A CRISE POLÍTICA EM FRANÇA
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 08-2024
MERECE MUITA ATENÇÃO, sobretudo à esquerda, o que se está a passar, neste final de Agosto, em França. Uma crise grave, de que aqui já dei conta, há oito dias, mas que, como era previsível, acaba de se agravar. A novidade já esperada: Emmanuel Macron rejeitou a proposta da Nova Frente Popular (NFP) para nomear Lucie Castets primeira-ministra de França, com a seguinte argumentação:
“un gouvernement sur la base du seul programme et des seuls partis proposés par l’alliance regroupant le plus de députés, le Nouveau Front populaire, serait immédiatement censuré par l’ensemble des autres groupes représentés à l’Assemblée nationale. Un tel gouvernement disposerait donc immédiatement d’une majorité de plus de 350 députés contre lui, l’empêchant de fait d’agir. Compte tenu de l’expression des responsables politiques consultés, la stabilité institutionnelle de notre pays impose donc de ne pas retenir cette option” (do comunicado da Presidência da República Francesa; itálicos meus).
1.
O que está escrito neste comunicado já era conhecido. Macron queria e quer uma solução que possa sobreviver na Assembleia Nacional. O que não era o caso. Antes da decisão do presidente houvera uma ameaça e uma oferta de boa-vontade por parte do senhor Jean-Luc Mélenchon, líder de “La France Insoumise” (LFI): a ameaça, como vimos (veja, aqui, o meu artigo de 21.08.2024), era a de destituição do PR, por uma “Haute Cour”, se este não acatasse as suas ordens – e parece que a proposta de destituição vai mesmo ser apresentada; a boa-vontade –prescindir de ter ministros de LFI no governo, pretendendo assim demonstrar que o problema não resultava de haver ministros “insubmissos” no governo, mas sim do próprio programa da NFP. De resto, Macron teve oportunidade de interrogar e de ouvir a candidata longamente sobre o que pretenderia fazer no caso de ser nomeada. Uma nomeação que não carece de ratificação parlamentar (mas que pode ser sujeita a uma moção de censura).
2.
Lembro que os deputados desta coligação de partidos (LFI, PSF, Verdes e comunistas) que resultaram das eleições são 193 contra os 166 da coligação Ensemble. Estes deputados, excluídos os 32 obtidos pela Nova Frente Popular (NFP) e os dois obtidos pelo Ensemble, na primeira volta, devem a sua eleição, em grande parte, a uma política de desistência, negociada entre os dois blocos políticos, a favor dos candidatos que estivessem em melhores condições de derrotar o candidato do Rassemblement National (RN), na segunda volta. E assim foi. E é a esta situação que parece referir-se (no final) o comunicado da presidência:
“Les partis politiques de gouvernement ne doivent pas oublier les circonstances exceptionnelles d’élection de leurs députés au second tour des législatives. Ce vote les oblige”.
Ou seja, foi mais a circunstância de evitar o perigo de uma vitória da extrema-direita do que a adesão a um programa que determinou a eleição dos deputados dos dois blocos políticos. Aliás, nem é o programa eleitoral que é escolhido, mas sim os representantes (na democracia representativa não há “vínculo de mandato”), sendo o programa apenas uma das três variáveis essenciais que determinam a eleição do representante (valores/princípios/ideologia, programa/policies, rosto, do candidato ou do líder, como agente fiduciário). Esta razão, a que se junta a certeza de que um governo da NFP viria a ser objecto de aprovação imediata de uma moção de censura na Assembleia, levou Macron a rejeitar a proposta. Na verdade, como disse, o que Macron pretende é uma solução que envolva várias sensibilidades políticas, eventualmente com um PM exterior aos blocos ou uma figura politicamente prestigiada, em condições garantir uma maioria parlamentar de apoio e, consequentemente, estabilidade governativa. Este tipo de solução é muito frequente, por exemplo, em Itália. É esse o papel do PR que a constituição prevê, garantir a estabilidade institucional, e não o de cumprir ordens impositivas do senhor Mélenchon sob pena de ser levado a uma (política) corte marcial. Lembro que as eleições legislativas foram marcadas na sequência dos resultados disruptivos das eleições europeias, ganhas pelo RN, com 31, 37% dos votos (mais do dobro do resultado do Ensemble, o segundo, com 14,60%, ou do PS, Lista de União à Esquerda, com 13,83%).
3.
