NOTAS POLÍTICAS
DE UMA TARDE DE VERÃO
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 08-2024
ARTIGO – “NOTAS POLITICAS”
1.
Começo por referir um conjunto de artigos que li em “Le Monde” (14.08.2024) acerca do senhor Elon Musk (foi manchete : “Elon Musk, acteur politique de la droite extrême”) e a sua entrada fulgurante em política, ao lado e em plena sintonia com Trump, promovendo as três grandes bandeiras do populismo de direita e do plutopopulismo de tipo trumpiano: contra a imigração, contra o wokismo e contra os media tradicionais. O Twitter, agora X, como espaço de combate de Musk à escala planetária (e, em particular, nos USA). Sabemos o que aconteceu com o Facebook e a Cambridge Analytica, em 2016, sob a gestão do ideólogo radical-populista Steve Bannon. E, agora, às políticas de guerra em curso, junta-se-lhes o senhor Musk a accionar politicamente a sua plataforma digital para dar combate ao já difícil e delicado funcionamento das democracias. E, ao que parece, fá-lo em nome da liberdade – “eu sou um absolutista da liberdade de expressão”, terá afirmado em 2022. E toca de dar, de novo, espaço no X aos ideólogos de extrema-direita que tinham sido erradicados do Twitter antes da sua gestão, a começar pelo próprio plutopopulista Trump. Imaginemos agora que o senhor Zuckerberg faça o mesmo. E que o patrão da Google também. A normal dialéctica do consenso que é activada nas campanhas eleitorais seria totalmente desvirtuada, sabendo-se que a comunicação, no essencial, passa hoje pela internet e pelas redes sociais. E a expansão destas redes é planetária.
Sempre se discutiu acerca da neutralidade da tecnologia (sendo os seus efeitos dependentes do tipo de uso que dela fosse feito), mas hoje, com lideranças tecnológicas na esfera da comunicação a declararem activa e militantemente a sua filiação e a desencadearem combates políticos e ideológicos a coisa muda de figura. É aqui que os Estados nacionais e as instituições internacionais devem intervir estabelecendo linhas vermelhas que estes poderes supranacionais, sobretudo estes, não podem ultrapassar. Porque, em boa verdade, estamos perante uma terceira “constituency”, depois da financeira e da (original) do cidadão contribuinte. E enquanto a financeira determina programas de governo (veja-se o caso de Portugal e da troika), esta entra directamente na delicada área da construção do consenso (veja-se o caso da eleição de Trump e do BREXIT, em 2016). Com Musk, a coisa até não parece ser difícil de gerir pois o homem quando lhe tocam nos negócios parece acomodar-se de imediato, como já aconteceu com vários países. Mas que é caso para se reflectir com seriedade sobre o assunto, lá isso é.
2.
Começou na segunda-feira e termina na quinta, com o discurso de Kamala Harris, a Convenção do Partido Democrata, em Chicago, já na era pós-Biden, com Kamala Harris a liderar o processo eleitoral, nas mais recentes sondagens, com mais 3 ou 4 pontos do que Trump, “o esquisito”, agora em sérias dificuldades, depois da atmosfera de vitória que se instalou depois do debate com Biden. Há uma característica na sua presença no espaço público muito interessante e que contrasta com a atitude de Trump, não só “o esquisito”, mas também o zangado – a alegria que ela transmite, ancorada na figura de uma mulher bonita, decidida e que respira optimismo. Não sei se os quatro combates (alimentação, saúde, habitação e crianças) que anunciou no recente discurso programático convencerão os americanos, mas o que parece é que a personagem está a seduzi-los. Sabe-se que é na formação do colégio eleitoral que está o segredo da vitória, não bastando, pois, ter mais votos (a senhora Clinton teve mais cerca de 3 milhões de votos do que Trump e não ganhou a Presidência), mas o que se anuncia é que, mesmo nos swing states (Michigan, Pennsylvania, Winsconsin, North Carolina, Georgia, Arizona, Nevada, os referidos pelo W. Post), Kamala Harris está a crescer eleitoralmente de forma muito expressiva (“Harris has gained ground in most if not all those swing states since Biden left race”, W. Post, 18.08.24, p. 12). Talvez seja desta que os USA possam vir a ter, pela primeira vez, uma mulher na Presidência. Para os difíceis equilíbrios internacionais em que vivemos a sua eleição seria menos problemática do que a de Trump, além de democraticamente muito mais salutar. Mas muita água ainda correrá sob as pontes.
