Artigo

UMA HISTÓRIA COMOVENTE

Gramsci, a Prisão e o Fascismo

Por João de Almeida Santos

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“Gramsci”. JAS 2024

HÁ MUITO que não escrevia sobre um político e intelectual de grande projecção mundial ao qual dediquei alguns anos da minha vida. Trata-se de Antonio Gramsci, um marxista atípico, líder do partido comunista italiano, deputado e, com trinta e cinco anos, preso nas cadeias do fascismo italiano, onde viria a morrer, em 27 de Abril de 1937. Mais exactamente, partiu já em liberdade condicional, devido às suas gravíssimas condições de saúde, estando internado numa clínica privada  de Roma, Quisisana. Nascera em 1891, na Sardenha, Ales. Personagem fascinante política e intelectualmente, Antonio Gramsci deixaria uma obra relevante e algumas importantes inovações sobre a política, que continuam plenamente actuais. Melhor: que deveriam integrar o melhor património da política actual, mas que infelizmente estão esquecidas pelos partidos que tem dominado a cena política nos últimos decénios. E, em particular, os de centro-esquerda. Falo, por exemplo, da conjunção da política com a ideia de hegemonia ético-política e cultural, ou seja, da ancoragem da política a uma visão do mundo estruturada que possa ser assumida e partilhada interiormente pela cidadania e que garanta estabilidade ao exercício ao poder, fundado numa adesão consciente e critica e na partilha de valores políticos e sociais articulados com coerência. Em palavras mais simples: uma política que não fique reduzida à mera conquista, conservação e reprodução instrumental do poder. Mas Gramsci não pode ser lido com as categorias do marxismo-leninismo porque, assim, o seu pensamento seria distorcido. Trata-se de um pensamento complexo e original em relação à tradição marxista clássica.

1.

Por que razão volto a Gramsci? Porque tive conhecimento de que, recentemente, foram publicadas textos de Gramsci, em Portugal, depois de um longo período de abandono do pensamento deste personagem tão relevante na história do século XX, embora não seja o caso de outras zonas do mundo onde Gramsci continua a ser objecto de grande atenção. Falo, por exemplo, da América Latina. Publiquei vários estudos sobre Gramsci (em particular o livro O Princípio da Hegemonia em Gramsci, em 1986, mas também dois capítulos do meu livro Os Intelectuais e o Poder, em 1999, e outros dois capítulos inseridos no livro colectivo Da Gaveta para Fora – Ensaios sobre Marxistas, em 2006), mas, desta vez, regressei a um livro que me comoveu, quando foi, em 1991, publicado por Valentino Gerratana para as edições Riuniti. Trata-se da obra “Piero Sraffa, Lettere a Tania per Gramsci” (Roma, Riuniti, 1991, 276 pág.s). Uma publicação que torna públicas 79 cartas do grande economista italiano à cunhada de Gramsci, Tatiana Schucht, que servia de mediadora das relações entre os dois amigos. Estão ainda publicadas outras cartas, sobretudo de Tatiana, ou seja, nove; duas de Sraffa a Togliatti e três a Elsa Fubini e  Paolo Spriano; uma de Camilla Ravera a Júlia Schucht, sendo, em notas de Gerratana, ainda transcritas outras cartas, sobretudo de Tatiana). Valentino Gerratana, o responsável pela  fabulosa edição crítica, em quatro volumes, dos Quaderni del Carcere (e com quem iniciei, em 1978, os meus trabalhos sobre Gramsci no Instituto Gramsci de Roma, tendo depois passado a desenvolver o trabalho com Umberto Cerroni), oferece-nos uma excepcional obra, não só pelo valor testemunhal das cartas, dos personagens envolvidos e do contexto em que ocorrem, mas também pelas riquíssimas notas explicativas de Gerratana, que as acompanham.

2.

O livro voltou a impressionar-me porque, apesar de conhecer muito bem toda a história de Gramsci (aconselho, a propósito, a leitura do belíssimo livro de Giuseppe Fiori “Vita di Antonio Gramsci. Roma-Bari, Laterza, 1977), me lembrou, de novo, a lenta e trágica degradação física de Gramsci nas prisões de Mussolini (1926-1937) – Regina Coeli, em Roma, San Vittore, em Milão,  Turi, na Puglia, Civittavecchia, até morrer na clínica privada de Quisisana, em Roma, depois de ter passado um curto período numa clínica de Formia, Latina. E tocou-me particularmente por poder acompanhar a abnegada dedicação de Sraffa e de Tatiana ao longo do penoso processo da prisão de Gramsci. Três personalidades de raras qualidades humanas, de coragem, sensibilidade e inteligência, apesar do lamento, sentido e de profundo pesar, de Tatiana: “abbiamo fatto tanto e non siamo riusciti a fare nulla” (1991: 184).

3.

