Artigo

JOGOS DE SOMBRAS

João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 07-2024

LI E OUVI MUITOS comentários de entendidos em táctica, dizendo que António Costa era o padrinho do CHEGA porque, assim, dividia a direita para reinar à esquerda. Palavras de especialistas em táctica. Pois bem, viu-se agora, com as eleições legislativas de Março, a justeza destas belas análises: a direita obteve em conjunto cerca de 53% dos sufrágios e o PS perdeu as eleições e a chefia do governo, enquanto o PSD conservava o seu núcleo duro eleitoral. Uma bela táctica esta, com frutos ao retardador. O PS perdeu, embora António Costa, a suposta vítima do famoso e triste parágrafo, tenha ganho: conquistou o tão desejado cargo de Presidente do Conselho Europeu. Do ponto de vista pessoal, António Costa merece palmas. Do ponto de vista do PS talvez não as mereça.

1.

Mas o curioso é que o PSD (ou essa ficção que é a AD, se quisermos) tendo ganho por um fio, na verdade ganhou por mais. Ganhou a certeza de que o PS tão cedo não irá conseguir formar governo, ainda que em eventuais eleições venha a ser vencedor. Lá estará o CHEGA (e a Iniciativa Liberal), agora em evidente recuperação das europeias, segundo as mais recentes sondagens (uma delas já lhe dá 17,5%), para impedir que isso aconteça. O CHEGA nunca viabilizará um governo PS, porque isso seria contranatura. O “não é não” de Luís Montenegro tem, pois, o sabor de uma enorme hipocrisia, porque ele sabe muito bem que tem uma arma secreta que não precisa de ser ele a disparar, podendo dizer que não é sua e que até a despreza. Mas a verdade é que o CHEGA é o seguro de vida de Montenegro ou, pelo, menos do PSD.

Esta é a situação real, não ficcionada. O PSD navega em águas aparentemente tumultuosas, mas, no que conta, navega em águas muito, mas mesmo muito, calmas. O seu seguro de vida chama-se André Ventura. Ou seja, a situação é tecnicamente muito clara e só isso explica a arrogância com que o PM fala para a oposição. Porque sabe que ela é, de facto, minoritária.

2.

O que quanto a mim é grave é que esta situação já foi interiorizada pelo PS sem que, todavia, tenha daí retirado as devidas consequências. Porque, se for assim, o que Pedro Nuno Santos tem a fazer é seguir o seu caminho sem ziguezaguear: deve levar por diante a sua estratégia assente nos princípios por que se rege o PS, sem necessidade de recorrentemente fazer o discurso da estabilidade e da responsabilidade, porque essa, queira ele ou não queira, estará garantida por muito tempo. E também porque um partido como o PS não precisa de o fazer, depois de décadas de governo.

3.

Na verdade, este é o legado de António Costa, ao deitar a toalha ao chão por um medíocre parágrafo escrito sabe-se lá com que intenção e deitando às urtigas uma sólida maioria absoluta do PS. É verdade que esse seu mandato de 2022 começou mal, mas ainda terminou pior. No futuro se fará a história destes dias.

4.

Mas, falando de tácticas e do crescimento do CHEGA, na verdade o que se deve perguntar é sobre quem é que realmente promoveu, por táctica ou por ausência dela, este partido? O antigo Procurador-Geral da República, Cunha Rodrigues, falava, a propósito da justiça, numa entrevista publicada no jornal “Público” (18.07.2024), de duas teorias da comunicação, ou melhor, de duas teorias dos efeitos, que é conveniente conhecer: o agenda-setting (do senhor McCombs) e a espiral do silêncio (da senhora E. Noelle-Neumann). E o que diz a primeira? Que o importante é ser colocado no topo da agenda pública, menos importando o que concretamente se diz. E a segunda diz que uma corrente maioritária na opinião pública tende a gerar uma espiral do silêncio relativamente às tendências minoritárias. Pois a verdade é que a esquerda colocou constantemente o CHEGA no topo da agenda, ao promovê-lo a uma espécie de inimigo externo que ameaçava as fronteiras da democracia e que, por isso, era necessário elevá-lo à condição de perigo maior a combater e a aniquilar. Deste modo, talvez tenha conseguido accionar uma espiral do silêncio, mas, depois, no anonimato da câmara de voto, a confiança foi para quem ocupou o topo da agenda, não importa por que motivo. Os discursos disruptivos de André Ventura (normais para quem quer polarizar a atenção social) ajudaram muito à festa (ou seja, à polarização) e a verdade é que este partido obteve cerca de 19% nas legislativas (é este, 18,88%, o resultado que consta no DR, 1.ª Série n.º 59-A 23-03-2024, publicado pela CNE). Posição que não afectou o essencial do eleitorado do PSD e nem sequer o eleitorado da Iniciativa liberal. 53% foi o resultado. Da maioria absoluta do PS, em 2022, à enorme maioria absoluta da direita, em 2024. Falando de táctica, estamos conversados. A boa táctica ficou, sim, para outros fins.

5.