3.
Em França, no processo de formação do novo governo, estamos a assistir a algo que, para mim, é incompreensível. A Nova Frente Popular (NFP), o bloco político vencedor, a reivindicar a liderança do governo e a propor publicamente um nome para PM, em vez de negociar com o Ensemble, para que, à semelhança do que aconteceu na segunda volta das eleições, das negociações resultasse, sim, um nome aceite pelas partes. Por uma razão: a maioria dos deputados de ambos os blocos foi eleita porque o parceiro de acordo retirou o seu candidato para que o que estava em melhores condições de vencer pudesse derrotar o candidato do Rassemblement Nacional (RN). Foi, como se sabe, vistos os resultados da primeira volta, a dialéctica que mandou para a terceira posição o RN, apesar de este ter obtido mais de três milhões de votos sobre o vencedor. Cada bloco político, NFP e Ensemble, deve a eleição da maior parte dos seus deputados a esses acordos de desistência. Mandaria, pois a lógica, que fosse essa dialéctica a determinar quem seria o novo chefe do governo e não exclusivamente o resultado obtido e o programa apresentado pelo bloco vencedor aos eleitores. Mas não. E por isso parece estar dificultado o processo de formação do governo e, talvez, a eleição de um candidato presidencial não radical de direita, em 2027. Se a emergência democrática valeu para a eleição dos deputados deveria valer também para a indigitação do PM e para acordos a estabelecer tendo em vista a eleição presidencial de 2027.
Já tinha escrito esta nota quando, ontem, li, no jornal “Público”, a notícia da ameaça do inefável Mélenchon (e outras luminárias, o par Bompard&Panot e a senhora Trouvé) de que, baseando-se no artigo 68.º da Constituição, promoveria a destituição do Presidente (“la proposition lunaire faite par LFI”, lê-se no Editorial de hoje do Libération) se não acatasse as suas instruções e não nomeasse a senhora Castets PM. Melhor é impossível: o senhor Mélenchon nomeia o PM e destitui o PR. Afinal, ele é o monarca absoluto de França e ninguém sabia. A senhora Castets (e as outras forças políticas do NFP) evidentemente não aprovou a declaração do senhor Mélenchon (veja-se a entrevista que deu ao Libération de hoje, 21.08), que ficou a falar sozinho, com os seus correligionários.
4.
Na Venezuela está estabelecida definitivamente uma ditadura: a de Nicolas Maduro e das Forças Armadas. O ónus da prova da vitória de Maduro cabe ao poder estabelecido, ao Estado venezuelano, e não à oposição. Ora a prova da vitória não foi apresentada, tendo, todavia, uma consistente prova em sentido contrário sido apresentada pela oposição. A que acrescem investigações de várias entidades internacionais credíveis, como, por exemplo, o Washington Post, entre outras, que dão a vitória a Edmundo González por cerca de 66% dos votos expressos. Isto seria o suficiente para não reconhecer a vitória de Maduro, que só se mantém no poder porque é apoiado pelas forças armadas. Aliás, o que mais parece é que Maduro seja simplesmente a máscara de um poder detido realmente pelos inúmeros generais do regime. Dois mil, ao que parece (“La Razón”, “La Vanguardia”, referindo uma informação do almirante Craig Faller, Chefe do Comando Sul dos USA). Portanto, o regime de Maduro só cairá em dois casos: ou os generais consideram que a farsa já foi longe demais e que é necessário mudar de aparência (mudar alguma coisa – por exemplo, Maduro – para que tudo fique na mesma, seguindo a lição do transformismo) ou, então, os oficiais intermédios tomam conta da situação, independentemente de qual seja a vontade dos inúmeros generais de serviço. Algo parecido ao que, por obra dos capitães de Abril, aconteceu em Portugal, com a famosa “brigada do reumático”.
5.
