Artigo

FRAGMENTOS (XIV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

OSilêncioeoTempo2024

“O Silêncio e o Tempo”. JAS. 07-2024

“APANHAR OS CACOS”

RECRIAR O QUE SE DESLAÇOU – é para isso que existe a poesia. Tarefa delicada, a de voltar a reconstruir as palavras que se deslaçaram e, com elas, o real, que, também ele, ficou à deriva. Em linguagem popular dir-se-ia que o poeta “apanha os cacos” e reconstrói o vaso, tornando-o mais belo do que já era.

ALQUIMIA

O tempo selecciona e valoriza o que pode perdurar. Extrai da matéria a parte preciosa, o núcleo aurífero, e dá-lhe forma para que resista. Alquimia. Também a poesia tem algo de alquímico. A beleza é o resultado deste processo e é obra desse escultor, o poético alquimista. O tempo deita fora o contingente e fixa-se no que pode perdurar. Há, claro, neste processo uma componente subjectiva, como existe em todos os processos sujeitos a crise. E o tempo é o grande cúmplice do artista. Ambos valorizam e fazem perdurar o essencial. E é assim que dão sentido à vida. Da miséria existencial eles retiram o que a transcende e permite que a vida não fique por ali. E que perdure. A arte é alquímica, não química, é espiritual e está menos sujeita à erosão. Ela é aliada ou cúmplice do tempo. A beleza é o ouro da arte, mas para a obter é preciso extraí-la e lapidá-la. Alquimia. Sim, alquimia.

 “DURÉE”

Há muitos anos que prossigo o meu ritual poético, ao domingo. É o meu ritual. Não vou à missa, vou à poesia. Nela há deuses e deusas. E oráculos. E libações. E cânticos. E orações. Sim, o tempo vai transformando as imagens registadas na memória, mas as  impressões sensoriais originais evoluem para imagens cada vez menos nítidas que, por isso, e para ganharem nitidez, precisam de ser convertidas em palavras. Se valer a pena? Não, se ficaram inscritas na fita da memória. Se for algo que perdurou. E é claro que existem fragmentos de memória mais intensos do que outros e que se impõem ao processo selectivo. Depois, o passado fica mais nítido graças às palavras. E diferente. E se essas forem escritas e ditas com assonâncias, com a melódica toada poética a caminho da harmonia, da beleza e do sentido, então, ficará garantida a “durée”, a preservação do que foi sentido originalmente de forma intensa. A preservação do efémero transfigurado. O intervalo entre o sensível, o contingente e o metatemporal, o absoluto, o intemporal é o terreno dinâmico da poesia. Ela conquista essa espécie de “terra de ninguém” (mas é claro que há lá sempre alguém) e nela constrói as suas edificações, os seus castelos, as suas fortificações. A arte selecciona, porque só regista o que foi intenso e perdurou na memória com canais de acesso. O registo da intensidade é do poeta, da sua sensibilidade.  É como o tempo. Só resiste à sua erosão o que é precioso, como nos minerais.  Mas é preciso aceder à profundidade da memória e lapidar o que lá ficou inscrito. A poesia, para o fazer, faz como que associações livres num discurso estético até que chega ao resultado final. Uma espécie de processo de tipo psicanalítico revestido de beleza. Traz à consciência poética o que por lá estava em silenciosa ebulição.  A poesia, assim, fica a meio caminho entre o contingente e o eterno, entre o sensível e o intemporal, o absoluto. Tem elementos de ambos, do sensível e do intemporal. É uma arte em movimento, aberta. E é por isso que é polissémica e que pode ser partilhada “por dentro”.

 EROSÃO

A erosão da relação sensorial originária do poeta com a musa acontece. Mas é uma erosão que pode ser contornada pelo recurso ao poder de resgate da palavra poética. O tempo é escultor e, portanto, selectivo. E a poesia quando é cúmplice do tempo pode fazer milagres com as “palavras deslaçadas” do passado, as que o pintor exibe quando, a pedido do poeta, reinterpreta o poema e o devolve à sua origem. É deste milagre que o poema “O Tempo e a Palavra” fala.

TUMULTO

Alma em tumulto é a que é pacificada pelo choro poético. A poesia é lugar de onde já nunca se sai. Um amigo pergunta-se, em diálogo comigo, se, afinal, a vida não será mais dor do que felicidade. Respondi que não sabia. Mas que sabia, isso, sim, que a poesia nasce do impacto não resolvido da sensibilidade com o real, por onde se passeiam as musas tentadoras e fugidias, sim, mas também onde acontecem embates da aveludada sensibilidade do poeta com tudo o que é áspero, crespo, anguloso, rígido. A poesia é murmúrio de almas em permanente tumulto.

