Artigo

OS PARTIDOS E A CRISE DE REPRESENTAÇÃO

A PROPÓSITO DE UMA INICIATIVA DO PS

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 06-2024

ANALISANDO A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PARTIDOS e dos movimentos eleitorais, em geral, o que se verifica é que a bipolarização entre dois grandes partidos ou blocos políticos que, a seguir à segunda guerra mundial, se foi impondo até aos anos noventa começou a sofrer um lento desgaste a partir desta altura, dando lugar a uma progressiva fragmentação dos sistemas de partidos e à emergência de novas formações políticas, à esquerda e à direita. A causa geralmente atribuída a este desenvolvimento é a chamada crise de representação, associada à queda das ideologias, que alimentavam o sentimento de pertença, mas também às mudanças na middle class, que suscitaram a transformação dos chamados partidos-igreja em catch-all-parties, de baixa densidade e intensidade ideológicas, interclassistas e totalmente dependentes do aparelho de Estado. A lógica da alternância no governo entre estes dois partidos ou blocos de partidos levou à emergência de uma crescente endogamia que curto-circuitou progressivamente as suas ligações à sociedade civil. Entretanto, aconteceu uma profunda mudança na identidade da cidadania, sobretudo pela revolução tecnológica, pelo crescimento da middle class, pela globalização e pela profunda alteração e alargamento das plataformas de comunicação/informação, designadamente pela emergência da mass self-communication, pondo em crise o chamado sentimento de pertença, ancorado nas ideologias e na relação orgânica e territorial entre o cidadão e os partidos políticos. 

1.

E, todavia, no meio de todas estas mudanças e depois da transformação destes partidos em catch-all-parties, a política continuou a mover-se nos carris tradicionais, numa lógica equivalente à das grandes plataformas de comunicação tradicionais, dos mass media, a de broadcasting, vertical e hierarquizada, e a socorrer-se generalizadamente, e cada vez mais, de outsourcing comunicacional, deixando definhar lentamente, em várias frentes, o seu próprio corpo orgânico e territorial e tendo como estratégia central viver e reproduzir-se à custa do aparelho de Estado. 

2.

O que, entretanto, está acontecer, nos nossos dias, com a emergência de uma direita radical politicamente já muito forte, deve-se, por um lado, a esta crise de representação e, por outro, à capacidade desta direita de interpretar com eficácia os vários nódulos críticos da política desenvolvida pelos partidos da alternância ou do establishment, em particular o da redução da política a mera tecno-gestão ou management dos processos sociais e a generalizada assunção acrítica da ideologia identitária dos novos direitos, mas também a um uso competente e eficaz das novas plataformas comunicacionais digitais para fins políticos, como se viu no caso da vitória de Trump e do BREXIT, em 2016. Falo de tudo isto no meu mais recente livro Política e ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s – já disponível na versão digital, em pdf). 

3. 

Sim, são estas as linhas de força da política contemporânea, sem dúvida, mas o que, concretamente, motiva este artigo é a iniciativa, em curso, do PS de abrir as suas sedes nos círculos eleitorais, regularmente, de modo a estabelecer um canal de comunicação permanente com a cidadania. E é claro que o que este partido pretende, com a iniciativa, é precisamente dar resposta à crise de representação e recuperar uma ligação orgânica e territorial mais sólida com a sociedade civil. A começar pelos cidadãos, singularmente considerados. É, quanto a mim, uma boa iniciativa, a que deveriam seguir-se outras na lógica bottom-up e numa dinâmica em rede, para além da lógica broadcasting ou one-to-many, que se continua a revelar, tal como na mass communication, como lógica dominante, mas cada vez mais unilateral e democraticamente pouco consistente. Creio que os anunciados estados gerais também se inscrevem nesta lógica e nesta dinâmica em rede. O que é muito positivo, desde que a pulverização de iniciativas não acabe por resultar numa perigosa fragmentação do discurso político do PS, como discurso para todos os gostos, ou mesmo num deslize fatal para esta insinuante e perigosa ideologia identitária dos novos direitos, com o seu cortejo de frentes centradas numa vasta fragmentação identitária. Risco que só poderá ser evitado se o PS tiver uma identidade muito bem definida – que não as gastas fórmulas que já nada dizem aos cidadãos e que até são partilhadas por outras forças políticas (por exemplo, a  ideologia das “contas certas”) -, em linha com as profundas mudanças que há muito se vêm verificando e que já mudaram o perfil da própria cidadania, designadamente, na sua relação com o novo perfil que o cidadão adquiriu na sociedade digital em rede (ou na nova sociedade algorítmica) globalizada, mas também na sua relação com a matriz da nossa própria modernidade, hoje fortemente combatida quer pela direita radical quer pela esquerda identitária dos novos direitos

4.

