FRAGMENTOS (XIII)
Para um Discurso sobre a Poesia
João de Almeida Santos

“Palácio das Artes no Monte Parnaso”. JAS. 07-2024
A ARTE E A VIDA
A PROCURA DO BELO não é casual, desinteressada, técnica, mas responde a uma exigência interior. Quer de quem produz quer de quem frui. Bem sei que os artistas sempre fizeram obras por encomenda. Por exemplo, sobre motivos religiosos. E que têm de sobreviver. Mas, na essência, a arte, e em particular a poesia, resulta de um encontro sofrido com o mundo ao qual ela procura dar resposta num plano superior, recriando-o com a sua linguagem. A arte não está confinada no virtuosismo. Na habilidade de execução. É mais do que isso. A escolha originária do caminho da arte responde, sim, a um imperativo interior. É nesta decisão que reside o essencial. E até diria que ela também resulta de um compromisso existencial.
A ARTE E A DOR
A arte suspende, provisoriamente, as dores da vida, pois ela atinge o plano mais elevado da própria humanidade. Desprende-se do contingente e da sua rugosidade para se elevar ao plano do sublime onde não encontra corpos rígidos e opacos onde embater e de onde resulta sempre dor. Mas não se trata de uma fuga, porque ela, a arte, incorpora a dor, embora a transfigure, a estilize, a verbalize (no caso da poesia), dominando-a com as formas com que a exprime. A dor como que fica encapsulada numa esfera de cristal. Está lá, mas perdeu a rugosidade, as arestas que ferem. E tem luz refractada. É claro que a sua presença gera sempre uma certa melancolia, mas é uma doce e luminosa melancolia. Lá no alto do sublime a viagem é suave e convida à contemplação. Mas para lá chegar sobraram dores, suor e lágrimas. E também fantasia, tecnicidade e inspiração. Tudo isto dá um poder imenso à palavra poética, pois ela aveluda a rugosidade e converte a contingência em universalidade, promovendo uma feliz e luminosa partilha em comunidade, a de todos os que nela sentem o que um dia sentiram.
ARTE E PREDESTINAÇÃO
Predestinação? O poeta nasceu para um dia estremecer perante a visão da musa e receber como dádiva o estro… para a cantar. Um dom, uma missão e um “castigo”. Subir sempre, qual Sísifo, ao Monte Parnaso, carregando palavras que hão-de ser presentes a Apolo para serem convertidas em canto, em poesia. Mas nem todos são admitidos à presença de Apolo ou sequer a subir ao Parnaso. Elevar-se sobre a dor não é para todos. Não se herda nem se adquire através do estudo. É um dom. Uma graça recebida. Um destino traçado e marcado pelos deuses. A que o poeta fica submetido. É por isso que a vida de poeta não é fácil.
O DESTINO DOS POETAS
O deus é Apolo. O poeta sente, sofre, sente-se náufrago nesse mar alteroso da vida. E pede ajuda aos deuses para que o libertem desse destino infausto do fracasso. Os deuses são exigentes, mas dão-lhe a oportunidade de ir ao oráculo do Parnaso ouvir vozes e colher inspiração. E, então, ele vai por aí, como Sísifo, carregando palavras para que no Monte ganhem sentido, sem saber qual será o desfecho final das caminhadas em subida. Suspeita que não terão fim, mas não sabe. Por isso, tem de subir e descer constantemente o Monte até que os deuses determinem um final. Se determinarem. É o destino dos poetas. Porque entraram num mundo que é maior do que eles. Mesmo assim, e por esse mundo ser o que é, eles podem dizer, como Giacomo Leopardi, que “il naufragar m’è dolce in questo mare” (“L’Infinito”).
MULHER-NUVEM
No certo poema, “Nuvem”, fala-se de uma mulher-nuvem que o poeta vê com nitidez com o olhar da alma. O pintor oferecera-lhe silhuetas trazidas do jardim das cores, materializando, de certo modo, o que o poeta vê nas nuvens, estimulado pela pulsão que o leva a procurar a musa nos céus do desejo. É intensa a luz dos seus olhos negros flamejantes que lhe iluminam o corpo, que ele vê com nitidez, vagando nesses territórios intangíveis da memória dos afectos. Também o poeta poderia dizer o mesmo que um Amigo lhe disse: “o que eu demorei para aqui chegar!”. Mas tinha mesmo de chegar, nesse excesso de palavras com que sempre a procura, onde a interpela e onde, qual divã, a traz à palavra expressa e à luz da consciência. Onde a verbaliza. Onde lhe dá vida e a coloca ali, perante si, para, seduzido e sedutor, a olhá-la nos seus olhos negros e, assim, atravessando a imensa fronteira da ausência e do silêncio, entrar em doce e luminosa melancolia poética. E em diálogo com ela. O poeta antecipa nestes andamentos o que julga que o senhor e príncipe do espaço e do tempo um dia lhe trará: a atenção da musa aos seus cantos. A verdade é que ele canta como se ela o esteja a ouvir, submetendo-se aos desígnios do destino e sabendo que também ela estará sujeita a ele, ao destino. Sai de si, entrega-se ao vento que passa e deixa que o seu canto a seduza quando os deuses o acharem e se o acharem oportuno. Entra num mundo que já não lhe pertence e onde as leis são ditadas por Apolo, por Athena e, claro, por Aphrodite. O que possa um dia acontecer será simplesmente por partilha, já impessoal, a da comunidade dos amantes do belo. Mas, ainda do lado de cá, ele sente-se realizado por poder participar num sofisticado processo que é maior do que ele. E cujo desfecho fica entregue ao destino. A sensação que invade o poeta é a de missão cumprida… por momentos.
