Artigo

DEZ FRAGMENTOS

SOBRE A MELANCOLIA

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 09-2024

1.

No Texto “A Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe diz o seguinte:

A beleza de qualquer tipo, no seu desenvolvimento supremo, invariavelmente excita a alma sensível até às lágrimas. A Melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos”.(Poética, Lisboa, FCG, 2016, 2.ª ed., p. 40).

Tem razão o poeta, a melancolia é o sentimento poético por excelência. O húmus da poesia. Aquele que tem mais afinidades com ela. Talvez pela sua ambiguidade, nebulosidade, indeterminação, vagueza, mas também pela profundidade, pela delicadeza e complexidade dos seus efeitos espirituais, mais do que anímicos, já que, como sabemos, a alma não se confunde com o espírito. É como a poesia, que nunca parece esgotar o sentido do que diz,  que procura dizer o inefável, que só alude e não descreve, que é conotativa e não denotativa, expressividade anímica em linguagem espiritual que deixa o sentido a pairar como neblina ou chuva miudinha sobre as palavras (mesmo quando o objecto de atenção do poeta parece ser concreto, definido, determinado), que molha a alma de quem escuta e que actua como estimulante sensitivo para a partilha de sentimentos e emoções. A melancolia é irmã gémea da poesia.

2.

A poesia é transfiguração e no processo criativo transforma o referente, tornando-o maior do que é, mais profundo e mais belo, como quando se extrai de um mineral o seu núcleo “aurífero”, se purifica e se transforma em jóia, em obra de arte. Italo Calvino, falando de arte e de poesia, refere-se ao cristal, “con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce”, como “il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema” (Lezioni Americane, Milano, Garzanti, 1988, p. 69). Falando de Leopardi, diz que “il poeta del vago può essere solo il poeta della precisione” (1988: 61) e considera Paul Valéry como a personalidade do século XX que melhor definiu a poesia como uma tensão para a exactidão (1988: 66).  Pode parecer estranho, um oxímoro, mas a vagueza só pode ser dita com o máximo de exactidão, de precisão cirúrgica. Por exemplo, a extrema vagueza da melancolia. Demasiadas palavras ou um discurso analítico não a captam, desfiguram-na. Por isso a poesia é a linguagem apropriada para falar da melancolia. Em registo de minimalismo discursivo quase a deslizar para o silêncio. Ou, então, como eco do silêncio. O Poe falava de 100 versos, no máximo. A poesia é, pois, alquimia. E o poeta um aurífice. Do ouro informe resulta uma jóia exacta como um cristal. Tal como da melancolia um poema. Um cristal lapidado com a exactidão das palavras cinzeladas. Uma vasta superfície que se oferece à sensibilidade do poeta, a da melancolia, e da qual este extrai o núcleo aurífero para o lapidar com a exactidão das palavras escolhidas, pela sua força expressiva, pela sua musicalidade, pela sua forma.

3.

Como obra de arte, o poema não é redutível a nenhum referente porque ele dá voz a qualidades esteticamente emergentes que não existiam nele ou existiam apenas “in nuce”, em embrião, somente disponíveis, para ganharem forma, ao olhar comprometido do poeta ou do artista – “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. Repito sempre, a propósito da criação artística, esta fórmula fabulosa da Yourcenar/Michelangelo, em “Le Temps ce grand Sculpteur”.

4.

