A DEMOCRACIA ROUBADA?
O CASO FRANCÊS
Por João de Almeida Santos

“La République” – JAS 2024
DEPOIS DA ESCOLHA DE MICHEL BARNIER como primeiro-ministro, e não da candidata Lucie Castets, proposta pela Nova Frente Popular (NFP), Emmanuel Macron está a ser acusado pela esquerda de ter roubado a democracia em França. O raciocínio é este: sendo a NFP o bloco político de maioria relativa, saída das eleições, deveria ser ela a responsável pela formação do governo. Mas não foi e daí a acusação feita pelas forças que integram a NFP, A França Insubmissa (LFI), o Partido Socialista, os Verdes e os Comunistas. Mas não se trata só disto: irá ser proposta à Assembleia Nacional (AN), ao abrigo do art. 68 da Constituição francesa, uma resolução para a formação de uma “Haute Cour” com vista à destituição do presidente. Nada menos. Puro maximalismo, ilegítimo e inconstitucional, a evidenciar ódio político a Macron e uma perigosa irracionalidade. A estas acusações acrescem duas críticas ao Presidente: ter decidido, erradamente, ir para eleições legislativas a seguir às europeias e, depois, ter levado cerca de dois meses para indicar um novo primeiro-ministro, como se não fosse mais do que habitual a formação de governos saídos de eleições levar o mesmo tempo ou muito mais (aconteceu recentemente entre nós, como tem vindo a acontecer em Itália desde o pós-guerra e como aconteceu nos países baixos – a formação do último governo levou cerca de sete meses desde as eleições de novembro de 2023). E esta situação até é facilmente explicável se atendermos à nova composição da AN saída das eleições, ou seja, fragmentada em três grandes blocos. Mas a verdade é que o caso francês é tão interessante e elucidativo que vale a pena clarificar o que esteve realmente em causa, para evitar juízos apressados como os que circulam em abundância por aí. E, em particular, na área do centro esquerda. É o que me proponho hoje fazer.
1.
As europeias realizaram-se em Junho e foram ganhas de forma muito significativa pelo Rassemblement National (RN) da senhora Marine Le Pen e do senhor Jordan Bardella. O RN obteve 31,37% e 30 eurodeputados contra 14,6% e 13 eurodeputados do bloco presidencial (“Besoin d’Europe”) ou do partido socialista (“Reveiller L’Europe”), com 13,83 % e 13 eurodeputados, não tendo a LFI sequer atingido os 10% (9,89% e 9 eurodeputados). Note-se que a taxa de participação dos franceses nestas eleições foi de 51,49%, portanto, muito significativa, devendo suscitar por isso ilações políticas fortes, como, aliás, aconteceu. E note-se, também, que o sistema eleitoral é, nas europeias, proporcional.
Foi este resultado que levou Macron a convocar eleições para que houvesse uma clarificação política, sob pena de, mantendo-se a situação política inalterada depois das europeias, a política francesa ficar inevitavelmente capturada pela sensação pública de ser o RN a força política com maior legítimidade para determinar o destino político de França, ficando consequentemente o governo francês altamente fragilizado. E não serão os resultados verificados nas legislativas a servir de grelha analítica para avaliar da bondade da decisão de Macron, até porque a primeira volta os confirmou, embora com valores muito mais aproximados. Mas não é necessário frequentar a Sorbonne para perceber que os resultados avassaladores das europeias teriam efeitos políticos disruptivos sobre a evolução da opinião pública e, consequentemente, sobre a política francesa. Efeitos claramente favoráveis ao RN, dada a dimensão da vitória eleitoral. Um resultado tão expressivo como este justificaria, por isso, perguntar aos franceses se confirmavam esta orientação eleitoral em eleições legislativas, mostrando o devido respeito pela cidadania. Por isso, na minha opinião, Macron fez o que devia, tendo esta tendência sido confirmada na primeira volta das legislativas, com o RN a ser de novo o partido mais votado, mas com valores muito inferiores aos registados nas europeias. Um primeiro passo, pois, para relativizar a força eleitoral do RN. Na minha opinião o que Macron fez foi exactamente recusar-se a meter a cabeça na areia para não ver o gigante político que se estava a aproximar cada vez mais do centro do poder.
2.
