AS FRONTEIRAS DO PODER JUDICIAL
João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 05-2024
A PROPÓSITO do famoso Manifesto dos 50 sobre a necessidade de reformar a justiça e, claro, a propósito do ainda mais famoso parágrafo do comunicado que o suscitou e que haveria de acabar com o governo de maioria absoluta do PS, pareceu-me oportuno repropor, com excepção da pequena parte relativa ao primeiro subtítulo, por nada de novo acrescentar em relação ao que aqui está em causa, e de pequenas actualizações, alterações de forma e de oportunidade, o essencial do artigo que publiquei num jornal digital (“Tornado”), em 5 de Janeiro de 2018, e que viria a ser reproduzido na íntegra, e com destaque de primeira página, no jornal angolano “O País”, sobre o caso da acusação judiciária ao Vice-Presidente de Angola, Manuel Vicente. Tratando-se de um caso com pesadas consequências internacionais – diria mesmo um caso-limite – permite compreender melhor a atenção que devem merecer certos processos judiciais (este, em análise, ou o mais recente da queda do XXIII governo constitucional) pelas relevantes implicações que eles têm sobre o sistema político e, neste caso, também sobre as próprias relações internacionais. Este artigo é o primeiro de outros que aqui irei publicar sobre esta matéria.
INTRODUÇÃO
A acusação formal ao Vice-Presidente de Angola pelo Ministério Público português, num caso de corrupção, suscitou-me algumas reflexões que gostaria de partilhar. Porque, na verdade, o caso me pareceu politicamente muito complexo e delicado. Em particular, pelos efeitos que provocou no sistema de poder angolano, quando estava em curso um processo eleitoral e uma complexa transição de poder, mas também nas relações bilaterais, tendo causado a suspensão da visita da Ministra da Justiça a Angola. E até me pareceu que seria legítimo pensar, pelo simbolismo e alcance da decisão, que o Ministério Público português acabou por assumir o poder de “declarar guerra” a um Estado estrangeiro soberano. Sim, porque Manuel Vicente era um cidadão estrangeiro, número dois do Estado angolano e, por isso, também detentor de imunidade diplomática, não se sabendo sequer qual o destino que teriam as cartas rogatórias enviadas e não estando o alegado ilícito enquadrado no raio de acção do Tribunal Penal Internacional, dada a sua natureza. Temos, pois, neste caso, ingredientes mais do que suficientes para suscitar uma reflexão profunda sobre os limites da acção do Ministério Público (MP). Num registo muito claro e limitado: a acção e os seus efeitos sobre o sistema de poder angolano e sobre as relações entre os nossos dois países. Trata-se de um caso extremo e isso ajuda a compreender melhor o traçado das fronteiras do poder judicial (ou judiciário).
O CASO
Um procurador português foi acusado de ter arquivado um processo que visava Manuel Vicente – acusado formalmente pelo MP, enquanto corruptor -, a troco de dinheiro. Coisa grave, sem dúvida. A começar pelo próprio MP que, através de um dos seus, se viu envolvido em actos de corrupção. E a acabar em alguém que se encontrava nesse momento no vértice de um Estado soberano com quem Portugal tem relações muito estreitas. E é aqui que surge o problema e a dificuldade. Ou seja, o problema da relação entre meios e fins, entre causas e efeitos, quando a desproporção se torna gigantesca, colocando-se a questão da adequação de uns em relação aos outros. E quando os efeitos se tornam incomensuravelmente maiores do que as causas, como dizia François Furet a propósito das causas e dos efeitos da Grande Guerra sobre a história mundial. Pode haver pequenos gestos (que até sejam correctos) que, por conterem em si um grande potencial devastador, devam ser muito bem avaliados antes de serem praticados. Às vezes, o problema até se pode resolver com o bom-senso. Mas quando se trata de instituições do Estado é mesmo obrigatório introduzir sempre nos processos decisionais a variável “consequências” (sobre a sociedade, sobre as gerações futuras ou sobre as relações internacionais). Porque, na verdade, alguns actos de normal e justificada administração podem induzir efeitos em boomerang tão intenso sobre o sistema que seja aconselhável evitá-los ou tratá-los com o maior cuidado. No caso do Vice-Presidente de Angola, os autores da acusação formal e a hierarquia do Ministério Público calcularam os efeitos devastadores que esta acusação formal – e a correspondente divulgação – poderia ter? Angola é um Estado soberano e o acusado era a segunda figura deste Estado. Não poderia esta acção vir a ser considerada, como, de resto, foi, um acto de agressão de Portugal a Angola, com todas as consequências que isso poderia ter, designadamente para as empresas e pessoas que estavam estabelecidas neste país e para as relações entre dois Estados soberanos com tantos interesses comuns? O MP tem o poder de “declarar guerra” a um Estado soberano, provocando efeitos infinitamente superiores à causa que motivou essa acção? Alguém diria: “É a política, estúpido!”. E com razão.