É difícil dizer o vago sem correr o risco de o caracterizar excessivamente, acabando por negá-lo, anulá-lo, contradizê-lo. O vago vale precisamente porque é vago, porque é a sua vagueza que estimula o poeta. A poesia sente-o, o vago, e procura pintá-lo com palavras, em polissemia melódica e rítmica. A melancolia é vagueza e é leveza. É mais do que tristeza, mais do que saudade ou do que sentimento intenso e incerto de um vazio que não é possível preencher.  É mais porque atinge já o nível espiritual. É por isso que é terreno fértil para a injunção poética, para a captação exacta da vagueza de um sentimento que resiste a deixar-se capturar na forma ou pela forma. A poesia, que é a menos formal das artes, transforma a tristeza em melancolia, tal como a arte transforma o cómico em humour (Calvino) ou como o aurífice converte o ouro em jóia pronta a ser usada universalmente porque portadora de beleza incondicionada, que pode ser apreendida pelo dispositivo estético, pela sensibilidade educada de que os seres humanos dispõem. O Kant falou de dispositivo universal-subjectivo: o juízo de gosto (quando se trata do belo), não sendo movido por interesse, sendo “contemplativo”, funda a sua validade, não no objecto, mas em algo que é universal, que existe nos sujeitos do juízo estético e que se pode identificar como o livre jogo entre duas faculdades, o intelecto e a imaginação: “o juízo de gosto deve ter a pretensão de uma universalidade subjectiva” (Kant, Crítica do Juízo, I. I. I, § 6; e Della Volpe, Opere, V, Roma, Riuniti, 1973: 26-30 e 456-457). Estamos, pois, a falar de algo aparentemente contraditório, de um aparente oxímoro: a “universalidade subjectiva” que acontece no terreno do sentir, da harmonia sentida interiormente, na livre dialéctica entre faculdades que são comuns a todos os seres humanos. Não se trata, pois, num juízo estético, para o dizer em palavras mais simples, nem de representações conceptuais nem de reconhecimento de qualidades do objecto digno de atenção estética e considerado belo. Trata-se dos sentidos interiores, do sentimento, de algo que, sendo subjectivo, alcança na beleza uma dimensão universal, sim, mas sempre ancorada na imaginação e no sentimento.  Algo que não é muito difícil de entender porque deste jogo resulta uma forma que pode ser apreendida universalmente. Por isso Kant fala da intervenção do intelecto neste processo, nesta dialéctica entre faculdades. Algo, dizia, que a precisão e o minimalismo poéticos propõem eficazmente ao juízo estético, garantindo-lhe essa dupla qualidade – universal e subjectiva. A melancolia pertence a esta esfera da imaginação e do sentimento e é o terreno onde acontece a transfiguração poética, já com dimensão espiritual (correspondente à parte desempenhada pelo intelecto). Falando da sua irmã gémea, a tristeza, poderia dizer que a melancolia é um seu sofisticado upgrade. Como diz Calvino: “la melanconia è la tristezza diventata leggera”, por obra da arte. É esta leveza que a torna universal, retirando-a da esfera individual, a da tristeza, puramente subjectiva ou psicológica.  E a leveza só lhe pode ser dada eficazmente pela poesia (mas também na pintura o tentei fazer com um rosto de mulher, projectando na pintura a semântica do poema). E diria até que a “universalidade subjectiva” de que fala Kant se dá nesse intervalo, nesse “mundo intermédio”, nessa brecha entre o puramente sensível e sensorial e o universal que é o território próprio da arte. Um território que exige precisão, a que se oferece ao juízo estético, como veremos em “O Corvo”, do E. A. Poe. Só a arte pode manter este contacto ou esta fusão entre o sensível e o inteligível (na dialéctica entre a imaginação e o intelecto), nesse instante oportuno (o instante criativo) que os gregos traduziram pela palavra kairós. É isso que faz dela a mais humana das actividades. Eu creio mesmo que a autêntica arte é necessariamente alquímica. E é nesse movimento em direcção ao essencial que se inscreve a sua potencial “universalidade subjectiva”, quando o sentir do poeta pode ser compartilhado universalmente sem lhe retirar o carácter subjectivo, ou seja, a sua dimensão sensível.

5.

Edgar Allan Poe desenvolve uma interessante e minuciosa descrição do processo de construção do seu famoso poema “The Raven”, onde, como vimos, o tom determinante é o da melancolia. Ele diz que é assim em geral e, claro, neste concreto também, como ele próprio o reconhece. E é o recorrente refrão, “nevermore”, que alude à mais radical das ausências de um ser amado – a que é devida à morte. Melancolia levada ao extremo porque morre a amada, que, ainda por cima, é bela. A morte e a beleza como os dois ingredientes fatais da melancolia, quando combinados: “a morte, então, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” (2016: 42). O pássaro de mau augúrio, o corvo, repete cruelmente no poema para o sujeito poético que sofre de profunda melancolia: nevermore.  Uma só palavra para dar todo o sentido ao poema, indo ao essencial: a melancolia sofrida (e o poema seria a levitação desejada). Precisão, exactidão. Minimalismo discursivo (embora o poema tenha 108 versos). É neste sentimento de impossibilidade que está ancorada a melancolia – “nevermore”. A morte da mulher amada, a sua beleza, o destino, o reencontro impossível, revelado pelo corvo, aprofundam a melancolia . O refrão é o par inelutável da melancolia. Uma só palavra: “nevermore”. Mais precisão do que isto é impossível. Não foi casual o sucesso e a importância deste poema.

6.

O paralelismo entre o poema “Melancolia” e o que diz D. Duarte no “Leal Conselheiro”, pode ser feito, como fez um companheiro de viagem poética : “humor menencorico”. Tristeza, que outros dizem ser depressão. Doença, “voontade desconcertada”. Claro, pois a vontade, se for concertada, dirigida pela razão, se for apolínea, pode ajudar a resolver o “humor menencorico”. Por exemplo, através da poesia. E curou-se, mas não foi através da poesia, cheio de trabalho que andava, D. Duarte. Ou, então, porque não tinha recebido esse dom da poesia, lhe faltou esse sobressalto do estremecimento suscitado pela musa fatal (como diz Eliot). Interpretado o texto, nesta parte (no capítulo XIX), conclui-se que não foi, de facto, a poesia que o “guareceu”. Guarecer, guareceu, mas não através da poesia. Mas podia ter sido, ou não fosse, ou não seja, o “humor menencorico” o “mais legítimo de todos os tons poéticos”, como diz Poe. Tornada leve, por força da levitação poética, a tristeza torna-se melancolia. O poder catártico da arte de que D. Duarte não se socorreu, apesar de ter, exactamente como fazem os poetas (e é isto que é interessante), partilhado a sua dolorosa experiência em prosa e também, de certo modo, como resgate, seu e de outros afectados pelo mesmo mal. Permaneceu a tristeza, mais como depressão do que como melancolia, apesar de a ter qualificado como “humor menencorico”. E, no entanto, sentiu necessidade  de complementar a superação da tristeza depressiva com o uso da palavra, embora em prosa. Mais uma vez a palavra e o seu poder catártico. O facto parece não ser estranho à vocação catártica da poesia. Essa, sim, mais eficaz do que a prosa. Porque ela é provavelmente a mais performativa das artes. Portanto, o paralelismo funciona, precisamente pela intervenção da palavra catártica no processo. E bem, no meu entendimento.

