Artigo

FRAGMENTOS

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA
(S. João do Estoril, ACA Edições, 2024; 217 pág.s)

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EPÍLOGO

TERMINO O ÚLTIMO CAPÍTULO (XV) deste livro com um curto fragmento sobre O Tempo Poético. Tempo diferente do tempo cronológico, o tempo espacializado,  aquele que assumimos quando, como diz Henri Begson, “nous nous servons de l’espace pour mesurer e symboliser le temps”.  Tempo diferente porque não subordinado à clássica métrica, à divisão convencional do tempo, à sua medição através do relógio. E, por isso, sou tentado a subscrever os versos de W. H. Auden sobre o tempo: “And all our intuitions mock / The formal logic of the clock” (The Collected Poetry of W. H. Auden, 1945). Tempo subjectivo, pois.

1.

Há uma palavra francesa que se aplica a este tempo com propriedade: “durée”. Interessa-me, pois, como a define Bergson, no seu ensaio Durée et Simultanéité, de 1922, no III capítulo sobre “La Nature du Temps”:

la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est” ou “c’est une mémoire intérieure au changement lui-même, mémoire qui prolonge l’avant dans l’après” (Paris, Félix Alcan, 2018).

Tempo vivido como fluxo. Continuação do que já não é no que é, através da memória, que acciona a mudança, a transição. A “durée” é esta transição.  Que melhor definição do que esta para o tempo poético? O tempo subjectivo é o tempo da arte e, sobretudo, o tempo da poesia. Neste livro, Fragmentos, e na minha poesia é permanente esta dinâmica da “durée” bergsoniana em acção. É como que a matriz originária da minha poesia. Do tempo da poesia. Que encontra no instante criativo a sua máxima expressão. Poesia é “durée”. E esta é o tempo da arte.

2.

Os gregos tinham a palavra chronos para designar o tempo quantitativo e extensivo. Mas tinham também a palavra kairós para designar um tempo diferente: tempo como o momento oportuno, referido, por exemplo, por Aristóteles na “Ética a Nicómaco”, falando do bem (de agathón, no texto grego “tagathòn”), das múltiplas formas como é dito, sendo uma delas o kairós (1096a, 26-27 e 32). Este tempo, designado pela palavra kairós, é o que mais se aproxima do tempo bergsoniano. O kairós. como “instante eterno”:

surge do encontro entre o passado e o futuro (…), o tempo da recordação por excelência, mas também o tempo onde há espaço para o novo”, tempo qualitativo (Joke Hermsen, Melancolia em Tempos de Perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, pág.s 76-77).

Mas havia ainda, no grego, outra palavra: (tò) eksaíphnês, apreensão instantânea do tempo, ou mesmo raio instantâneo e fulminante do tempo. Tempo subjectivo. O tempo da criação. A riqueza da língua e da cultura gregas a ajudar-nos nesta tentativa de aproximação entre tempo e arte. O tempo devolvido à subjectividade do artista, o passado que, accionado pela memória, se prolonga no futuro, na intuição criativa, no instante luminoso que funde passado e futuro no sublime. Ékstasis. O milagre da poesia. O poder de voo do veículo poético na “durée”, no tempo vivido, no tempo da consciência.

3.

Ao longo dos duzentos fragmentos fui viajando com a palavra tempo, sempre neste sentido, que é o que realmente acontece na poesia. Quando o poeta diz que a poesia lhe acontece é a este tempo que se está a referir. E não só na poesia. Em geral, na arte. Ela, a poesia, de facto, permite reverter o tempo, fazendo do passado futuro e do futuro passado na convergência de um tempo de intervalo – o do instante criativo. O que acontece no interior de uma dinâmica que tem no seu centro o instante, a intuição, o ponto de contacto entre o temporal e o intemporal, entre o individual e o universal, entre o contingente e o eterno. A poesia é, assim, uma arte de intersecção. E o seu tempo também o é. O desenvolvimento é tão-só a sua componente racional, apolínea. Mas a arte é filha do páthos.

4.

Trata-se de uma dinâmica que ganha sentido numa arte onde a palavra é a expressão máxima da liberdade, o veículo, a asa do tempo, a ponto de ter a pretensão de ela própria se transformar em acção efectiva, estímulo da sensibilidade, motor do sentimento e ponto de contacto entre o contingente e o eterno, entre o finito e o infinito, entre o eu e o outro, como muito bem diz Joke Hermsen, referindo a poetisa polaca Szymborska. Só mesmo por isso o poeta Pablo Neruda poderia ter dito que “la palabra es un ala del silencio”. Se as asas servem para voar, também servem para transportar o silêncio. E o veículo poético, tendo, também ele, as palavras como asas, poderá transportar o silêncio. E é por isso que a palavra poética, no seu mistério, no seu dizer velado, pode transportar o indizível, o inefável. A poesia é um ponto de intersecção entre o silêncio e o murmúrio, o sussurro. E é por isso que a verdade em poesia só pode ser alêtheia, desvelamento, como se o silêncio, através da palavra, como seu eco, e nada mais, se fosse levemente revelando. Processo a que só os “iniciados” podem, nos rituais, aceder, mas sem nunca esgotar o mistério. O murmúrio poético é o eco do silêncio. É assim que o silêncio é comunicado através da poesia: como eco.

5.

