Artigo

A REPÚBLICA E O REPTO DEMOCRÁTICO

As Legislativas em França

Por João de Almeida Santos

La republique202406

“Surprise!”. JAS. 07-2024

MUITOS COMENTADORES (a quase totalidade, diga-se), vistos os resultados da primeira volta das legislativas, não só anteciparam imediatamente uma segura vitória do Rassemblement National (RN), sem tomar na devida consideração as características do sistema eleitoral francês, mas também criticaram fortemente Emmanuel Macron por ter convocado eleições. Mesmo depois de conhecidos os resultados, o Director de “Le Monde”, Jérôme Fenoglio, em Editorial, classificava a dissolução da Assembleia Nacional como “inconséquente”. Sem razão, no meu modesto entendimento. Duplo erro, o destes comentadores, como se viu e se tomarmos na devida consideração os resultados eleitorais finais. Depois daquela vitória do RN nas europeias (com 31, 37%), o PR não podia continuar como se nada tivesse acontecido. Ficou gravemente ferida a legitimidade política da maioria e seria necessário confrontar os eleitores franceses com a própria responsabilidade do voto nas europeias, pondo em cima da mesa a questão do rumo político a seguir. Mas, não, a visão de muitos comentadores reduz-se a uma mera visão da política como cálculo em função do poder exercido ou a exercer. Ou a legitimidade do poder como circunstância  puramente instrumental. Legitimidade que se está a revelar cada vez mais como legitimidade flutuante e que é necessário tomar na devida consideração para que não se entre em risco de anomia política e social. E a França sabe bem o que isso representa. As eleições não servem somente para designar representantes, elas servem também para lhes conferir legitimidade. Macron, embora tenha tido certamente em consideração a natureza do sistema eleitoral e o histórico do sistema eleitoral francês, e tendo em consideração os resultados das europeias, sentiu que chegara o momento de reconduzir a política institucional à vontade dos franceses, expressa em eleições. E ficou, de novo, claro que a direita radical crescera muito e que esse crescimento, que foi evidente nas europeias, iria condicionar de forma significativa a vida política francesa. Havia, pois, que perguntar aos franceses se confirmavam ou não o que se verificara nas recentes eleições. O sistema eleitoral francês, maioritário em duas voltas, é, neste sentido, muito interessante porque se a primeira volta permite um voto de convicção ou de manifestação de descontentamento, a segunda volta permite um voto de responsabilidade. E foi isso que aconteceu, apesar de o RN ter tido, de longe, o maior número de votos: mais de 10 milhões.

Macron não tem, pois de “s’incliner”, como quer Mélenchon, porque fez o que devia perante a efectiva alteração da relação de forças política e o consequente perigo de uma progressiva degradação política do país. Degradação induzida pela imagem de que o RN já representaria politicamente a maioria dos franceses. Houve, pois, uma “clarification” que confirmou, sim, a crescente força de RN (nas eleições de 2022 tivera 89 deputados), mas não ao ponto de ser politicamente maioritária no país, pese embora o alto número de votos conseguido.

I.

O RN de Marine Le Pen/Jordan Bardella ficou muito longe da ambicionada maioria absoluta na Assembleia Nacional, deixando de poder reivindicar a formação de um governo liderado por Jordan Bardella e ficando, de novo, periclitante a meta fundamental de Marine Le Pen: chegar ao Palácio do Eliseu. O RN aumentou consideravelmente a sua representação na Assembleia Nacional, mas nem sequer se confirmou como primeiro bloco político, tendo ficado em terceiro lugar, depois da Nova Frente Popular (NFP) e do ENSEMBLE, de Macron,  ou seja, longe dos valores que lhe permitiriam chegar ao Hotel Matignon. A verdade, todavia, é que RN confirmou, com resultados muito consistentes, a tendência que se tem vindo a verificar em toda a União Europeia: o reforço substancial da direita radical nos mais importantes países da União e a sua caminhada para o poder.  Essa tendência de algum modo acabou por se manifestar também no BREXIT, mas ficou com reduzida expressão nestas eleições. Reform UK, de Nigel Farage ficou-se pelos 5 deputados, apesar dos mais de 4 milhões de votos, equivalentes a 14,3%. Também aqui o sistema  – maioritário uninominal a uma volta: “first-past-the post” – penalizou a extrema-direita de Farage.

II.

Mas para que não fiquem dúvidas sobre o que se passou em França na primeira volta das legislativas, vejamos alguns dados.