O POETA E O PECADO
Mereces sempre a minha atenção, mesmo quando não me adjectivas com qualificações certeiras – foi o que um dia disse a um Amigo que me comentava um poema. Sim, continuei, o que me dizes é verdade: as mãos pecaminosas do poeta são as palavras. É com elas que quer acariciar o rosto intangível da musa. É com elas que a olha de frente e procura seduzir esses seus olhos negros, que são a luz do seu corpo. É com elas que quer acariciar suavemente a sua pele, o seu corpo, a sua alma. E nunca se trata somente de pura fantasia, embora, como esse Amigo lhe dizia, ela como que se dilui ou dissimula no eu lírico do poeta. É recriação e responde ao seu desejo. O ser recriado é como que o resultado, por um lado, do desejo, uma sua projecção, e, por outro, da figura da musa, gravada na memória activa dos afectos. Tudo se passa como se o poeta estivesse perante a moviola: quando o poeta lá vai é como se revisitasse o filme da sua vida. Para depois o contar com a arte da palavra. A Yourcenar/Michelangelo dizia que o amante recriado pela arte era plus beau que soi-même. Sim, um desejo tão intenso tem mesmo de dar origem à superação da realidade. A arte acrescenta valor ao real, valor estético. E é por isso que é poderosa e sedutora. E tem poder de resgate. Sim, são muitos os adjectivos que podem ser utilizados para descrever esse complexo que intervém na composição poética. São muitas coisas ao mesmo tempo, tudo a funcionar em simultâneo. A música intensifica-se somente na parte final da composição, como não poderia deixar de ser. Como que anima e veste todo o poema, reforçando o seu poder de impacto sensorial. É ela que dá força performativa ao poema.
SENSUALIDADE
Sobre a sensualidade poderia dizer o seguinte: é sempre algo que mexe com o pudor do poeta e que ele “arranca sempre a ferros”, no poema. É uma fronteira tão sensível e delicada que ele tem receio de a atravessar, expondo a sua intimidade, embora seja sempre atraído por ela. Mas, quando a pulsão é mais forte, ele deixa-se ir. Não resiste. E diz: “que se lixe o pudor”. É um acto de liberdade. A que tem direito. A performatividade atinge aqui o seu zénite.
PRIMUM CARMINA FACERE DEINDE PHILOSOPHARI
Eu creio que dizer em poesia é mais difícil, complexo e delicado do que dizer em prosa. Também interpretar a poesia é mais difícil, complexo e delicado do que interpretar a prosa. Por uma simples razão: a poesia não descreve, é acção, é lamento ou grito de alma, é sangue, é volúpia ardente, tristeza esparsa, remorso vão. E dói nas veias, é amargo quente, angústia rouca e os versos caem gota a gota do coração. O poeta escreve os seus versos “como quem morre”. É isto o que diz o grande Mestre Manuel Bandeira, no poema “Desencanto”. Para entender a poesia é, pois, preciso sentir, sofrer, como quem grita a dor que o poeta sente, fazendo-a espontaneamente sua. Em boa verdade, nem se trata bem de entender, mas sim de partilhar, de sintonizar. Pelo contrário, entender o que se diz sobre a poesia talvez seja mais fácil, ainda que esta escrita quase sempre deslize para o verso e, às vezes, quase também caia gota a gota do coração. Como dizia o Edgar Allan Poe, os poetas falam melhor da poesia do que os que simplesmente a analisam. Porque a sentem por dentro. Porque têm como que um dispositivo natural (ou mesmo adquirido, quando estremeceram por uma visão “demolidora” da sua sensibilidade) que regista o que outros não conseguem registar. Entender a poesia através de um discurso fragmentado e fragmentário, vindo de alguém que se interpreta a partir de um ponto exterior a si, enquanto poeta, mas sem deixar de o ser no próprio acto dessa escrita fragmentária, talvez seja possível e até desejável, embora aqui se trate de uma duplicidade perigosa porque demasiado comprometida. Palavras em causa própria. Pelo menos, salva-se a dimensão dionisíaca ou pulsional do exercício discursivo. A verdade é que a mãe desta prosa, vinda de poetas, acaba por ser sempre a poesia. Mesmo que se corte o cordão umbilical, a filiação e a matriz estão lá sempre, continuam… até como património. Eu, quando me comento, procuro sintonizar comigo próprio, enquanto poeta. E quando pinto também. Talvez exagere, ao dizê-lo, mas sinto-o: a poesia é a madre de todalas as artes e até mesmo “a mais filosófica de todas as formas de escrita” (Aristóteles, segundo E. A. Poe). E diria, ainda, glosando a frase atribuída habitualmente a Thomas Hobbes: primum carmina facere deinde philosophari. Ou: no princípio era a poesia (o verbo poético). Prima furon i versi, glosando Galileo Galilei (“prima furon le cose”). É assim. Talvez seja assim.
FRUIR A BELEZA
Sim, essa prosa fragmentária sobre a poesia distancia mais do que a própria poesia, para quem a lê (e não tanto para quem escreve, enquanto poeta), porque coloca o leitor numa posição exterior à de fruidor directo de beleza, da dor esteticamente convertida, estilizada e sensitivamente partilhada. É isso, creio. JAS@07-2024