7.

Quanto ao poema “Melancolia”, o poeta, não tendo certezas, pois a poesia não lhas dá, suspeita que seja já melancolia o que, também a ele, afecta, por perda ou tristeza,  por ausência ou vagueza sentimental, já transfiguradas pelo poema reparador em curso (no processo de criação) e animado, o poeta, pela “sombra luminosa” do ausente, do que foi perdido. “Sombra luminosa” na fita turbulenta da memória. Essa luz, que também é sombra, que o poeta assume como sua “fiel amante”. Da perda à doce melancolia – é o trajecto que o poeta percorre graças a essa luminosidade onde lhe acontece a criação, a poesia, e onde a leveza do ser ocupa o lugar do insustentável peso da existência. Acho feliz esta expressão (creio que é do R. Barthes, em “La Chambre Claire”, de 1980) porque conjuga a ideia de sombra (a perda, a ausência) com a de luz (a inspiração, a poesia). O passado mantém-se como sombra, como simulacro que só pode ser acedido favoravelmente pela poesia, como uma luz que o traz à consciência do poeta. O que ganha ainda mais sentido se a conjugarmos com a outra ideia (de Kierkegaard) de “fiel amante” (a melancolia, derivada da ausência, por perda). Um mundo todo ele reconstruído pelo poeta e que lhe permite evitar a depressão e converter a (originária) tristeza em doce melancolia.

8.

Sim, sempre as palavras a desempenharem um função essencial de elevação sobre o mar encrespado da vida. Mas aqui, neste poema, “Melancolia”, também o pintor, que acompanha o poeta há anos, já tinha ajudado um pouco ao dar forma visual à melancolia com um rosto, não seu, claro, mas de mulher. Afinal, a melancolia é feminina, tal como a poesia. E é por isso que ela é tão sensível e se pode tornar “fiel amante” do poeta (a mulher do quadro “Melancolia”). O estado melancólico, afinal, é próprio da condição de poeta, condição quase maternal, poder-se-ia dizer.

9.

A Joke Hermsen cita, no seu livro sobre a melancolia (Melancolia em tempos de perturbação, Lisboa, Quetzal, 2022, p. 186), Ernst Bloch e o texto “A Melancolia do Cumprimento”: para Bloch, diz, não há “entrada no paraíso sem a sombra da perda” (palavras de E.B.). O que me lembrou de imediato a “sombra luminosa” do ausente, de que fala Barthes, e o acesso ao paraíso através da poesia. E, claro, a melancolia. Só a sombra da perda, precisamente a melancolia, que é sombra de algo que se perdeu e que se mantém precisamente como sombra, dá acesso ao paraíso, sim, mas só se iluminada pela poesia no instante oportuno. Uma espécie de moinha que exige cuidados, não primários, mas espirituais, para a resolver.  O que poderia também equivaler a uma declarada condição de acesso à poesia. A sombra da perda que se torna luminosa através da inspiração poética. Uma linha evolutiva: perda, sombra, luz, paraíso. É isso. A poesia é uma luz que se acende sobre um passado sombrio. E que, num passe de magia, nos leva ao paraíso. Et voilà.

10.

E diz mais, a Hermsen, referindo-se a Bloch e ao princípio que é o objecto central do seu fabuloso “Das Prinzip Hoffnung”: a esperança é a outra face da melancolia. É, aliás, do estado melancólico que resulta a vontade de futuro, onde a dor seja matizada,  mas também de um futuro desenhado com palavras sob forma de utopia. A melancolia que resulta da falta de “Heimat”, da pátria, leva Hannah Arendt (o que bem se compreende historicamente) a dizer que esses, os que a não têm, são bem-aventurados porque continuam a vê-la e a vivê-la nos sonhos. E a elevá-la para além de si própria, pois sentida em estado de melancolia, de perda, de ausência. O sentimento de perda gera esperança, a esperança gera vontade de ter algo novo e mais perfeito, gera vontade de construir a utopia. E o que é a poesia senão utopia em construção infinda? JAS@09-2024

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