  1. França – Legislativas 2024, convocadas pelo Presidente Macron depois dos resultados das recentes e surpreendentes (ma non troppo) europeias de 2024 e de uma expressiva vitória da direita radical (RN).
  2. Eleitores: 49, 3 milhões.
  3. Sistema eleitoral: uninominal maioritário em duas voltas: são eleitos na primeira volta os candidatos que obtiverem maioria absoluta, indo à segunda volta os que tiverem obtido pelo menos 12,5%, disputando-se a competição entre 1) os dois mais votados; 2) os três que superaram a fasquia dos 12,5% (“triangulares”); 3) os quatro que também obtiveram este resultado (“quadrangulares”). 1) 190; 2) 306; 3) 5.
  4. São 577 os círculos eleitorais e, portanto, 577 os deputados, fixando-se, pois, a maioria absoluta em 289 mandatos.
  5. Votaram cerca de 33 milhões de eleitores (66,71%). Abstiveram-se cerca de 16 milhões de eleitores (33,29%).
  6. Foram eleitos directamente, na primeira volta, 76 deputados (em 577).
  7. O Rassemblement National, aliado à facção dos Republicanos de Eric Ciotti, obteve 33,35%, com cerca de 10,7 votos milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito 39 deputados.
  8. O NFP, esquerda unida em frente popular, obteve 28,28%, com mais de 9 milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito 32 deputados.
  9. O partido do Presidente, Ensemble, obteve cerca de 21,8%, com 6,9 milhões de votos, tendo, na primeira volta, eleito dois deputados.
  10. Os Republicanos (que não se aliaram com RN) obtiveram 7,25% cerca de 2, 3 milhões tendo, na primeira volta, eleito 1 deputado.
III.

Pelo que se vê, tudo ficou por decidir, dependendo os resultados das alianças que, na segunda volta, fossem efectuadas em cada um dos 577 círculos eleitorais. E as desistências que viessem a verificar-se, com o objectivo de barrar o caminho ao RN, seriam decisivas. Estas desistências dos candidatos que não estivessem em condições de ganhar foram feitas em função de uma variável central: a da direita radical. Assistimos, assim,  na segunda volta, a uma redução das 306 “triangulaires” para 89. Em nome da democracia e dos valores da República, mais do que em função de um concreto programa político. Ou seja, na segunda volta a polarização intensificou-se como resultado da dupla vitória da direita radical (nas europeias e na primeira volta), um avanço enorme em relação a todas as anteriores eleições. O centro do debate foi, pois, a direita radical, o que pode ser considerado como a sua terceira vitória: a polarização integral da atenção social e política sobre si. É certo que esta polarização, apesar de lhe ter confiado um maior número de votos, se virou contra ela (Bardella consideraria as desistências à esquerda como resultado de uma aliança da desonra), mas também é certo que a ajudou a crescer eleitoralmente de forma muito significativa. “A maré sobe” e a “nossa vitória só ficou diferida” no tempo, dizem.  RN é, de facto agora o maior partido francês (com 126 deputados), seguido do “Renaissance”, de Macron (com 102), de “La France Insoumise” (com 74), do PS (com 59), de “Les Républicans” (com 45), de “MoDem” (com 33), de “Les Verts” (com 28), de “Horizons” (com 25) e, finalmente, do PCF, com 9. Este o quadro partidário que resultou destas eleições. Tudo isto, em matéria de mandatos, apesar de o RN ter obtido na segunda volta mais de três milhões de votos e mais de 11 pontos percentuais sobre o NFP e sobre ENSEMBLE (mais de 10 milhões de votos contra cerca de 7 milhões de cada uma das duas outras formações).

IV.