A poesia é como que a expressão de uma dialéctica entre o tempo remoto da memória, com o seu referente temporal e circunstancial, e o tempo do desejo, animado pela vontade. Desejo naturalmente referido a esse tempo remoto. E quando ela é esteticamente conseguida até pode representar a “vitória” do desejo sobre o facto, do sonho sobre a realidade, do futuro sobre o passado. E, então, o poeta tem direito aos merecidos louros da “vitória”. Em Delfos, sob os auspícios de Apolo.

6.

A fantasia poética tem um tempo próprio, o da intuição, o do instante oportuno que regista as “intensities” e lhes dá forma pela palavra. Ela trabalha no interior do fluxo kairótico, da “durée”. Daí a poesia ser uma arte tendencialmente minimalista. Na sua cumplicidade com o silêncio (a palavra poética é uma sua asa) e o movimento (que nunca quer parar). A pretensão de dizer tudo (como o silêncio) com quase nada (a palavra poética). Onde numa palavra cabe o mundo. Num instante, a eternidade e o seu discurso, o do silêncio. O seu é um tempo incondicionado, ainda que possua raízes temporais no passado. A poesia resulta de intensities registadas instantaneamente, sem mediação cognitiva. Como o amor. Um registo puro de sensibilidade. E é um tempo incondicionado porque se exprime como absoluto no instante, que não é passado nem futuro porque acontece num intervalo, numa fronteira, numa terra de ninguém. Que só o poeta pode habitar. Porque toca a eternidade sem sair da sua incontornável contingência. A poesia agarra o tempo (o passado) no instante criativo e fixa-o em palavras numa pauta poética para ulterior execução… em surdina. Ou em silêncio. De si para si. Em diálogo com a alma. Sinfonia para almas sensíveis.

7.

Quando a “maquinaria” poética entra em acção, por razões que a razão pode mesmo desconhecer, exactamente como o amor, as palavras são como que submetidas a um processo de livre associação, sem filtros, espontâneo, natural. Como se se tratasse de uma sessão de psicanálise procurando libertar o inconsciente de forças obscuras que oprimem a sensibilidade à flor da pele. Só depois a “maquinaria” intervém com todo o seu arsenal, como se se tratasse de compor uma sinfonia, dando expressão formal a essas pulsões e libertando o poeta. Pauta poética em busca da forma e do sentido aparentemente perdido, mas activo, nos confins do tempo e da consciência. A recriação como acto de sobrevivência e de projecção do tempo no tempo da arte, a “durée”. É no instante oportuno que se dá a recriação, a transição entre o passado e o futuro sob forma de fluxo no grande substracto ( hypokeímenon) que é a memória, locus do tempo vivido. Não são as musas filhas de Mnemosyne?

8.

Evidentemente que a poesia tem de possuir gravitas, densidade existencial, porque é um estado de alma ou mesmo um grito de alma. Um denso e cifrado “desabafo” espiritual. E é claro que o espírito intervém, mas ao serviço da alma. O filósofo diria que resulta de um pacto entre Diónysos e Apóllôn, pois uma coisa é a alma, outra é o espírito. Na primeira, manifesta-se exuberantemente a sensibilidade e a sensualidade; no segundo, o intelecto e a razão. Na poesia coexistem ambos, mas primacial é a alma, onde acontece a inscrição originária da sensibilidade e da sensualidade. Quando se fala de virtuosismo poético o que se está a dizer é que lhe falta, a essa poesia, chão, húmus, dor, sentimento, páthos. É puro tecnicismo desvitalizado e existencialmente neutro. A poesia assim não sobrevive, a não ser como simulacro. O excesso de espírito na poesia equivale a defeito de alma, é verdade, mas também o excesso de alma pode não resultar em poesia, em arte, em beleza.

9.

O Nietzsche reconhecia na tragédia grega a harmonia perfeita entre o “espírito dionisíaco” e o “espírito apolíneo”, a perfeição na arte. O sentimento e a razão. Dois movimentos que acontecem em tempos diferentes (um, na génese, o outro, na forma), mas que devem funcionar em harmonia, sem que um exceda o outro. Melhor: lá onde um incorpora o outro na mesma medida, reciprocamente. E, depois, a música interna da poesia ajuda a este equilíbrio porque como pauta (espírito) ela actua directamente sobre a sensibilidade (alma). Sentido com poder sensorial. E é esta a razão que me leva a considerar a musicalidade de um poema absolutamente indispensável, assuma ela a forma de rima externa ou explícita ou a de rima interna. É a toada melódica que, como fluxo estético-expressivo, confere força performativa à poesia, já que, glosando o Pierre Jean Jouve de Apologie du Poète (Cognac, Le temps qu’il fait, 1982, pág. 52), é sobretudo ela que permite que a poesia toque a alma daquele a quem é dirigida.

10.

Trata-se, pois, de um território muito delicado, mas também muito complexo, onde convergem várias dinâmicas em andamentos diferentes, tudo em perfeita harmonia para um eficaz efeito sobre a fruição esteticamente comprometida, ou seja, para uma partilha integral da beleza proposta à sensibilidade de quem por ela se sente atraída. Foi esta complexidade, esta delicadeza e esta diversidade que procurei mostrar nestes duzentos fragmentos. JAS@08-2024

Livros meus publicados por ACA Edições:

* A Dor e o Sublime. 
Ensaios sobre a Arte (2023)
* Política e Ideologia 
na Era do Algoritmo (2024)
* Fragmentos. 
Para um Discurso sobre a Poesia (2024)

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