Com efeito, o RN venceu as eleições na primeira volta, contra as duas coligações União de Esquerda e Ensemble, obtendo 29,28% e 37 mandatos contra 27,99% e 32 mandatos, da primeira, e 20,04% e dois mandatos, da segunda. Não é por acaso que o RN se está a bater por uma alteração do sistema eleitoral com a introdução de um sistema proporcional. Lembro que o sistema eleitoral é, nestas eleições, maioritário em duas voltas. O partido de Marine Le Pen e de Bardella mantém-se, pois, como o maior partido francês e só a natureza do sistema eleitoral francês o viria a impedir de voltar, pela terceira vez, a ganhar eleições. Por isso, não creio que fosse sério continuar, depois das europeias e do nível de participação que tiveram, como se nada tivesse acontecido em Junho. E foi por isso que Macron decidiu, e bem, dar a palavra aos franceses.
3.
Só na segunda volta das legislativas o RN seria remetido para a terceira posição em número de deputados, fruto de uma aliança entre a NFP e o Ensemble que determinava que só os candidatos que estivessem em condições de derrotar os candidatos do RN se apresentariam a eleições. E assim foi, embora este partido (e a fracção dos Republicanos do senhor Ciotti, aliada ao RN) tenha sido o partido que obteve mais votos: cerca de três milhões mais do que o vencedor da segunda volta, a NFP. Mas é preciso não esquecer que o RN ganhou a primeira volta das legislativas, embora não já de forma tão significativa como nas europeias. E isso tem relevância.
4.
O RN é, pois, hoje, politicamente, a força maioritária em França, apesar de ter menos deputados 142 (RN + UXD) do que o bloco de esquerda e do que o bloco de Macron (estes, respectivamente, com 193 e 166 deputados). Mas tem menos deputados porque, como disse, na segunda volta teve contra si uma aliança destes dois blocos centrada numa política de desistências a favor do candidato que estivesse em melhores condições de derrotar o seu candidato. Ou seja, a configuração parlamentar actual decorreu mais da aplicação de uma lógica negativa usada contra o RN do que dos programas que os candidatos propuseram aos eleitores ou da sua exclusiva identidade política. E é este facto incontestável (relembrado na parte final do comunicado da presidência da República) que torna mais frágil a reivindicação da NFP porque não bate certo com a política de compromisso que levou a este resultado final. Não fosse esta orientação eleitoral e o partido que ganharia as eleições teria sido provavelmente o RN (tal como aconteceu na primeira volta e nas europeias).
5.
A lógica ditaria, pois, que a mesma política de compromisso fosse aplicada na formação do governo e na constituição de uma maioria parlamentar que garantisse a estabilidade governativa, respeitando a orientação política que levou à derrota do RN. E sabe-se que o projecto de Macron era precisamente o de promover um governo que integrasse membros da NFP, do seu bloco político e dos Republicanos. Não era visto com bons olhos, ao que parece, que a LFI integrasse o novo bloco governativo, mas nem o senhor Mélenchon se importaria com isso, a crer literalmente na declaração que fez a este respeito (não considerando, pois, que foi uma declaração táctica e puramente retórica ou até mesmo um pouco cínica). Uma solução deste tipo teria uma maioria de apoio na Assembleia Nacional. Mas a verdade é que esta solução ficou imediatamente impossibilitada quando a NFP apresentou a sua candidata a Matignon publicamente e, mais, ameaçando o presidente de destituição se não a nomeasse. Esta decisão não só prescindiu do que acontecera antes, na segunda volta, e recusava o projecto de Macron, mas também o obrigou a optar, em coerência com a sua própria estratégia, por uma solução que não encontrasse resistências significativas à direita (a solução que lhe restou), passando, pois, a incluir na equação a posição do próprio RN, o mesmo que na segunda volta fora combatido quer pelo bloco do Presidente quer pela NFP. Não parece ter, pois, fundamento dizer que, no fundo, era mesmo isto que Macron queria. Não o quis na primeira volta e voltou a não querê-lo quando esteve disposto a nomear o senhor Cazeneuve, ex-primeiro ministro de Hollande, que Faure não quis. Uma autêntica reviravolta, contrária ao espírito que norteou a segunda volta das legislativas.
6.