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
O que não deixa de ser curioso é que Manuel Vicente foi também atingido na Operação Marquês, por contactos mantidos com José Sócrates, ao mesmo tempo que era uma figura em queda no sistema de poder angolano, primeiro na Sonangol e, depois, na Presidência, uma vez que foi preterido em relação ao então anunciado sucessor de José Eduardo dos Santos, João Lourenço. A pergunta maliciosa que ocorre fazer é a seguinte: com esta acusação não estava o Ministério Público português a interferir no processo de defenestração política de Manuel Vicente, em Angola? Se o visado fosse, por exemplo, João Lourenço o MP agiria nos mesmos moldes? E com que consequências? E esta acusação tinha alguma relação simbólica com o desenlace da Operação Marquês (por via de Sócrates e de Ricardo Salgado)? Porquê, então? O “Expresso” dava, então, bem conta dos efeitos desestabilizadores que esta acção do MP estava a ter numa Angola que se preparava para eleições, para uma profunda transição no poder e para novos reequilíbrios de poder.
De qualquer modo, e até por estas razões, este era um dos casos em que o efeito era certamente muito superior à causa e, por isso, deveria ter sido tratado com o necessário cuidado.
O PAPEL DA PROCURADORA-GERAL
DA REPÚBLICA
A pergunta que ocorre fazer é a seguinte: que papel teria tido neste processo a Senhora Procuradora-Geral da República (PGR), enquanto máxima responsável do Ministério Público e pessoa (formalmente) da confiança do poder político? Calculou os efeitos que esta acção do MP iria ter em Angola? É que, pela natureza do cargo, a PGR tem particulares responsabilidades na gestão de dossiers desta natureza, ou seja, de matérias que implicam níveis mais elevados de poder institucional e mais ainda quando se trata de Estados estrangeiros. Não é por acaso que o PGR é proposto pelo Primeiro-Ministro, é nomeado pelo Presidente da República e não tem de ter requisitos formais iguais aos dos outros magistrados. Ou seja, em palavras muito claras, o PGR tem funções que ultrapassam em muito o plano meramente jurídico, devido à sua posição de charneira, de ligação e de interface do poder político com o poder judiciário. Mesmo que os seus poderes sejam limitados, o PGR tem certamente de estar em condições de, pelo menos, exercer uma responsável e eficaz “magistratura de influência”. Para não dizer, de accionar o poder hierárquico de que dispõe. Caso contrário, verificar-se-á um injustificável desequilíbrio entre o seu estatuto e o seu efectivo poder. Por isso, se esta acção do MP fosse considerada como intempestiva e politicamente disruptiva, a Senhora Procuradora-Geral da República teria nisso a sua quota parte de responsabilidade. E, se assim fosse, não deixaria de haver quem passasse a ter saudades dos tempos do PGR Cunha Rodrigues (há dias, na entrevista ao DN, 17.05.2024) considerado por Francisca Van Dunem o melhor PGR “que este país já teve”). Não se discute, de modo algum, que a justiça deva ser cega. Mas, certamente, existem bordões procedimentais que podem ajudar na escolha do caminho mais adequado…
OS MEDIA E A JUSTIÇA
Este assunto chama a atenção uma vez mais – e é isso que aqui, no essencial, está em causa – para o poder excessivo que o poder judiciário está a exibir, e não só em Portugal. Este poder está a transformar-se cada vez mais numa sofisticada e eficaz arma de luta pelo poder. Alguns já usam um conceito para o designar: lawfare. Sobretudo quando se verifica uma crescente personalização da política e, por isso, uma mais fácil imputabilidade (ética e judicial) de quem detém o poder. E, neste processo, o establishment mediático tem-se constituído como importante parte activa, tornando-se ele próprio protagonista de investigações muito pouco claras quanto aos fins. Um ministro ameaça com as suas decisões a posição de um canal televisivo, logo põem 15 ou 20 jornalistas a investigar a sua vida e, depois, com resultados à mão, julgam-no em prime time, ao mesmo tempo que accionam um processo judicial. Chama-se a isto jornalismo de investigação. Que tanto pode ser honesto como desonesto, não esquecendo que os media se comportam como um poder, como referido pelo Tocqueville de “Da democracia na América”. Os casos abundam, para um lado e para o outro. Mas uma coisa é certa: as garantias (jurídicas) que ao longo dos séculos foram penosamente conseguidas, caem como castelos de cartas perante esta novíssima forma de “administração da justiça”. Os casos são cada vez mais frequentes. Acresce, ainda, que se tem vindo a verificar uma promiscuidade absolutamente intolerável entre o poder judiciário e o establishment mediático na gestão dos processos. O mais conhecido é o do ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, com a divulgação ao minuto das peças processuais obtidas por assistentes ao processo que continuam a desempenhar as suas funções de jornalistas sobre o mesmo processo onde são assistentes, mandando às urtigas o código ético a que estão obrigados. O segredo de justiça já passou à história, ultrapassado que foi pelos factos. Não é, todavia, de hoje esta promiscuidade, havendo já uma vasta bibliografia sobre o assunto. O Alain Minc tem dois livros sobre o assunto (L’Ivresse Démocratique, de 1995, e Au nom de la Loi, de 1998).