Um inacreditável artigo do Jornal “Il Messaggero”, de Roma, de 12 de Maio de 1937, “Una sparizione e uma morte” (procurando comparar a morte de Gramsci com o desaparecimento de uma cidadã italiana na União Soviética), quinze dias depois da morte de Gramsci, diz o seguinte sobre ele:

“… o chefe intelectual dos bolcheviques de Itália (…) refugiou-se em Moscovo, de onde saiu oportunamente devido à sua fidelidade a Trotsky. E regressou a Itália, onde pôde acabar os seus dias numa solarenga (soleggiata) clínica de Roma (…) De qualquer modo, na Rússia os adversários desaparecem (e Deus sabe como), enquanto em Itália os mais loucos, fanáticos comunistas (e Gramsci, nisso, não ficava atrás de ninguém) encontram aquela paz que alhures é negada até ao limite da própria morte” (Gerratana, 1991: 265, n. 2).

Esta transcrição aparece quase no fim do livro e é chocante (embora não surpreenda) para quem leu o que estava escrito antes, ou seja, o processo de degradação da saúde de um génio nas implacáveis e desumanas prisões de Mussolini. Um político que era líder de um partido com representação parlamentar, membro do executivo do Komintern, deputado, eleito em 1924, tendo regressado da URSS (e da Áustria, Viena), onde vivera entre 1922 e 1924. Mas quem quiser saber melhor do que falo, e da inconsistência do que diz o articulista acerca da “paz” que se vivia em Itália nessa altura (para não falar das outras mentiras do artigo), pode consultar os dois artigos que aqui publiquei sobre Mussolini e como neles é referido o que é descrito por Antonio Scurati, ao longo de 1924 páginas, nos três volumes sobre o Duce (M. Il figlio de Secolo; M. L’Uomo della Provvidenza; e M. Gli Ultimi Giorni dell’Europa), em particular sobre a violência em que se baseou a formação e a consolidação  desse “solarengo” e resplandecente regime fascista (https://joaodealmeidasantos.com/2021/10/25/artigo-52/; mas sobretudo, porque analisa os três volumes, https://joaodealmeidasantos.com/2023/07/03/artigo-109/).

4.

Este livro mostra de forma comovente a relação entre estas três personagens: Piero Sraffa, o grande economista italiano, professor no Trinity College  de Cambridge, amigo e parceiro intelectual de Keynes, Wittgenstein e Blackett; Tatiana Schucht, irmã mais velha da mulher de Gramsci, Júlia Schucht; e António Gramsci, na condição de prisioneiro político do regime fascista. Foram Sraffa e Tatiana Schucht os grandes apoios materiais, morais e intelectuais de Gramsci desde que entrou na prisão, em Novembro de 1926, até 1937, ano em que viria a falecer. Tatiana era o seu grande, enorme, suporte e funcionava também como mediadora das relações entre os dois amigos. Foi ela que salvou os Quaderni del Carcere. Estas cartas publicadas neste livro dão bem conta da dimensão da amizade dos três e permitem ter uma visão muito clara da lenta evolução da situação de Gramsci, mas permitem também conhecer a solidez moral do político e intelectual sardo. E confesso que da sua leitura (neste caso, releitura) sai reforçada a imagem com que fiquei de Tatiana depois da leitura das Cartas do Cárcere – uma dedicação sem limites. Há uma sua carta, de 1 de Julho de 1937, a Sraffa (Sraffa, 1991: 184-185, em nota) que é um autêntico poema dramático escrito e sofrido depois da morte de António Gramsci. Dor, angústia, desespero infinitamente mais intenso quando pensa nele, “em tudo o que ele perdeu (…), irremediavelmente perdido, pobrezinho, sempre paciente até ao inverosímil, extremamente simples, afectuoso, atencioso como ninguém, como ninguém sensível a qualquer manifestação de afecto, de devoção. Creio que haja bem poucos que, como ele, saibam ser assim tão profundamente reconhecidos e gratos, sem limites, por cada atenção que lhes dispensem, como sempre se mostrou, até ao fim, aquele ser tão nobre, tão excelso, cuja vida e trabalho tinham um valor inestimável”. Há nestas palavras uma profunda estima, um amor e um enorme reconhecimento pela figura daquele homem excepcional. Alguém que resistiu, que manteve uma frieza de razão às vezes inacreditável, dada a sua situação, um sentido de responsabilidade admirável e uma profunda e sincera humildade em relação a todos os que se encontravam na sua situação. Que resistiu, sim, enquanto pôde, conjugando a resistência com um gigantesco trabalho intelectual que chegou até nós como Quaderni del Carcere, uma obra monumental em fragmentos que se viria juntar aos brilhantes escritos anteriores à sua prisão, último dos quais o que aborda a relação dos intelectuais com o Mezzogiorno, de 1926 (Alcuni Temi della Quistione Meridionale).

5.