Em Espanha agudiza-se a crise provocada por denúncias do VOX e de organizações derivadas, por exemplo de “Manos Limpias”, contra a mulher do PM Pedro Sánchez. Quem tem seguido o processo verifica, sem margem para qualquer dúvida, que o juiz Peinado anda em roda livre ao serviço de uma estratégia política (de direita e, sobretudo, de extrema-direita) contra o PSOE e contra Sánchez. E o PP do senhor Feijóo está a alinhar com esta estratégia, reforçando-a, sem reservas. Agora é a número dois do PP, Cuca Gamarra, que anuncia uma nova ofensiva no mesmo sentido contra Sánchez. Estamos também aqui a assistir ao que vem sendo designado como “lawfare”. Só que agora é já também o PSOE a declarar que se isto não pára passará também ele a promover investigações sobre a família de Feijóo, na Galiza, e sobre o companheiro da senhora Ayuso. Uma escalada do “lawfare”, o uso da justiça, qual nova “arma branca”, para fins políticos. Quem perde é a democracia espanhola e quem ganha é o VOX. Depois admiram-se que a extrema-direita esteja a ganhar terreno eleitoral nas democracias da União Europeia. Não me parece que a liderança do senhor Feijóo esteja a demonstrar grande sentido de responsabilidade democrática. Sabemos que a questão da Catalunha tem pesado muito no agravamento da situação, mas sabemos também como o independentismo foi alimentado pelo PP de Mariano Rajoy ao enviar para o Tribunal Constitucional o Estatuto da Catalunha, que tinha sido aprovado pelas Cortes, sabendo que seria reprovado. Por mais criticável que seja a posição de Sánchez para sobreviver enquanto PM, a verdade é que o PSOE, que defende a unidade de Espanha, não só ganhou as eleições na Catalunha como conseguiu pôr um socialista, Salvador Illa, como Presidente da Generalitat, enfraquecendo politicamente o Junts e o seu fugitivo líder. Ou seja, a acção política de Sánchez resultou muito positivamente. Avançou na resolução política do problema da Catalunha sem o reduzir a um processo de natureza puramente penal, a ser resolvido com a força.
6.
Fiquei estupefacto com o anúncio de Luís Montenegro de que, em Outubro, vai dar um “bónus” de 100, 150 ou 200 euros (não repetível, até prova em contrário) aos pensionistas que auferem uma pensão até um pouco mais de 1500 euros. Estupefacto porquê? Já aqui tenho criticado a ideia de um “Estado-Caritas”, a propósito de outros “bónus” atribuídos aos “pobrezinhos”, porque o Estado Social é outra coisa, ou seja, assenta na ideia de direitos sociais de cidadania. Não de favores feitos por quem está no poder. Pois este “bónus” não passa de uma esmola do governo aos cidadãos que auferem aquele tipo de pensão. Uma esmola sem qualquer justificação. Quando o governo de António Costa atribuiu a meia pensão houve, pelo menos, uma justificação: o aumento das pensões para o ano seguinte não iria obedecer ao que a lei previa, portanto, haveria que compensar os pensionistas. Tantas foram as críticas, e justas, que esta decisão, a de não cumprir a lei, acabaria por não se verificar. Entretanto, a meia pensão ficou atribuída, pois já tinha sido processada. Agora nem sequer isto se verifica, pois não se conhece justificação que tenha sido avançada, a não ser a da solidariedade com os que têm pensões mais baixas. Algo verdadeiramente iníquo e indigno, que devia ser recusado pela generalidade dos cidadãos, em nome da decência e da dignidade. A solidariedade do Estado deve acontecer, sim, por um lado, com um Estado Social que funcione eficazmente, e, por outro, com a equidade fiscal e o fim do esbulho que é aplicado aos que pagam impostos directos (IRS), isto é, a cerca de metade dos agregados fiscais. Aqui nem deveria ser aplicada a crítica de eleitoralismo (ainda que seja também isso), mas sim uma crítica mais forte: a da indignidade de o Estado andar a distribuir esmolas aos “pobrezinhos. O cidadão que deixa de ser cidadão titular de direitos para passar a ser “pedinte” à porta de um Estado rico e gordo… mas (precariamente) solidário. Da pior maneira. Os aprendizes de feiticeiro (de turno) reinventam-se no admirável mundo do deslumbramento.
