FRAGMENTOS (XV)
Para um Discurso sobre a Poesia
João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 07-2024
O MEU PASSADO NÃO ACONTECEU, MAS TENHO SAUDADES DELE
É VERDADE, dói mesmo mais ter saudades do que não chegou a acontecer do que o que aconteceu. As coisas que foram… foram. Aconteceram. E até podem gerar saudades quentes, suaves e pacíficas. Ficaram resolvidas pelo simples facto de acontecerem. As outras, as que desejámos ou as que sonhámos, mas que nunca foram, continuaram como desejos não concretizados. Saudades frias e cortantes. O tempo, a distância, coloca esses desejos na fita da memória, onde já não podem acontecer… a não ser na fantasia. O desejo do que poderia ter acontecido mantém-se, intenso, mas só como saudade viva em ferida aberta de um tempo interior que já não pode ser revertido, porque não tem retorno. Por isso, quando o desejo se converte em saudade, ou seja, em impossibilidade… dói. E para curar a dor só mesmo a fantasia. A poesia. Às vezes até temos saudades do que já nem sabemos se era sonho ou desejo intenso. Só sabemos que foi intenso. E fica a dúvida se verdadeiramente do que temos saudades é, afinal, de nós mesmos, da intensidade com que desejámos ou sonhámos. O objecto do desejo ou do sonho sonhado teria sido pretexto, estímulo ou até mesmo ficção, algo inventado por nós para nos sentirmos intensamente? Para vivermos mais intensamente por dentro. Será? Para o senhor Bernardo Soares era mesmo assim. Só lhe interessavam os seus sonhos e a sua vida interior. Veja-se o que ele diz: “o meu passado é tudo quanto não consegui ser”. Ou então: “pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser”. E, digo eu, tudo quanto não consegui ter. À minha escala, claro. De resto, “gabo-me para comigo da minha dissidência da vida”. Um passado de desejos e de sonhos. Que continuam activos, precisamente porque desejos não realizados. Só assim se pode construir futuro, não ficando sentado sobre o que se teve. Nem sobre o que não se teve. E é aqui que entra o poeta. Levanta-se e caminha pelos sendeiros da imaginação em direcção ao futuro.
O MILAGRE DO IMPOSSÍVEL
Os poetas conseguem dar forma a desejos e sonhos e concretizá-los em palavras sobre pauta melódica, como se o ritmo, a toada, marcasse a força do desejo e da vontade de o ver concretizado. Milagre: o impossível acontece na melhor das formas. O poeta gosta do impossível e é por isso que o faz acontecer. Oxímoro? Não, obra da fantasia. E o impossível será mais real se for comunicado e partilhado. Porquê? Porque a poesia transcende o tempo e pode converter o passado em futuro. Pode concretizar o que nunca foi… mas, claro, se sentir o desejo como vivo. É aquilo a que se chama o poder performativo da poesia. “A obra mística, pertencendo à esfera humana da beleza, tem como primeira necessidade, tem como fim próximo e longínquo, ser comunicável, para determinar o mesmo na alma que ela deve tocar”, diz Pierre Jean Jouve, na sua Apologia do Poeta. É assim que o impossível acontece… na alma que ele toca. Toca com palavras e acontece. A força da beleza na partilha.
BEIJAR COM PALAVRAS
O outro dizia que o primeiro beijo (desejado) é dado com o olhar. Por que razão o último beijo não há-de poder ser dado com palavras? No princípio era o verbo. E, no fim, também? Certamente. O Bernardo Soares conhecia bem o poder performativo da palavra e desdenhava a circularidade do encontro físico. Quando falava da posse era da posse da alma, não do corpo. Posse através das palavras. Esta permanece. Aquela esquece, como algo já feito e acabado. Foi bom, passo à frente. Com o desejo a conversa é outra… E pode ser poética. Eu sinto-a assim: a única forma de atenuar a dor que resulta do que nunca foi. O Bernardo diz que não, mas é poeta. Não é a poesia a mais poderosa filosofia existencial?