Não nego, naturalmente, que a NFP tivesse toda a legitimidade para, em negociações não públicas, digo, não públicas, com o Presidente vir a propor a senhora Castets como candidata a PM. Certamente. Mas também não é possível negar a legitimidade de o presidente querer uma solução mais alargada ao seu bloco político e à direita moderada. Esta diferença poderia ter sido objecto de negociações desde que não fossem públicas e não aparecessem como uma imposição da NFP a um presidente ao qual a constituição dá o poder de nomear o PM (omitindo a obrigação de ter em conta os resultados eleitorais, ao contrário do que estipula a nossa CRP) e atribui a competência de presidir ao conselho de ministros. Em poucas palavras, a iniciativa pública da NFP produziu de imediato um curto-circuito no processo negocial, apoucou a figura do presidente francês e as suas competências constitucionais, anulou o significado do processo que esteve na génese da eleição da maior parte dos seus deputados e fechou os olhos ao mais que certo ao chumbo parlamentar de um governo liderado por Lucie Castets. Em nome de quê? Que o senhor Mélenchon, com o seu radicalismo inconsequente e o exclusivo interesse presidencial que o move, pareça querer tudo isto não me admira, mas que o senhor Olivier Faure o siga espanta-me e, por isso, não lhe auguro um futuro muito interessante no próprio PSF. De facto, tenho a convicção de que Faure não irá ter vida fácil no seu próprio partido, se considerarmos que a sua posição sobre o processo (a recusa de Cazeneuve) acabou por passar no partido (no Bureau National) somente por um voto. A situação pode muito bem ser resumida pelo que disse Nicolas Mayer-Rossignol, socialista e presidente da câmara de Rouen: “À força de querer uma esquerda pura, temos [ agora ] uma direita mais dura” (El País, 08.09.2024, p. 3).
7.
Na verdade, se Macron teve de alterar a sua estratégia, passando a depender da “condescendência” política do RN (“bienveillance” é a palavra usada por “Le Monde”, porque, segundo Marine Le Pen, este é o “mal menor” e evita a paralisia do país, embora não lhe mereça um “cheque em branco”), isso deve-se em grande parte à intransigência e à arrogância da NFP que, no processo de formação do governo, contrariou a lógica que lhe deu a maior parte dos deputados e ao mesmo tempo criou condições para que entrasse pela janela um partido que a política de aliança com o bloco de Macron fizera sair pela porta, na segunda volta. Como já se diz, o grande ganhador desta intransigência e arrogância não é Macron nem a NFP, mas sim o Rassemblement National e a senhora Marine Le Pen, a caminho das presidenciais de 2027. Veremos se as suas exigências irão, ou não, ser cumpridas para que não votem uma moção de censura ao governo Barnier: fim da discriminação do RN; resposta ao problema da imigração; debate sobre a introdução do proporcional no sistema representativo. Barnier já mostrou abertura em relação a estas exigências do RN. E uma coisa é certa: a não oposição activa do RN é condição sine qua non para a sobrevivência do governo. O RN é hoje o árbitro da política nacional e a NFP a oposição. Que efeitos terá isto nas próximas eleições presidenciais não se sabe, mas uma coisa já se sabe: deu-se início à normalização da extrema-direita em França.
8.
Uma bela lição a retirar sobretudo pelos partidos sociais-democratas ou socialistas. Sobre o que não se deve fazer. Na verdade, o sectarismo nunca leva a bom porto, a confusão entre o adversário principal e o adversário secundário também não (sobre isso aconselho a leitura do interessante livro de Mao Tse Tung: Da Contradição) e a falta de racionalidade em política nunca é produtiva nem benéfica. Estas três variáveis podem claramente ser aplicadas à NFP e, em particular, à LFI do senhor Mélenchon e ao PSF do senhor Olivier Faure.
Na verdade, não correm bons tempos para o centro-esquerda. Parece ser evidente a existência de uma crise generalizada e que, se não for reconhecida, não será possível encontrar as respostas necessárias, vendo-se, portanto, sujeita a um inevitável declínio.
O caso francês é muito instrutivo sobre a actual filosofia dominante do centro-esquerda, quer quando se torna maximalista quer quando cede às exigências dos neoliberais, variáveis daquela que é a tendência deletéria que, em geral, se tem vindo a verificar nesta área política. E foi esta, sim, a razão que me levou a voltar analisar, com o máximo de objectividade possível e sem “parti pris” (apesar da minha filiação neste espaço político), o caso francês. Um caso tão evidente que espero que mereça a atenção do nosso próprio centro-esquerda, em particular do PS. JAS@09-2024