PALAVRAS DESLAÇADAS

Foi na releitura de um seu belíssimo livrinho (La Terra dei Lotofagi, Milano, Vanni Scheiwiller, 1993) dedicado a Mécia de Sena (mulher do seu amigo Jorge de Sena), que a Luciana Stegagno Picchio me ofereceu, em Roma, no ano da publicação (1993), que tive a ideia de desenvolver um poema a partir de “Lotofagi”, uma sua breve poesia. O poema “O Tempo e a Palavra” (que também é uma modesta homenagem in memoriam) valoriza as palavras, dando-lhes o poder de criarem o passado, como ela diz. Mas a verdade é que no passado também às palavras lhes acontece deslaçarem-se. Também elas fazem parte do passado, sofrendo erosão, embora tenham um ilimitado poder de resgate. A pintura com que ilustrei o poema, “Palavras Deslaçadas”, representa-as, por isso, deslaçadas, enquanto o poema procura reconstruí-las para recriar esse passado à medida do poeta e do seu próprio presente. Para darem nova vida ao passado deslaçado. Utopia de poeta.

O BEIJO

O dia seis de Julho é o dia do beijo. Há outro dia, em Abril, que também é. Ainda bem. O beijo merece muitos dias, muitos meses, muitos anos. Até séculos. Mas não sei se os beijos em forma poética chegam sempre ao seu destino. Se é que eles têm destino marcado. Talvez não. Mas, se tiverem, podem não chegar. Andam muitos fantasmas no ar sempre prontos a interceptá-los, para os beberem. O Kafka testemunhou isso. E di-lo nas Cartas a Milena. Eles estão sempre famintos de beijos. Os fantasmas embriagam-se de amor e poesia, logo, de beijos cantados? Ou, simplesmente, esse é o seu alimento? Prazer ou sobrevivência? Talvez as duas coisas. O poeta, quando nasce, passa a trazer consigo um fantasma que o seguirá sempre, toda a vida. E onde há musas, há poetas e há fantasmas. Se o alimento dos fantasmas são mesmo os beijos que o poeta envia à musa, pode ele deixar de os dar, de os enviar? Não. Perder-se-iam os fantasmas (eles na vida multiplicam-se e precisam de muito alimento) e, consequentemente, o próprio poeta. É por isso que ele tem sempre de recomeçar a escalada ao Monte, como Sísifo. Um incansável produtor de beijos em forma de verso. Como se vivesse permanentemente em pecado e tivesse constantemente de se redimir através da poesia. O pecado inocente como forma de vida. Através de beijos poeticamente comprometidos. O preço a pagar? Sim, perdendo no trajecto os beijos que destina à musa. Talvez seja mesmo castigo. De algum modo tem razão o Emil Cioran ao falar de poética do fracasso. Mas felizmente que é poética, mesmo que seja do fracasso: supera-se no modo como o enfrenta. Faz da fraqueza força. E mais: partilha o que sente. Na partilha, o poeta redime-se, procurando seduzir. É a beleza que o salva. E ela cobre como um véu o sentir do poeta. O fingimento, de que se fala, está concentrado todo na forma e a verdade é a própria energia propulsora. O que o move. É isso? Não sei. Seria necessário perguntar ao fantasma de estimação… Mas será que ele não diria que vale mais um beijo do que mil palavras? Ou que há palavras que, afinal, valem mil beijos? Porque são dadas com a alma. Não sei o que me diria. O que sei é que o beijo é a poesia dos sentidos (Balzac) e que quem beija perde-se, como o poeta se perde (sai de si) quando entra em êxtase e diz o que lhe vai na alma. Perde-se na partilha. É como se no encontro do beijo as almas transmigrassem, desaparecendo as fronteiras corporais. Já não se sabe o que é de um e o que é do outro. O mesmo acontece na partilha poética, onde a componente física é a sonoridade, sopro físico da alma. A sintonia (a simbiose) que um poema pode provocar entre o criador e o fruidor é como a do beijo. O poema – lugar de encontro, de partilha e de abandono. O traço de união: a beleza.