CUMPLICIDADE
O rosto retratado na minha pintura “O Retrato” não corresponde ao da musa que inspira o poeta e de quem tem muitas saudades? É provável, apesar da sinestesia sempre procurada. Afinal, sempre é um rosto de mulher… Mas digo que não corresponde porque suspeito que haja um certo conluio entre o poeta e o pintor para o perfeito “fingimento”. Um pintor perfeitamente sintonizado com o espírito da poesia. Faz-nos olhar para uma enquanto o poeta canta outra. Não lhe bastava a ilusão (provocada) da palavra, também teve de completar o fingimento com um retrato. Cumplicidade total. O que, entretanto, sei é que o poeta não se fica por ali, não se sujeita a sofrer passivamente a ausência, carpindo saudades que doem. Sim, doem, mas se há saudades é porque há passado e se doem é porque esse passado foi intenso. Mesmo que tenha sido um passado só de desejos não cumpridos. Seja como for mereceu ser vivido. Como, não sei. Mas sei que se não tivesse sido intensamente vivido não o cantaria assim. Mas talvez tenha razão o Bernardo Soares: doem mais as saudades do que não foi ou não aconteceu. Talvez, mas não sei qual o grau de “compromisso” afectivo que houve entre o poeta e a musa que o inspira. Certamente “compromisso” intenso. Mas somente como desejo? Como sonho? Não há modo de saber. O que se sabe é que houve passado, que esse passado se tornou saudade e que a imagem da musa é o espelho dessa saudade, porque nele se reflecte precisamente o passado. Imagem transfigurada, mas imagem. De mulher. É assim que acontece o encontro entre o passado, o presente e o futuro, a matriz temporal do poema “A Carta”. Na poesia, o futuro. Sim, doem as saudades, mas é porque há passado. E é por isso que o poeta diz que é bom ter saudades. Do que foi e do que não foi. Do que aconteceu e do desejo falhado. Do fracasso. Ah, Cioran, como entendeste tão bem este mundo! O passado foi abençoado, sim, mas, no fim, doeu. As saudades atenuam dele o amargo e repõem o doce afecto quando convertidas em canção. E nada se perdeu, porque tudo foi transformado.
AS MUSAS SÃO COMO AS FADAS
As musas são tentadoras, perigosas, desafiantes e irresistíveis. Eu não sei se é esta, a de “O Retrato”, ou se, como disse, para despistar, o pintor, em conluio com o poeta, lhe alterou os traços para reforçar o mistério que há sempre na poesia e na musa que a inspira. Sim, parece mesmo que a musa está a dar a volta à cabeça do poeta, como disse um Amigo que comentou o poema… Mas se não fosse assim não haveria poesia nem poeta. Essa é que é essa! Dar-lhe, a ela, volta à cabeça? Isso é que não, ainda que ele tente. O poeta não tem esse poder. As musas são fugidias e rápidas, como as fadas. Enfeitiçam e fogem. O único modo de as atrair é com aromas fortes e acres das plantas, das flores. Elas não resistem e às vezes até ficam como que embriagadas. É então que os poetas as cantam, nas libações, na dança dos aromas e das cores. Mas logo elas voam para longe, obedecendo às deusas e sobretudo a Apolo. É este que toma conta dos poetas, depois das libações.
SOBRE A SAUDADE
O poema “A Carta” é uma meditação sobre a saudade, sobre a natureza ambivalente da saudade. A saudade como passado (vivido ou sonhado), mas também como dor, logo, a expressão de uma vida vivida que tem de ser cantada para exorcizar a dor. É bom ter saudades. Não as ter é como não viver. É como não ter passado, logo, não ter futuro, sobretudo se não se tem saudades do que não foi. Depois, elas têm sempre associado um rosto, que é o espelho delas, mesmo se esse rosto não passar de uma projecção onírica de um desejo incumprido. Nelas o poeta revê-se no passado e estremece, de novo. Recomeça a viver como se fosse a primeira vez. Dirige-se a ela, à musa, e volta a interpelá-la, mesmo sabendo que não haverá resposta. E diz de si para si: ah, não há resposta? Pois a resposta dou-a eu. É assim que surge o eco devolvido do seu silêncio sob a forma de canto em surdina. É esta a beleza da poesia. Recriar o real à medida do desejo. A poesia é a linguagem do desejo. Ou do sonho. Por isso, ela é pecaminosa. Mas é tão bom pecar… Em palavras, que sempre é mais do que pecar em pensamento. “Peccato”, dizem os italianos quando um desejo não é satisfeito, apesar de tentado. A poesia é um desejo tentado. “Peccato”.
RESOLVER O PASSADO
Tudo está nas “mãos” do tempo. O futuro que o poeta constrói, com palavras, vai-se convertendo em passado, na medida em que toma forma. Junta-se, pois, ao passado que ele cantou para o “resolver”. Ou talvez se justaponha. Mas como esse passado nunca fica “resolvido” ele tem de continuar a cantá-lo. Enquanto o tempo o permitir.
PROSA POÉTICA?
Prosa poética, a tua, dizia-me um Amigo. Talvez porque na minha poesia, respondi, a semântica assuma uma forma especial: quase sempre conto uma história ou, então, como neste poema, “O Poeta e o Tempo”, proponho uma reflexão. Mas é claro que são sempre confissões de estados de alma sofridos. Mas é mesmo só poesia. Teimosamente poesia. Procuro não misturar estilos. Como se sabe, há poesia com forma explícita de prosa. E sem musicalidade aparente. Não é o caso. Até porque não gosto desse tipo de poesia. Para mim, componente obrigatória é a musicalidade do poema, a melodia, a toada, o ritmo. Os versos breves, às vezes de uma só palavra, ajudam a compor a toada. Quanto ao título, normalmente uso títulos curtos e que não procurem traduzir a semântica do poema. Há sempre o risco de estar a impor uma certa descodificação do poema, com prejuízo do incontornável mistério. O ideal, para mim, seria sempre um título de uma só palavra. Por sua vez, os versos de uma só palavra significam que essa palavra tem peso específico no tecido poético, seja musical seja semântico. Digamos que esta opção faz parte da minha poética. Eu procuro sempre a harmonia entre o sentido e a musicalidade (a toada, o ritmo, a rima). E isso tem consequências no processo de construção do poema.