É neste quadro que se deve olhar para a iniciativa do PS, mas é também neste quadro que se deve pôr em destaque uma outra questão, sendo, de resto, o PS o partido que está em melhores condições de promover a sua resolução. Esta: os deputados, de acordo com o regimento da Assembleia da República, tendo mandatos universais e representando a nação (e não o respectivo círculo eleitoral), desenvolvem, todavia, o seu trabalho político também nos círculos eleitorais por onde foram eleitos, designadamente ouvindo os seus eleitores sobre aquilo que são as suas expectativas e os seus problemas (“constituency surgery”). Matéria prevista na Constituição (Art. 155.º) e no regimento da AR (Art.16, n. 2, al) a): “Compete ao Presidente da Assembleia da República, ouvida a Conferência de Líderes: a) Promover o desenvolvimento de ferramentas que visem o contacto direto ou indireto dos Deputados com os seus eleitores, nomeadamente a criação de formas de atendimento aos eleitores, a funcionar nos respetivos círculos eleitorais”.

5.

Ora acontece que em Portugal os deputados não têm nos círculos eleitorais um espaço institucional para receberem os cidadãos. Antes, podiam usar os governos civis para esse efeito (o que representava somente um espaço físico disponível, mas não mais do que isso, e uma gentileza do poder executivo para com o legislativo). Agora nada existe. E não se pode argumentar dizendo que há as sedes dos partidos porque os deputados representam a nação, não os partidos e nem sequer os círculos que os elegeram. Têm, todavia, o dever de ouvir os cidadãos e, na lógica de uma divisão técnica do trabalho político da Assembleia, entende-se que o trabalho dos deputados se exerça também no seu próprio círculo eleitoral, por imperativo constitucional (art. 155.º da Constituição: “1. Os Deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente ao indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular “). Só que para que esse trabalho seja eficiente tem de haver, como indica a Constituição, condições para isso. Condições com dignidade e eficazes. Nesta ocasião, em que o PS avança com a iniciativa que referi, deveria ser ele a promover a resolução desta falha inacreditável junto da Presidência da Assembleia, tornando-se seu promotor. Nem sequer seria nova a iniciativa, pois há mais de dois anos um deputado do PS, António Monteirinho, apresentou um requerimento (1/AR/XV/1, de 28.04.2022) ao Presidente da AR, Augusto Santos Silva, precisamente neste sentido, tendo merecido acolhimento e tendo-lhe sido dado andamento administrativo para os serviços com vista ao estudo técnico das soluções possíveis. Iniciativa que, todavia, não teve, até ao momento, sequência prática (que eu saiba).

6.

Parece-me, pois, que esta iniciativa deveria ser assumida pelo próprio PS uma vez que se trata de aperfeiçoar o funcionamento da democracia, melhorando as condições de exercício do mandato de todos os deputados, e não só dos do PS, e podendo, assim, dar resposta às expectativas dos eleitores. Afunilar no espaço político do PS a acção dos seus próprios deputados parece-me desadequado, até porque a acção de um deputado da nação não deve ficar confinada nas fronteiras do seu próprio partido. Pela simples razão de que o seu mandato, enquanto titular de um órgão de soberania, é mais vasto do que o raio de acção do respectivo partido, que é uma organização privada (embora com fins públicos e relevante inscrição constitucional).  Trata-se, pois, de separar o que é do foro partidário – e a iniciativa partidária anunciada é de louvar, como disse – daquilo que é do foro da representação nacional, extra e suprapartidária. De resto, as duas iniciativas complementam-se e não se anulam, porque se trata de realidades muito distintas, embora convergentes em relação ao mesmo fim: a superação da crise de representação

7.

Confesso que não compreendo a existência desta falha, que é total e até desrespeitosa em relação à Constituição, pelo menos desde que foram extintos os governos civis. E se muitos se interrogam sobre a real consistência das representações parlamentares, devido à forma como os candidatos a deputados são recrutados e ao funcionamento do sistema de poder interno, esta situação ainda vem reforçar mais essa dúvida ou mesmo a crua descrença no valor do trabalho dos representantes. O que espero, pois, é que o PS tome mesmo em consideração esta questão e promova a sua resolução. Seria um bom sinal da nova liderança do PS. A democracia ficar-lhe-ia devedora de uma boa iniciativa para melhorar a sua qualidade, demonstrando ao mesmo tempo que não identifica a acção política como exclusiva de uns tantos iluminados que, sentados em torno do líder, tudo decidem, em nome de toda a sua representação parlamentar. Os estados gerais não se podem confinar a uma grande operação de marketing para efeitos eleitorais. Ela deve combinar ampla auscultação da cidadania com reflexão aprofundada sobre o que são a política, a democracia e a cidadania, hoje, mas deve também promover mudanças concretas que melhorem o sistema em geral, incluído o próprio. E eu creio que a qualificação da democracia pode beneficiar, por si mesma, as forças da esquerda. Não sendo por isso que ela deve ser melhorada e aprofundada, como é evidente, também creio que os seus efeitos sentir-se-ão mais à esquerda do que à direita. Pela óbvia razão de que a esquerda é mais subsidiária de uma política qualificada do que a direita, mais vocacionada para, através da política, defender os interesses instalados do que para transformar a sociedade, designadamente na sua dimensão política, social e cultural. JAS@06-2024

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