FANTASMAGORIA

Cada verso é um beijo. Dado com a alma. Um poema é carícia feita de beijos. Mas pode nunca haver chegada: um beijo que nunca chega, a não ser com os olhos da alma, seja o primeiro seja o último. O poeta parte, ficando. Tal como a musa, que, partindo, fica na fantasia do poeta. E, por isso, ele leva a perda consigo e verbaliza-a, canta-a, partilha-a. Lapida-a como pedra preciosa. O poema “O Beijo”, que sempre publico no dia seis de Julho, é feito de beijos escritos. É uma longa carícia. O vento levou-os, mas não sei se, quando estão a ser levados para o seu destino, foram ou estão a ser bebidos pelos seus cúmplices, os fantasmas. Talvez nem tenham destino. Talvez sejam dados para se perderem no caminho. O beijo confunde-se com o processo criativo. A poesia, de certo modo, é fantasmagoria. Creio que foi o T.S. Eliot que disse, falando de Coleridge, que o poeta quando é visitado pela Musa atrai fantasmas que o hão-de perseguir durante toda a vida. E o Kafka, numa carta a Milena, diz que os beijos escritos são bebidos pelos fantasmas durante o trajecto. É mesmo fantasmagoria o ambiente em que a poesia acontece. E são beijos de verdade, os do poeta, apesar de ser fingidor. Se não fossem beijos de verdade, os fantasmas, enganados, morreriam à sede. Eles não podem sobreviver alimentando-se de simulacros. Mas, se assim fosse, também o poeta definharia. E a musa? Que seria da musa sem uns e outros? É ela que lhes dá vida e, por isso, sem eles, também ela definharia. Não poderia reproduzir-se. Está tudo ligado.

RAPTO DA ALMA

Apesar de haver outra, eu fixei-me nesta data, seis de Julho, vá lá saber-se por que razão. Talvez seja dos astros. Talvez seja das musas. Mas, se é verdade o que diz o Eliot, talvez seja da musa. Como poderia duvidar deste enorme poeta? Sim, é verdade que o beijo não é remédio que tenha contraindicações. Nem se lhe conhece efeitos de habituação ou perda de eficácia.  Pode dar-se à vontade. E se o beijo físico requer consentimento, que o diga o Rubiales, o beijo poético é livre. Uma vez dado voa com o vento. Vai por aí, à espera de quem o acolha. Na verdade, o beijo é um rapto da alma. E também é um repto da alma. De repente, acontece. Basta o olhar para provocar estremecimento e o desejo de beijar. No primeiro beijo e por aí em diante. É um rapto e é um repto: físico, da alma, poético. Desde que seja beijo.

OS VERSOS SÃO BEIJOS

Os beijos vão com o vento e não se sabe para onde o vento os levará. E os fantasmas viajam com o vento. Porque sabem que os beijos escritos é assim que viajam. Os poetas dão assim, com a alma, os beijos que falharam, com os sentidos. Não sabem se chegarão até às musas, mas, mesmo assim, eles tentam. É no tentar que está o ganho. Tentações. Não conseguiram seduzir com os sentidos tentam com a alma. Tentam seduzir com a beleza. Tentam o rapto da alma. E, ao mesmo tempo, lançam um repto. Os beijos poéticos. Se, como dizia o senhor Honoré, o beijo é a poesia dos sentidos, então, a poesia é o beijo da alma. E é por isso que os fantasmas o podem interceptar. Eles gostam de beijos. E esse é o mundo deles. E também é o mundo dos poetas, que nascem da visita da musa. E do estremecimento que esse encontro provoca. E da vontade de beijar, que se lhe segue. Depois, vão por aí, como jograis. O seu destino é cantar até doer. E porque dói. O Cioran tinha razão. Tudo na vida é contingente, imperfeito e destinado ao fracasso. Mas felizmente que há a poesia (e em geral a arte) para nos resgatar. Sim, a ideia de que os versos são beijos é certeira. Os beijos resgatam. E se o primeiro beijo é dado com o olhar por que razão não poderíamos beijar com as palavras. No princípio, afinal, era o verbo. No princípio não se beijava? O beijo é como o verbo – conjuga-se. E há dias que são mesmo dias de conjugação. Por exemplo, o dia seis de Julho.

ABRAÇO

O abraço é um beijo conjugado no masculino.

