cito o seu “Programa do Governo”, de Abril de 1976, “fazem parte do nosso ideário e das metas a atingir os valores do socialismo democrático”, posição que, de resto, já vinha do Programa do PPD, de Novembro de 1974. Esta identificação acentuou-se recentemente com a liderança de Rui Rio e não se alterou com Luís Montenegro, que numa campanha eleitoral interna afirmou que o PSD não tem problemas existenciais, como que a dizer que a clarificação acerca da sua identidade política nada interessaria. Pois parece que, afinal, interessa, pois não se dando, teimosamente, com o vizinho – alguém que, afinal, antes até habitara a mesma casa – porá em causa a própria sobrevivência (enquanto partido de governo). Eu creio que o problema é mesmo de natureza existencial, antes de ser político (embora também seja). Ou seja, o PSD nem assume que é um partido claramente de direita ou de centro-direita nem assume que o espaço da social-democracia sempre esteve efectivamente ocupado pelo PS. E esta situação, sendo factor de confusão para os eleitores, muitos deles, à direita, acabaram por preferir a clareza do CHEGA (ou da Iniciativa Liberal), votando nele. Sabemos que o bipartidarismo está hoje em crise um pouco por todo o lado, sendo também certo que esta sobreposição dos dois maiores partidos num mesmo espaço político (e apesar de a nova middle class representar mais de 50% do eleitorado nas sociedades avançadas) contribuirá para aprofundar a fragmentação do nosso sistema de partidos, designadamente na área do bloco de direita, como vimos. Uma tendência já presente na sociedade civil, naqueles que não se sentem representadas por um partido que, como o PPD de outrora, tendia a representar uma ampla federação de tendências, em largo espectro (como acontecia, por exemplo, com a velha Democracia Cristã italiana).
7.
Mas confesso que também não vejo grande clarificação à esquerda, sobretudo agora que o discurso parece cada vez mais esgotar-se na ideologia das contas certas e na subordinação da política à gestão comunicacional dos grandes números, sem reconhecer que essas contas certas se devem à pauperização fiscal dos contribuintes, reforçada, mais recentemente, pelos efeitos da subida da inflação. Acresce uma permanente e quase obsessiva exibição do Estado Social, apesar de este estar a exigir uma profunda revisão e não só pela sua reconhecida ineficiência. O excesso de prestações do Estado não só leva à sua própria ineficiência pela crescente assimetria entre uma elevada procura e uma efectiva escassez de recursos disponíveis (uma equação sem solução, vista a dimensão do universo abrangido) como também gera imobilismo social num país que do que mais precisa é de ser estimulado a produzir, a inovar e a sair das suas zonas de conforto. O Estado deve estar lá onde é necessário, sem dúvida, mas não pode estar em todo lado e até a fazer o que compete aos indivíduos singulares fazerem. De facto, não me parece muito saudável que se proceda a uma inversão total da famosa e feliz frase do discurso inaugural de John Kennedy: não te perguntes o que podes fazer pelo teu país, mas sim o que o teu país pode fazer por ti. O Estado-Caritas e o Estado-Fiador não me parece serem os melhores modelos para resolver os nossos problemas de desenvolvimento e de crescimento. Mas o excesso de visão comunitarista, e de amplo espectro, é a isso que leva, com consequências desastrosas para o país. Acresce ainda que, à esquerda, se está a verificar uma pouco interessante tendência para a resolução da crise ideológica através da importação generalizada do discurso da esquerda identitária dos novos direitos. O que só agrava as coisas, dando ulteriores pretextos para um reforço doutrinário e político da direita radical, que imputa a todo o establishment (e com alguma razão) esse discurso.
8.
Não se adivinham tempos fáceis. O governo para sobreviver tem de dedicar uma boa parte da sua energia a isso, mas também tem de decidir em matérias que há muito estão imobilizadas, não tendo, todavia, força política para isso. Se a situação, com uma maioria absoluta, já estava socialmente explosiva, agora, com um governo frágil e com todas as condições para ficar paralisado, a probabilidade de, a breve trecho, haver novas eleições é enorme, apesar do enorme optimismo e determinação que Montenegro pôs no seu discurso de tomada de posse. É evidente que o terceiro governo de António Costa enfrentou consecutivas crises internas e que a qualidade dos membros que o integravam suscitava muitas dúvidas, mas não foi isso que levou a novas eleições. O que levou a novas eleições foi a injunção política do poder judiciário e a prontidão com que António Costa deitou a toalha ao chão, sem cuidar de defender o mandato que os portugueses lhe confiaram, até pela leveza desse suspiro discursivo da senhora Procuradora-Geral da República no ambiente rebuscado e algo insidioso do Palácio de Belém. O que seria paradoxal era um governo de minoria absoluta durar mais (uma inteira legislatura) do que um governo de maioria absoluta (que só durou cerca de dois anos), com a benevolência do proscrito e com a condescendência quer do castigado PS quer (já agora) do seu carrasco, aquele que, em qualquer circunstância, terá sempre o poder de declarar, por comunicado, a falência de um qualquer mandato popular, mesmo que seja absoluto.
NOTA
* “Rapporto sulle norme europee e in materia di indipendenza del potere giudiziario. Parte II: il pubblico ministero. Adottato dalla Commissione di Venezia alla sua 85ª sessione plenária” (Venezia, 17-18 dicembre 2010). JAS@04-2024
