O DUPLO VALOR DAS EUR0PEIAS
João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2024
DIGO-O DE IMEDIATO: as legislativas deixaram um quadro político algo confuso e frágil, com um partido a governar sem condições para exercer realmente o poder executivo (por mais aeroportos, pontes ou TGVs que anuncie), dando forma a uma efectiva separação de poderes, que tão maltratada tem sido no nosso país. Talvez seja por isso que, paradoxalmente, Luís Montenegro diz que está a gostar muito de ser primeiro-ministro – uma certa sensação de inebriante vertigem de quem sente ali ao lado a força gravitacional do precipício. Há até quem já identifique, e com alguma razão, a governação através do conhecido conceito de governo de assembleia, baseando-se nas mais recentes medidas impostas pelo parlamento.
1.
Na verdade, não estamos perante a clássica geometria da relação binária entre maioria e minoria, mas sim perante três blocos políticos em geometria variável, onde o bloco que governa é somente o segundo em força parlamentar, a seguir ao bloco da esquerda, pois rejeita (veremos até quando) a mobilização política da ala mais à direita da geografia parlamentar. Está, pois, preso apenas por dois deputados (os do CDS), que, em boa verdade, para mais nada servem, ou serviram, do que para justificar a indigitação do líder da AD (isto é, do PSD) como primeiro-ministro. Em síntese, não se tratando de uma maioria absoluta, também não se trata sequer de uma maioria relativa. É, sim, uma absoluta minoria sem suficiente legitimidade para governar. Na verdade, quem governa é o partido que, não sendo o maior partido da Assembleia, recusa, mesmo assim, sistematicamente, assumir a necessária aliança com a direita radical, ou seja, com o CHEGA. É um facto comprovado que a formação do actual governo teve como condição implícita a impossibilidade de a esquerda de maioria relativa (em relação ao dito bloco do centro-direita) poder formar governo, por uma única razão: a declarada oposição do partido CHEGA e, claro, da AD. Ou seja, pela oposição de 138 deputados, num parlamento de 230. Mas a convergência acabou aí, como se está a ver. Não se verificou na eleição do PAR, no IRS, nas portagens. Viu-se agora, e mais uma vez, a convergência com o PS, no caso do novo aeroporto. E também já se percebeu que o CHEGA nunca aceitará fazer acordos ocultos, por baixo da mesa, com o PSD, por razões facilmente compreensíveis. Com a dimensão que tem, ele exigirá sempre público reconhecimento de eventuais acordos (de governo ou parlamentares) que venha a celebrar com o PSD. O que é natural: aspira a ser reconhecido como força política que pode legitimamente integrar o arco governativo. Alguém dizia, e com alguma razão, que, nestas condições, ou circunstâncias, o verdadeiro adversário do CHEGA já não é o PS, mas sim o PSD, porque a sua ambição é mesmo vir a superá-lo eleitoralmente, colocando-se, então sim, como efectiva alternativa de poder ao PS. Ventura terá sempre bem presente o que aconteceu em Itália com o partido Fratelli d’Italia. Disso não duvido.
2.
Nestas circunstâncias, o actual quadro político não pode gerar clareza em relação ao processo decisional. Vive-se num ambiente de grande mobilidade ou de aleatoriedade decisional. O que é reforçado ainda mais pela atitude de manifesta arrogância de um governo que não tem suporte nem legitimidade que bastem no quadro parlamentar. Mas talvez seja isso mesmo: uma certa vertigem inebriante devida à proximidade do precipício. O que acontece é que, no fim, o cidadão não fica em condições de poder imputar com clareza a responsabilidade pelo que, no fim dos complexos processos de decisão, acabará por acontecer nas matérias que forem sujeitas a intervenção parlamentar. E ao governo restar-lhe-á sempre a possibilidade de dizer, qual patinho feio, que não o deixam governar, colocando-se, assim, na posição de vítima para pedir compaixão eleitoral à cidadania em próximas eleições, transformando-se, então, num belo cisne.
3.