ANARINA E A BRISA

Beijos enviados e recebidos da e na beira-mar. São mais frescos, em tempo de Verão. Há brisa, como no Nordeste do Bandeira e da Anarina. E é bom que o beijo chegue como brisa, suave, fresco. Os beijos da alma são assim. Quase se pode viver deles como da brisa de que o poeta, com a Anarina, queria viver. Porque perduram. Mesmo que fantasmas os bebam. Sobrevivem transfigurados, mas perduram. Estes beijos da alma são mesmo para comer e para beber. Mas não só pelos “subalimentados do sonho”. Também pelos que se banqueteiam de sonho. Os fantasmas, esses sim, precisam deles para sobreviver, não porque sejam subalimentados do sonho, mas porque habitam o próprio sonho. A pintura (“O Beijo”) alude a isso mesmo: o beijo como alimento da alma. Dá-se e recebe-se… sobrevive-se.

A FRONTEIRA

O beijo é dado às portas do paraíso? Talvez. É um território de fronteira. Sensorial e espiritual. A poética dos sentidos. O dia do beijo é todos os dias, embora possa ser mais de uns dias do que de outros. Acontece ao ritmo da emoção, da pulsação sensorial e dos chamamentos da alma. Beijar é como estar na fronteira. E a tentação é passar para o lado de lá. Pecado.

PRETEXTO?

Não sou grande adepto dos dias especiais. Mas no caso do Dia Internacional do Beijo acabo sempre por usá-lo como pretexto para viajar até ao centro desta bela manifestação de afecto humano através da poesia, assumindo-a como se, neste dia, eu próprio sentisse uma absoluta necessidade interior de beijar, um autêntico imperativo. Assim, a efeméride ganha substância, sentido e beleza, tudo o que o beijo encerra em si. É um pretexto porque, afinal, todos os domingos beijo com os versos que escrevo e partilho, se é verdade que a poesia é um beijo da alma, tal como o beijo é poesia dos sentidos. Para mim, a poesia resulta de uma exigência interior. Pois também esta, sobretudo esta, a do beijo, resulta de uma incontornável exigência interior. E é também um acto de liberdade. Beijar assim, sem esperar que o beijo seja retribuído. Mas, se for, tanto melhor.

BEIJAR COM PALAVRAS

Sintetizar o universo que um beijo encerra é praticamente impossível, mesmo para um poeta. “E mesmo assim eu tentei”. Talvez porque o receio de que o beijo não chegue leve a que ele se concretize plenamente nas palavras com que é dado, e em todas as dimensões possíveis. Procurar com palavras o que não se consegue com actos, de modo a que as palavras se tornem actos, a que cada verso se transforme em beijo e o poema num demorado e apertado abraço. Falo muitas vezes na performatividade da poesia. E aqui, no beijo escrito na pauta melódica da poesia, ela é intensa. Sente-se. “How to do things with words” reza o título do livrinho do Austin. Nada melhor, para isso, do que um poema. Dizer num poema “amo-te” é bem mais performativo do que dizer “está aberta a sessão”. Trata-se de beijar com a alma, na ausência do corpo. Não podendo escrever a poesia com os sentidos, dá-se o beijo com a alma… através da poesia.

JARDINS

A natureza que se exprime nos jardins dos poetas é sempre especial. Os poetas cuidam dos jardins e regam-nos com palavras. O idiota olha para o jardim do poeta e diz: “precisa de ser regado”, sem olhar para o seu, onde as flores estão todas murchas.

INTROSPECÇÃO

Os versos do Guerra Junqueiro no poema “Idílio” (“A Musa em Férias”), em leitmotiv do poema “A Visita”, enaltecem o jardim, o cantado e o pintado (“A Musa e o Jardim”). E é verdade que no jardim corre vida, tal como ela é – renovação, mas também frustração. É a beleza de tudo o que é vital e contingente, sujeito a erosão. O poeta assistiu a uma transfiguração e julgou que com a musa em forma de arbusto a ser assaltada por rosas também o estro se esfumava. Há sempre esse risco, pois há. Mas a fragrância da vida põe-lhe remédio. E ele lá recupera o que julgava estar a perder. E canta, canta o regresso da musa e da inspiração. Introspecção? Sim, o que é a poesia senão uma estética introspecção estimulada pelos aromas que circulam na sua vida, na vida do poeta? E, com os aromas, as musas, que não lhes (aos perfumes) resistem. A relação do poeta com as suas musas, mas há sempre uma que domina (neste caso, a Erato), é sempre muito delicada e acontece sempre num ambiente de um certo velamento, ou fingimento, para que ele possa chorar a sua dor sem suscitar compaixão, cobrindo o choro de beleza musical. É a poesia que lhe permite isso, a beleza e a musicalidade do choro. O poeta confunde-se com as palavras com que age, esconde-se e revela-se nelas. E elas são a sua própria fronteira. Prosseguir para além delas é sempre perigoso… para a sobrevivência do poeta. Mas a tentação existe…