Perante esta situação o que deve, afinal, fazer o PS? Seguir o seu caminho, que será longo, e repensar a sua orientação política e ideológica, tomando em consideração que o centro-esquerda está em crise um pouco por todo o lado e que alguma razão haverá para isso. E não serve de conforto a lição do Labour porque na verdade o que os britânicos, no essencial, quiseram foi mandar para a oposição os conservadores (que governavam à 14 anos), sendo certo que a extrema-direita do senhor Nigel Farage obteve uma expressão eleitoral (não em mandatos, por via do sistema eleitoral) preocupante: mais de 4 milhões de votos. A terceira força política em número de votos obtidos, dois pontos percentuais acima dos liberais, que obtiveram 72 mandatos contra os 5 do Reform UK. Apesar do excelente resultado do Labour, somente um pouco superior ao que obtivera Corbyn em 2019, mas em que a participação fora superior em cerca de 7 pontos percentuais (cerca de 67% contra cerca de 60%), veja-se o que se diz no Relatório da House of Commons Library sobre os resultados das eleições gerais de 2024: “Labour’s vote share was 1.6 percentage points up on 2019 and was a lower vote share than any party forming a post–war majority government” (18.07.2024. 1.1.1, pág. 7; itálico meu). Quanto a França nem é bom falar, tão grande é a barafunda que se instalou na Nova Frente Popular (NFP). De resto, o Rassemblement National teve mais três milhões de votos do que a NFP, que venceu, em mandatos, as eleições (também aqui devido ao sistema eleitoral). A direita radical avança a grande velocidade e só o centro-esquerda estará em condições de a travar, desde que proceda a profundas mudanças e reconquiste a sua relação com a sociedade civil. Entretanto, e antes que a NFP tenha conseguido propor um nome para a indigitação como PM (nesta terça-feira em que escrevo ainda não se conhece um nome), Macron obteve, com o apoio dos Republicanos, a eleição de uma deputada do seu partido (a anterior Presidente) como Presidente da Assembleia Nacional. Sim, ´é verdade, mas uma coisa é certa: a vitória da NFP deveu-se aos acordos de desistência, na segunda volta, estabelecidos com o Ensemble, com o objectivo de travar a vitória do RN. Acordos pela negativa, portanto. Pois bem, também agora, e com os olhos postos no futuro, parece ser lógico que a eleição da Presidência da AN e a indigitação do novo PM devessem resultar de novos entendimentos entre estes dois blocos políticos, de onde resultaria uma base parlamentar de 350 deputados. Seria esta, no meu entendimento a via a seguir, prevalecendo o interesse do país sobre jogos de poder que acabarão por beneficiar o RN e a candidatura de Marine Le Pen à Presidência da República, em 2027.

6.

Por cá, se o PS tiver que chumbar o orçamento isso não deverá criar angústias, pois lá estarão o CHEGA e a Iniciativa Liberal para o aprovarem. De resto, ao CHEGA, com o numeroso grupo parlamentar que tem, não parece interessarem muito eleições antecipadas. Terá de se consolidar como partido (a começar logo pela máquina partidária, usando os recursos que resultam da dimensão do seu grupo parlamentar) para, então sim, seguir o seu próprio percurso, procurando inverter a relação de forças com o PSD. O encorajamento vem-lhe, de forma muito consistente, do coração da União Europeia. Por isso, que venham, pois, os “estados gerais, mas que não seja o filme habitual, com os mesmos de sempre (muitos desempregados políticos da esquerda, com ou sem think tank de apoio) prontos a ocupar lugares de destaque no PS. Sei bem o que aconteceu nos “estados gerais” de Guterres. Estava lá. De qualquer modo, a haver eleições, o PS estaria, como disse, condenado a manter-se na oposição, mesmo que as ganhasse, pois seria certa a oposição do CHEGA (e da Iniciativa Liberal) à formação de um seu governo. Perdendo-as, talvez Montenegro saísse (a crer nos seus próprios e declarados princípios), mas logo viria alguém que estabeleceria um acordo com aquele partido para a formação de um governo de direita. Os exemplos abundam, lá fora.

7.

Assim sendo, não compreendo a intriga galopante que, com a ajudinha de uma jornalista de serviço (do “Público”, São José Almeida), parece estar a grassar por terras do PS. Se erro houve, de Pedro Nuno Santos, ele consistiu em o PS ter dado a mão a um partido e a um governo que não precisavam dela por fazerem parte de uma maioria parlamentar enorme e de direita, nem que seja para funcionar somente como bloco de rejeição (de uma solução alternativa). Por isso, agora, há tão-só que corrigir o discurso e a prática e seguir em frente de acordo com uma responsável “ética da convicção”, enrobustecida por uma séria reflexão sobre a identidade do PS e sobre a sua orientação programática e estratégica. Terá tempo para isso. A não ser que, como disse Luís Montenegro acerca do PSD, também o PS não tenha problemas existenciais. Mas tem. E não são poucos, como tenho vindo aqui a sinalizar em inúmeros artigos. E confesso também que não seria muito interessante ver repetida, em Novembro, a famosa “abstenção violenta” do PS de António José Seguro, mesmo que, agora,  não violenta, mas violentíssima. Essa posição só menorizaria o PS, transformando-o em “tigre de papel”, como se dizia outrora em linguagem maoísta. O risco é mesmo esse: o de Pedro Nuno Santos se transformar num “tigre de papel”. Espero que não. JAS@07-2024

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