É por isso que me parece que estas eleições europeias poderão ser decisivas para alavancar decisões clarificadoras em relação ao actual quadro político. Até porque não será olhando para os programas eleitorais europeus dos dois maiores partidos que o cidadão poderá orientar o seu voto, dada a forte convergência de linguagem e de posicionamento em relação à União Europeia, de resto, muito pouco instrutivos para a decisão (que, na origem, significa precisamente escolha). Mas também não será olhando para as escolhas partidárias dos candidatos a eurodeputados, pouco claras em relação à genuinidade da vocação europeia dos que aspiram a sentar-se na bancada do PE ou à eficácia da sua acção enquanto europarlamentares. Atenho-me, como se compreende, aos critérios de escolha dos candidatos e não às suas qualidades pessoais. Refiro-me, por exemplo, à escolha dos cabeças de lista, de deputados acabados de eleger para a AR, de autarcas em fim de mandato, dando ideia de que se trata mais de compensação por serviços prestados ou por aposta na visibilidade televisiva dos candidatos do que de qualquer outro critério. Por isso, talvez nunca, como desta vez, o voto para o PE tenha tido um significado nacional tão intenso, a par de um significado europeu tão pífio, se atendermos aos programas apresentados, uma ronda discursiva em europês e essencialmente em torno do que já está em curso na UE. Melhor, talvez nunca eleições europeias tenham suscitado um tão intenso imperativo nacional do voto como este. Sou europeísta convicto (fiz na Europa uma boa parte da minha vida), mas mesmo vivendo (ou tendo vivido) a União Europeia – com o COVID, a Guerra Rússia-Ucrânia e a crise da energia que dela resultou, a crise inflacionista e a alta de juros, a situação explosiva no Médio-Oriente, a pressão migratória, o avanço europeu da extrema-direita – uma situação tão complexa e delicada como a presente, a verdade é que nem a dimensão da nossa representação (21 eurodeputados em 705) nem a vocação europeia dos candidatos a representantes ou a qualidade das propostas que os dois partidos avançam nos seus programas eleitorais resultam ser tão importantes para o eleitor como a urgência de uma clarificação em matéria de política interna. Este voto será mais útil politicamente se for determinado pela situação política nacional do que se for determinado pelas variáveis em causa numa eleição europeia. Pelo menos nas condições em que esta agora ocorre. Já quanto ao CHEGA, se a sua pulsão eleitoral, em termos nacionais, é clara, também o seu posicionamento europeu o é, pois ele, sem propor a saída da União, alinha com uma visão minimalista da União alicerçada num soberanismo assente numa Europa da Nações. E, todavia, o resultado que este partido obtiver será também de grande importância para uma clarificação do quadro político interno.
4.
A verdade é que se se verificar uma clara derrota da chamada AD, então ficará claro que urge mudar de vida e preparar rapidamente uma nova ida a votos em legislativas para obter um quadro político mais definido e eficaz e uma governação com efectivo suporte parlamentar e maior legitimidade. Ou, então, provocar uma mudança profunda nas relações políticas à direita de modo a que esta possa governar num quadro estável com uma maioria absoluta no parlamento. Que existe e é (numericamente) robusta. Só que esta solução não poderia contar com o actual primeiro-ministro, dada a sua reiterada inflexibilidade em relação ao CHEGA. Muitas serão as vozes que, neste caso, se levantarão a exigir que se ponha de pé esta última solução, argumentando, não sem alguma razão, que, por um lado, em ulteriores eleições o quadro actual não mudará substancialmente e que, por outro, é isto que já se verifica em inúmeros países da União. Ou seja, a direita nunca poderá dispor de uma maioria absoluta se não integrar o partido CHEGA numa solução de governo ou pelo menos parlamentar. Os resultados europeus ajudarão a clarificar este quadro.
5.
Estas eleições são, pois, mais decisivas para clarificar o quadro político interno do que para eleger qualificados representantes de Portugal no Parlamento Europeu que possam promover, neste quadro, um país mais influente e uma melhor União. Acresce que, olhando para os programas eleitorais dos dois partidos, o que se constata é que muitas matérias importantes ficaram fora dos programas eleitorais: 1) Como promover uma consistente e necessária cidadania europeia, aquela que o CHEGA rejeita? 2) Que reforma institucional para a UE, de modo a tornar possível a sua emergência como efectivo protagonista internacional dotado de poder de decisão e de legitimidade directa? 3) A questão de uma Constituição para a União foi definitivamente abandonada? Qual a posição destes dois partidos sobre esta matéria? 4) Que é feito do projecto de harmonização fiscal na União? 5) A União deve limitar-se a fiscalizar as grandes plataformas digitais americanas (e a chinesa do Tik Tok) ou deve ela própria promover a criação de uma potente plataforma digital europeia, visto o poder destas plataformas sobre os processos eleitorais, a ponto de se poder dizer que já correspondem a uma efectiva terceira constituency (depois da do cidadão contribuinte e da das grandes plataformas financeiras que detêm dívida pública)? 