ESTADOS DE ALMA, ESTADOS DE FACTO?
A poesia é a expressão de estados de alma do poeta em forma cifrada e, por isso, ao leitor se exige sintonia para lhe aceder. Como se para a leitura fosse necessário instalar-se no mesmo intervalo em que vive o poeta. É isso, creio. Partilhar a inquietação em perfeita sintonia. E a inquietação é, sim, desassossego. A tradução italiana do “Livro do Desassossego” é precisamente “Il Libro dell’ Inquietudine” (da Feltrinelli e com Prefácio do Antonio Tabucchi). Proprio così. Eu acho que a poesia é boa para as almas desassossegadas, inquietas.
TEMPO
O presente não existe? Talvez não. Talvez seja só um intervalo. E é por isso que o poeta vive nele. É o seu espaço vital. Cada presente que vivemos torna-se imediatamente passado, numa dialéctica entre o passado e o futuro. Na lógica do tempo, esse intervalo é um lugar de passagem. Lugar de movimento. Uma fronteira que (só) pode ser atravessada com o veículo poético. Num sentido e no outro. Para a frente e para trás, porque a poesia tem esse poder de fazer reverter o tempo. Era o Pessoa que falava desse intervalo. Que pode ser entre si e o mundo ou entre o passado e o futuro. Não parecendo, é um não-lugar privilegiado, porque é na fronteira que se vê melhor para os dois lados. Para o passado e para o futuro ou para o mundo e para si. É por isso que o poeta é um ser privilegiado. Um pouco irreal, sim, mas visionário. Como todos os visionários. Vê o que outros não conseguem ver. Com um pequeno excesso de fantasia. Até o passado ele observa como futuro, porque, ao convertê-lo (com palavras), o subtrai à inelutabilidade do tempo e o projecta no próprio movimento do tempo, ou seja, num tempo que ainda não é, mas que, quando for, se tornará, não presente, mas passado. Como identidade e como diferença. Ecco. A dança do tempo. Mas é por isso mesmo que os poetas são os seus melhores intérpretes. O poetas dançam com palavras ao som da própria melodia. Só eles podem (sobre)viver nesse intervalo entre a identidade (como passado) e a diferença (como futuro).
EKSAÍPHNÊS
O tempo e o espaço medem-se pela forma como os sentimos. E como nos movemos neles. O veículo poético, que se move com combustível emocional, está estacionado num intervalo e sempre pronto a descolar, seja para o passado seja para o futuro. O condutor é, naturalmente, o poeta. Descolar seja em direcção a si seja em direcção ao mundo. Ele reside na fronteira. Que, de facto, também é a que existe entre si e o mundo. Por isso, ele é, sim, o condutor, o que decide a direcção a tomar, embora o destino final seja sempre o futuro (que também se há-de tornar passado). Tal como o tempo também a poesia é movimento e só voando com ela é possível transcender a inelutabilidade do tempo. Na verdade, é pela sua colocação nesse intervalo entre o passado e o futuro e entre si (como outro) e o mundo que o poeta se torna um ser transfronteiriço, ao mesmo tempo pertencente a dois mundos e a nenhum. E pode olhar para um a partir do outro. O poeta é um ser de fronteira. Está no ponto de chegada do passado e no ponto de partida do futuro. E até consegue reverter ambos. O seu tempo é o do “insight”. Os gregos tinham uma palavra mais intensa para designar isto: “eksaíphnês”. Apreender o tempo de forma instantânea. E qual é, pois, a linguagem mais apropriada para isso? A da poesia, claro. E a da música, que, aliás, a poesia procura sempre incorporar, para se densificar. A matéria orgânica da poesia é composta de “intensities” e por isso ela tem de ser convertida esteticamente com os instrumentos adequados. Que nunca são de natureza analítica.
O TEMPO POÉTICO
O passado abriu caminho ao futuro e é nesse caminho que o veículo poético se move. Mas algo inquietou originariamente o condutor do veículo, funcionando a inquietação como o combustível para a viagem. O tempo poético à medida da pulsão criativa. E esta está ao serviço do tempo não poético, do passado sofrido, agora reconstruído à medida do futuro desejado. Privação sofrida, levitação desejada. JAS@07-2024