TRANSFIGURAÇÃO

No poema “A Visita” fiquei-me pela “ilha dos amores”, o andamento nono do poema (o último), o meu jardim encantado, onde um loureiro dá uvas e também pode dar rosas. E quando isso acontece o poeta é provocado para cantar o insólito, mas também fica um pouco perdido porque lhe parece que a sua musa se transfigurou. Tenta cantar, mas é-lhe mais difícil. Ele precisa mesmo que a musa o olhe nos olhos e lhe diga: “canta, poeta, canta para mim”. Mas, transfigurada, ele (quase) não a reconhece. Só os aromas do jardim o resgatarão, porque onde há perfumes há musas e ele, inebriado, sente a sua presença e recomeça a cantar. Só depois percebe que também o loureiro precisa de rosas, precisa do aroma do jasmim e até de uvas. Que ele ganha vida assim. Transfigura-se e provoca espanto no poeta. Afinal, não são só os filósofos, também os poetas são estimulados pelo espanto. Na poesia diz-se estremecimento. É mais sensitivo. Mas equivale ao espanto. Mistérios da poesia. Só geríveis com a fantasia. O arbusto está ali e fala, tem olfacto, visão e acasala com roseiras ou com videiras. Embriaga-se com o perfume do jasmim e engravida do sol que entra por ele adentro. É um ser vivo. E o poeta sabe disso. Por isso, quando vai ao jardim nunca sabe o que acontecerá. Certamente poesia, mas que poesia nunca sabe. Serão os aromas a decidir. Eles embriagam e será nesse estado que o poeta cantará. Dionísio, o reino de Dionísio. Só depois chegará Apolo.

INQUIETUDE

As musas são imprevisíveis. Oh, são mesmo. Os poetas vivem em permanente sobressalto. Nunca sabem o que pode acontecer. E sem elas não há poesia. Mas eles também sabem que elas são perdidas por aromas, por perfumes. Por flores. E que não resistem a um perfume acre e intenso. É por isso que tenho jasmins no meu jardim. Aquele aroma é potente e atrai-as, sobretudo ao entardecer. Mas, mesmo assim, a vida de poeta é uma inquietação permanente. Um desassossego. É como tudo na vida. Tudo é contingente. Mas é claro que o poeta tem recursos que dependem só dele. Nem poderia ser de outro modo. Conserva na memória as imagens mais impressivas da sua tumultuosa vida e dispõe do mecanismo da “moviola” para rever esses fragmentos de vida vivida e para os converter num filme poético. Os aromas que andam no ar também atraem os poetas e não só as musas. E eles estimulam-nos. Mas, como na vida, nada é seguro. É por isso que cada poema é um milagre. E os poetas acreditam em milagres. E em fantasmas. E as musas são como as fadas. São rápidas e imprevisíveis, mas também elas dependem dos poetas, dos fantasmas e dos milagres. Esse é também o mundo delas. Por isso não há razão para nos inquietarmos se algum poema denunciar instabilidade na vida poética do poeta. Os milagres acabam sempre por acontecer. Haverá sempre um perfume que inebria uma musa e a atrai ao poema. E lá estará o poeta para o compor.

A RESSURREIÇÃO DO POETA

A poesia tem diversas camadas de subjectividade, do sentir aos recursos estilísticos. E ao ler o que uma leitora me disse sobre o perfume dos jasmins (os versos exalam intensamente o acre perfume do jasmim) senti como real a dimensão performativa da poesia. Talvez a musicalidade, a toada, a melodia ajudem a isso. Sim, acho mesmo que cada poema é um milagre. Nele o poeta “ressuscita”, reinventa-se e no fim nem sabe bem como é que tudo isso aconteceu. E até chega a olhar para o poema como algo que lhe é exterior e até estranho, apesar de não ser. Às vezes lembro-me da doutrina da predestinação e do modo como descobrimos se fomos tocados pela graça. Claro, aqui num plano integralmente laico. Talvez seja o poder de um sentimento muito forte que nos atravessa como raio e que fica registado em nós como energia em tensão. Uma experiência seminal que acciona de modo especial a sensibilidade e que fica como se fosse um dispositivo congénito. Accionado o dispositivo, ele permite pôr em movimento a maquinaria poética. Por exemplo, o dispositivo do amor.

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“O Silêncio e o Tempo”. Detalhe

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