Sobre as ideias fundamentais que o RN tem vindo na avançar constata-se que alinham com o que em geral a direita radical vem defendendo e propondo: controlo radical da imigração (a linha estratégica dominante de RN, como, de resto, de toda a direita radical), o reforço da componente nacional no processo europeu (a “préférence nationale” ou a mais suave “priorité nationale”, que “reste le coeur idéologique de son project”, como se lê no manifesto anti-RN, assinado por mil historiadores – Le Monde, 03.07, pág, 25), a abolição do “jus soli” como base para a aquisição da nacionalidade francesa, a limitação do acesso a funções do Estado aos possuidores de dupla nacionalidade e, em geral, como disse, a  ideologia da direita radical, ou seja, “un populisme autoritaire, où les contre-pouvoirs sont affaiblis, les oppositions muselées, et la liberté de la presse restreinte” (sobre a doutrina veja-se o meu livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, versão digital, pp. 79-118). Acresce ainda que à doutrina se juntam as afinidades electivas com o senhor Viktor Orbán e com o senhor Putin. Apesar de programaticamente o RN afirmar que “nous ne sommes pas un parti d’idéologie, mais un parti d’action”, nisto sendo parecido com Fratelli d’Italia, e inspirando-se na famosa tradição da direita francesa, a “Action Française”, de Charles Maurras (politique du fait e não politique des idées), transcrevo um curto extracto de uma entrevista do guru da direita radical Alain de Benoist, que inspira também Aleksandr Dugin, o filósofo putiniano de serviço, e que sintetiza a filosofia da direita radical: “Nous vivons aujourd’hui des formes nouvelles de tribalisation et d’ ‘archipélisation’ (Jérôme Fourquet). La cause essentielle en est que les formes organiques de vie communautaire ont été systématiquement détruites par la modernité. La société prime désormais sur la communauté, et cette société est une société d’individus. Pour les libéraux, toute analyse de la vie sociale relève de l’individualisme sociologique. L’idéologie des droits de l’homme, qui est la religion civile de notre temps, professe pareillement que les pouvoirs publics doivent faire droit à toutes les revendications individuelles, ce qui aboutit nécessairement à la guerre de tous contre tous” (http://breizh-info.com/, de 19.06.2024; itálicos meus). O adversário é, pois, o liberalismo, o iluminismo e as cartas universais de direitos, de resto, na linha do velho romantismo do século XIX. Mas Benoist, na entrevista, acrescenta ainda duas ideias que na sua opinião exprimem a orientação estratégica do RN: “l’effondrement du centre” e “absorber ses concurrents”. A derrocada do centro e a absorção dos seus concorrentes. Mais claro do que isto não poderia haver. A filosofia de fundo que inspira a direita radical e o RN é a que deste modo é formulada por Alain de Benoist.

V.

A vitória estrondosa do Labour no Reino Unido, com mais de 46 milhões de eleitores e mais de 28 milhões de votantes, correspondentes a pouco mais de 60%, é muito mais expressiva do que a vitória da esquerda unida em França, mas, mesmo assim, é significativo que em dois grandes países europeus a esquerda tenha ganho as eleições, num caso, ao centro-direita (conservadores) e, no outro, à direita radical, que, como disse, já tinha ganho as europeias e a primeira volta das legislativas. Apesar de o Reino Unido já não fazer parte da União Europeia, os resultados têm uma importância estratégica também para a União, já que, combinados com os resultados verificados em França, podem vir a induzir uma dinâmica de recuperação do centro-esquerda, hoje em evidente crise. Trata-se de sinais muito relevantes. Disso não há dúvida, qualquer que seja a leitura e o distanciamento crítico relativamente ao estado “clínico” ou crítico do centro-esquerda. Em França, é preciso notar a lenta, mas já significativa, recuperação do partido socialista de Olivier Faure, ao obter, com Raphael Glucksmann (filho do filósofo André Glucksmann, autor do famoso e belíssimo livro Le Discours de la Guerre, 1967) um razoável resultado nas europeias, 13,83%, e, agora, nas legislativas, com 59 deputados, menos 15 do que os que La France Insoumise conseguiu.

VI.

Em relação ao Reino Unido, parece-me que este resultado do Labour talvez tenha a ver, mais do à primeira vista pode parecer, com as consequências do BREXIT e com a responsabilidade que os conservadores tiveram nessa decisão, sem desconsiderar, todavia, as peripécias do governo de Boris Johnson, designadamente na gestão da pandemia, e a própria transição, com o brevíssimo e impreparado governo neoliberal de Liz Truss, para Rishi Sunak. Alguém que teve altas responsabilidades no partido conservador, Ruth Elizabeth Davidson,  Baronesa Davidson of Lundin Links, dizia que os conservadores irritaram os pensionistas, os que têm hipotecas, os jovens, os que queriam permanecer na União Europeia e os próprios “brexiters”, por se ter verificado o contrário daquela que fora a promessa fundamental no referendo: a contenção drástica da imigração (The Times, 05.07.2024). Na verdade, os dados são muito significativos – a imigração parece mesmo ter aumentado muito, sobretudo a que vem de países não europeus. E também é verdade que quase todos os índices económicos do Reino Unido ficaram fortemente negativos, após 14 anos de governo Tory. De qualquer modo, parece ter havido nestas eleições uma orientação central: a de tirar os conservadores do poder. De referir ainda a importância que teve neste processo a mudança de líder e de orientação política do Labour, relativamente ao insustentável radicalismo do Labour de Jeremy Corbyn (entretanto eleito, nestas eleições, como independente). De certo modo, Karmer regressou à política moderada da terceira via e também essa orientação ajudou ao resultado.