SEPARAÇÃO DE PODERES?
Mais interessante ainda é a posição dos próprios agentes políticos sobre tudo isto. Em Portugal assobia-se para o lado, na esperança de que a vida pessoal não venha a ser investigada por jornalistas ou pelo Ministério Público, não se compreendendo que, assim, já se está a agir sob coacção, aumentando o poder de quem subtilmente infunde medo. A fórmula é conhecida e já enjoa: “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”; e, já agora, “à imprensa o que é da imprensa”, enquanto, no mais indefinido dos critérios, tudo é considerado de “interesse público”. Muito bem, até poderia ser se a justiça e um certo jornalismo não estivessem cada vez mais a entrar no terreno da política, exorbitando claramente das competências e funções. É-se escutado e investigado, directa ou indirectamente, a pretexto de uma denúncia, que até pode ser anónima. Um modo cómodo e até agradável de investigar, sobretudo se for depois de “refeiçoar”. O espectro de um big brother, que não é político, paira sobre a nossa frágil democracia. É certo que a separação de poderes é fundamental, mas também é certo que os poderes, sendo separados, não são hierarquicamente iguais. E, mais, a separação não pode ser válida num só sentido, o de quem tem o poder de escutar e de perseguir criminalmente. Na verdade, enquanto a legitimidade do poder legislativo é de natureza, digamos, ontológica, a do poder judicial é de natureza derivada e meramente técnica. Só que esta tecnicidade, a que acresce autonomia plena, já se tornou verdadeiramente ontológica, tal foi a mudança qualitativa e o crescimento do seu poder invasivo junto dos outros poderes.
A ANEMIA DO PODER POLÍTICO
A verdade é que por muitas outras razões – designadamente devido à globalização, à dependência dos mercados financeiros internacionais, a que se juntam as famosas agências de rating, à crise da representação, à personalização excessiva do poder e à natureza do novo espaço público – o poder político de natureza representativa está cada vez mais anémico. Mas também é verdade que os agentes políticos nada fazem para reverter a situação, deixando-se, por um lado, nas mãos dos populistas (como está a acontecer) e, por outro, nas mãos de outros poderes (designadamente o mediático e o judiciário) de que estão a ficar, e cada vez mais, reféns. Até pelas fragilidades pessoais que uma boa parte das elites tem vindo a revelar perante a cidadania.
Tudo estaria bem se por detrás desta utopia interesseira e perigosa da transparência total não estivessem também interesses ocultos que se protegem iluminando com os holofotes de serviço os pecadores presentes no palco da política, ao mesmo tempo que favorecem aqueles que, nos bastidores, melhor sintonizam com as suas próprias estratégias e interesses.
ENFIM...
Regressando, pois, ao começo deste artigo, o caso de Angola (tal como o mais recente ocorrido no dia sete de Novembro) levanta uma questão de fundo acerca dos limites da acção do Ministério Público, quando se verifique que ela se inscreve num claro quadro onde os efeitos globais superam em grande medida as causas, implicando dimensões que interferem directamente no funcionamento global do sistema social ou das relações internacionais. O que parece ser o caso de Angola: anulada a visita da Ministra da Justiça (por acaso de origem angolana), em causa a visita oficial do PM a Angola para a resolução de urgentes problemas financeiros das empresas que lá operavam, eleições presidenciais, transição do poder, complexos reajustamentos no sistema de poder angolano, etc., etc…
O poder judiciário tem o dever de se proteger a si próprio, porque quando assistirmos ao fim da sua própria credibilidade, depois da queda de credibilidade do sistema financeiro, o caminho ficará aberto para soluções onde todos temos a perder, incluído ele próprio. E os populismos estão a encontrar cada vez mais terreno fértil para a conquista de um poder que tenderá a não respeitar, esse sim, a separação de poderes. JAS@05-2024