A antecipação da NFP, impondo publicamente um candidato e ameaçando destituir o Presidente se não acatasse a imposição, só poderia ter como desfecho o que se viria, de facto, a verificar, sob pena, isso sim, de o PR não estar a cumprir as funções que a Constituição lhe atribui: “ Le Président de la République nomme le Premier ministre” (art. 8) e “Le Président de la République préside le conseil des ministres” (art. 9). Note-se que a Constituição não diz, como a portuguesa, “o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (n.1, art. 187). E, ao contrário do PR português, o PR preside ao Conselho de Ministros. Duas diferenças essenciais, que dão um poder e uma responsabilidade ao PR francês que não existem no caso português. E não me parece que esta redacção da Constituição seja inocente ou que a regulação dos poderes presidenciais peque por defeito. Se assim é, isso tem um claro significado político acerca dos poderes e das responsabilidades do presidente. Ousaria até dizer que, se não fosse grave, a injunção do senhor Mélenchon é ridícula e megalómana. O processo de destituição exige uma sólida fundamentação (não resulta de uma pura projecção da vontade política de um qualquer sujeito político) e é complexo, envolvendo as duas câmaras e uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e senadores.
4.
É claro que o guião de tudo isto parece ter uma clara autoria: a do senhor Jean-Luc Mélenchon. As suas opções, no essencial, são determinadas por claro objectivo: as presidenciais de 2027. Mais uma vez. Poder ser ele a polarizar, numa segunda volta, o voto contra a extrema-direita, sem se aperceber, digo eu, que com as posições e os discursos que vai tendo o que conseguirá será precisamente a vitória de Marine Le Pen e a destruição da credibilidade da esquerda que diz defender. Ele e o senhor Olivier Faure (a fractura no seio do PSF já está a acontecer, precisamente sobre as relações a estabelecer com o presidente da República, na sequência da recusa de Macron em nomear PM a senhora Lucie Castets).
5.
Se reflectirmos um pouco nestas últimas posições do senhor Mélenchon, não seguido em tudo pelos partidos que integram o bloco político NFP (como, por exemplo, na destituição do Presidente), veremos que não fazia grande sentido apresentar publicamente, e nos termos em que foi feito, a candidata ao lugar de PM. Teria toda a legitimidade para a propor, mas no quadro de negociações, não públicas, com o PR, com o Ensemble e com os Republicanos. Fazer o que fez, no meu entendimento, significou não só não querer acordo, mas também induzir a negativa do PR. A constituição diz que o PR nomeia, sem explicitar, como disse, condições e, mais, diz também que preside ao conselho de ministros. A nomeação de um PM envolve-o, pois, directamente, pelo menos por estas duas razões. Abdicar deste poder, isso sim, seria não cumprir as suas funções, como previsto no art. 68: “manquement à ses devoirs manifestement incompatible avec l’exercice de son mandat“.
6.
O que noto aqui é uma série de incongruências que me levam a pensar que só fazem sentido pela negativa – não quererem governar nem quererem outras soluções. Pura oposição a Macron, sejam quais forem as consequências, incluindo a de aplanar o terreno (não assumindo responsabilidades, mas dando a parecer exactamente o contrário) para uma vitória da extrema-esquerda nas presidenciais de 2027, isto é, do senhor Jean-Luc Mélenchon. É estranho, mas é o que parece, a usarmos a lógica linear do bom senso. E é esta conclusão que me leva a Mélenchon e, já agora, ao senhor Olivier Faure… mas não a Raphael Glucksmann que, não sendo do PSF, foi o seu cabeça de lista nas europeias. Na verdade, o grande salto em frente do PSF nas europeias deve-se a Glucksmann (líder do movimento Place Publique). Este, nestas eleições, deixou a LFI ( que teve 9,89%) a cerca de 4 pontos de distância do PS, que obteve 13,83%. “É preciso acabar com a estética da radicalidade, que mais não é do que sectarismo”, diz Glucksmann. “Em 2027, será a social-democracia, e não um sucedâneo do macronismo ou um avatar do populismo de esquerda, que defrontará o lepenismo”, disse na entrevista que concedeu ao Figaro/AFP (20.08.2024). Foi Faure que o escolheu para cabeça de lista, mas hoje as relações entre eles parece não conhecerem os melhores dias.
A verdade é que Glucksmann e o seu movimento parece poderem ser uma lufada de ar fresco na debilitada social-democracia francesa. O populismo de esquerda, a avaliar pelo que está a acontecer nestes dias, não parece ser a melhor das companhias do PSF, que se arrisca, depois das europeias, a voltar a cair na insignificância.
7.
Mas em França também se joga o destino da União Europeia, uma responsabilidade que parece não ser a dos partidos que integram o NFP, em especial a do senhor Mélenchon, chefe de um “parti europhobe”, para usar as palavras do jornal Libération. Se descontarmos a vitória de Keir Starmer, a esquerda vive momentos de grande dificuldade um pouco por todo o lado. E não será com posicionamentos e discursos destes que a França ajudará o projecto europeu e, diga-se, a si própria. Bem pelo contrário, o risco que se corre é o de a mancha da extrema-direita alastrar de tal modo que se torne difícil contê-la. JAS@08-2024