VII.

Mas vejamos, finalmente, o que aconteceu em França, agora, na segunda volta. Votaram cerca de 67% dos eleitores, dando a vitória à Nova Frente Popular, com 182 mandatos, e atribuindo 168 mandatos ao bloco político do Presidente, ENSEMBLE, 143 ao Rassemblement National e 45 aos Republicanos. Nenhum destes partidos ou blocos políticos obteve a maioria absoluta e agora o Presidente deverá  desenvolver negociações para a formação de um novo governo que tenha condições de durabilidade até às próximas presidenciais, em 2027. Mas uma coisa é certa: o voto da primeira volta, aquilo que eu designo por voto de convicção e/ou de descontentamento deve fazer reflectir sobre as razões da desafeição de tantos franceses em relação ao establishment. Ainda que os franceses tenham votado na segunda volta de acordo com a “ética da responsabilidade”, o sistema político não se alimenta exclusivamente dos valores republicanos. O voto de convicção e/ou de descontentamento foi muito claro e isso merece a maior das atenções. O sistema político deve poder funcionar com programas políticos concretos que mereçam o reconhecimento da cidadania. E isso passa antes de mais por uma nova visão do centro-esquerda (e do centro-direita) acerca da sociedade, ao contrário do que tem vindo a acontecer e que tem dado origem ao crescimento dos movimentos do populismo autoritário. O que não pode acontecer é um deslize para o radicalismo de que o senhor Mélenchon deu provas logo no discurso do dia da vitória. Porque é precisamente esse radicalismo e essa auto-suficiência ideológica que alimentam o avanço da direita radical. Nem assepsia de valores políticos em nome da governança, da tecnogestão da sociedade ou da macroeconomia nem radicalismo ideológico ou populismo de esquerda. RN já veio dar sinais de que também no seu discurso algo tem de mudar, uma indicação vinda do círculo restrito de Marine le Pen (Bruno Bilde), apesar do volume impressionante dos votos que conseguiu quer na primeira quer na segunda volta. E, todavia, uma outra conclusão é também certa. Com estes resultados, no Reino Unido e na França, o senhor Putin e o senhor Orbán não se podem dar por satisfeitos. Esta também foi uma derrota deles. Sim, é verdade, mas a construção de uma política apelativa e justa é muito mais difícil do que a união perante um ameaçador ”inimigo externo” dos valores da República. Raphael Glucksmann, o eurodeputado que liderou, com resultados muito interessantes, o bloco socialista às europeias (“Réveiller l’Europe”, com 13 mandatos, igualando o bloco de Macron e superando LFI, que teve 9 mandatos), já veio sugerir uma “mudança de cultura política” ao mesmo tempo que o líder do PS, Olivier Faure, dizia que “ce vote doit ouvrir une refondation”. São intenções, mas indicam vontade de mudar, depois de um longo período de insignificância política. De qualquer modo, o que aconteceu em França é ao mesmo tempo animador e preocupante. Animador, porque, em situação-limite, os valores da democracia e da República acabaram por se impor fruto da assunção clara de uma “ética da responsabilidade”, preocupante porque numa segunda volta em que os votantes foram 28,87 milhões, o partido de Marine le Pen (e os amigos republicanos do senhor Éric Ciotti) obteve mais de 10 milhões de votos. Só a natureza do sistema eleitoral e a determinação republicana e democrática dos franceses puderam evitar o que muitos já temiam, a chegada a Matignon do senhor Bardella e, mais tarde, a chegada de Marine le Pen ao Palácio do Eliseu. O que representaria um sério golpe para a França democrática e para a União Europeia. Já acontecera nos Estados Unidos algo parecido (embora em sentido contrário), devido, também aqui, ao sistema de eleição do Presidente – Hillary Clinton perdeu as eleições para Donald Trump, apesar de ter obtido quase mais três milhões de votos. Que tudo isto sirva de lição para os que se encontram obrigados a encontrar uma política de projecto para a França, capaz de evitar que este, afinal, tenha sido um acontecimento que somente manteve diferida no tempo uma inevitável vitória da direita radical. JAS@07-2024

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