6) E, já agora, por que razão os dois partidos não mencionam sequer a necessidade de reforçar o protocolo entre a Comissão Europeia e as grandes plataformas digitais (Google, Youtube, Facebook, X, por exemplo) para combater a desinformação, tal como aconteceu nas eleições de 2019? 7) O mesmo vale para as agências de rating, poderosas avaliadoras do estado financeiro de empresas e países, gerando efeitos substanciais sobre o serviço da dívida – para quando, pois, a criação de uma agência de rating europeia? 8) E, a quem tanto defende a língua portuguesa, não será legítimo perguntar por que razão o “esperanto” da União Europeia é, cada vez mais, uma língua que nem sequer é língua nativa de algum país da União, com consequências devastadoras para as línguas dos países membros, em vários planos? 9) Que sentido faz virem (PS e PSD) falar de uma quinta liberdade, a do conhecimento e inovação, a que o senhor Enrico Letta se refere, como se isso não existisse já (até em excesso, quase diria), a começar logo pelo protocolo de Bolonha? A verdade é que em Portugal nada vale em matéria de investigação e de inovação se não for internacionalizado e escrito em inglês; 10) Que concreta avaliação global é feita do mandato da senhora Ursula von der Leyen, uma vez que vai ser escolhido um novo presidente da Comissão? 11) E que balanço da acção do PE, que cessa funções, designadamente do trabalho das nossas representações? 12) Como resolver concretamente o caos do fenómeno migratório, sem perder a face humanista, mas pondo ordem no processo e sobretudo resolvendo esse sentimento de culpa que parece estar a ser sofrido pelos europeus e a ser injustamente induzido na opinião pública? 13) As competências do PE já atingiram o seu zénite e não precisam de ser reforçadas, designadamente em matéria de iniciativa legislativa?
6.
Muito mais haveria, pois, a dizer do que aquilo que se encontra nos programas dos dois principais partidos, sendo também certo que a transição digital e ecológica está em curso, que o accionamento tempestivo de resposta a crises foi feito e com sucesso na crise energética e na crise sanitária, que a resposta comunitária, em matéria de sanções, à invasão russa da Ucrânia foi rápida e unânime, que o modelo social europeu é um virtuoso exemplo mundial, que a intervenção financeira do BCE já conheceu momentos de grande eficácia comunitária (com Draghi, por exemplo) e que já existe também um Banco Europeu de Investimento, que a conectividade (nas zonas de baixa densidade) está na ordem do dia (também em Portugal, embora esteja a ser feita de forma absolutamente inaceitável, com fios colocados em arraial-minhoto e em total insegurança – veja-se, por exemplo, o concelho da Guarda), e que, finalmente, a igualdade de género está na ordem do dia. Sim, tudo isto e muito mais, mas é também certo que alguma responsabilidade caberá aos Estados Membros na resolução do problema da habitação e do da protecção dos desempregados, não sendo aceitável que, um dia destes, acabemos por ver os partidos da alternância, aproveitando o balanço destes seus programas eleitorais, dizer que a culpa da falta de habitação ou da insuficiência do apoio aos desempregados é toda ela da União Europeia, alijando, de vez, as responsabilidades. O primeiro andamento já se conhece: o problema – ou os problemas – não é só nacional, pois toda a União o está a sofrer. O segundo andamento será, pois, o de exigir à União que o resolva…
7.
Chegados aqui, apetece-me mesmo dizer o que o outro dizia sobre uma tese de doutoramento em apreciação: a sua tese tem coisas originais e coisas boas, só que as coisas boas não são originais e as coisas originais não são boas. Foi mais ou menos esta a sensação com que fiquei ao ler os dois programas eleitorais. Que me perdoem os que os escreveram, mas é verdadeiramente o que penso. E até penso em algo mais: que os programas deveriam ter o essencial dos curricula dos candidatos (afinal, é a eles, e não aos programas, que nós elegemos) e que, em vez de listas de medidas avulsas, os programas deveriam apontar somente as principais prioridades e de forma argumentada. Afinal, os programas são instrumentos que servem para ajudar o eleitor a tomar as suas decisões em relação aos candidatos a eleger (embora a coberto de siglas partidárias e em listas fechadas).
Já quanto ao programa do terceiro maior partido, o do CHEGA, é, como vimos, o que já se esperava: soberanista, minimalista em relação à União e anti-federalista. Defende a permanência na União, mas na sua versão minimalista, em coerência com aquela que é a visão dominante na direita radical europeia – a Europa da Nações.
8.
Termino, fazendo, em nome do que fica dito, uma confissão pessoal: o meu voto será muito mais determinado pelos seus efeitos na política nacional do que pelo entusiasmo que me possa motivar a proposta programática ou os candidatos do meu próprio partido, o PS, no qual votarei. JAS@05-2024