Não foi longo este tempo de escrita porque já em 1932 os problemas de saúde se avolumavam de tal modo que o impediam de trabalhar ou sequer de estar tranquilamente em paz. É esta lenta progressão para o abismo, testemunhada por estes dois amigos incansáveis, que a tentavam travar de todos os modos possíveis, que este livro documenta e que nos leva a abominar ainda mais um regime que o foi anulando lentamente até à morte, prematuramente anunciada. Um regime que tinha na sua sua matriz a violência. O veredicto do procurador Michele Isgró teria de se cumprir: “devemos impedir este cérebro de funcionar durante vinte anos!”. Prenderam-no e mantiveram as condições que o haveriam de levar à morte, mas não conseguiram anular o seu pensamento, paralisar o seu cérebro, impedir a sua obra, que hoje continua a ser uma das mais influentes obras da esquerda de inspiração marxista. Gramsci tinha bem consciência de que o que estava a fazer (sobretudo entre 1929 e 1933) era fuer ewig, para sempre, para além da conjuntura política. Preso, mas livre naquilo que ele mais valorizava na sua vida: o pensamento virado para a acção e para o futuro. E assim foi e assim é. Até a direita, aquela que ele combatia com tenacidade e inteligência acabou por valorizar a sua obra, em particular a sua teoria da hegemonia. Sobre isso escrevi no capítulo publicado em 2006 na obra já referenciada (“Hegemonia: o primado do consenso na teoria política de Gramsci”; in Neves, 2006: 79-107). Uma teoria que liga a política à história, com profundidade temporal, valorizando a adesão consciente da cidadania a uma determinada concepção do mundo que lhe é proposta, mas que está radicada na melhor tradição nacional: nacional-popular. Infelizmente, a esquerda moderada deixou-se enredar em fórmulas ideológicas sem pregnância histórica (e até contrárias à melhor inspiração iluminista) e num pragmatismo descarnado historicamente em vez de valorizar a política com dimensão ético-cultural, enraizada em “blocos históricos”, socialmente consistentes, com horizonte ideal estruturado e capazes de se sedimentar historicamente, trazendo substância à política e novos horizontes à cidadania.

6.

Houve quem achasse que a relação de Gramsci com o grande economista Piero Sraffa era uma relação de simples, embora forte, amizade, mais significativa do que a relação intelectual.  Por exemplo, Perry Anderson. Mas não é verdade, como, de resto, o reconhece (e prova) Valentino Gerratana e como se vê pela correspondência trocada, através de Tatiana Schucht (para uma crítica das posições de Anderson sobre Gramsci veja o meu O Princípio da Hegemonia em Gramsci,  Lisboa, Vega, 1986, pp. 117-129). Para começar, ambos se inscreviam, de forma assumida, na mundividência comunista, embora um valorizasse mais a intervenção orgânica (designadamente do partido) do que o outro, que era um comunista independente. Independente, sim, mas colaborador com o partido, designadamente com o seu centro político localizado em Paris. Há neste livro duas cartas de Sraffa a Togliatti. Depois, sendo naturalmente Sraffa um economista puro e analítico (embora de vasta formação cultural), diferenciava-se do posicionamento intelectual de Gramsci, que exprimia um pensamento de natureza mais ampla e abrangente, mas também socialmente mais concreto, prático e pragmático nas suas análises. É conhecido o diálogo entre ambos sobre a estratégia política a seguir durante a vigência do fascismo. E, todavia, a formação económica de Gramsci era regularmente alimentada por Sraffa, designadamente por via bibliográfica, mas também por troca de opiniões directa. Sim, é verdade, mas, nestas cartas, o que, além disto, sobressai é a dimensão humana de Sraffa e a sua inabalável amizade, consideração e respeito por Gramsci, uma relação que era acarinhada e alimentada por uma mulher incansável e extraordinária, mesmo quando, pela delicadeza, exigência e complexidade da situação, às vezes surgiam discordâncias, formuladas até com alguma dureza, mas rapidamente superadas pela grandeza de alma de ambos e pela comum dedicação a Gramsci.

7.

A vontade de escrever sobre este livro veio-me, mais uma vez, naturalmente, da relação de proximidade que continuo a manter com o pensamento de Gramsci, mas também da minha profunda admiração por este exemplo de solidariedade incondicional e abnegada, em situação altamente perigosa, difícil e delicada, por parte de Sraffa e de Tatiana para com esse génio da política e do pensamento que tive oportunidade de estudar aprofundadamente durante anos e que continua a constituir para mim uma fonte inesgotável e permanente de ensinamentos sobre as matérias acerca das quais ele se debruçou. E não só as que são objecto de reflexão nos “Quaderni” (tenho a edição original, mas deverei adquirir uma nova pelo desgaste que esta edição sofreu ao longo do tempo, devido às permanentes consultas), mas também os inúmeros escritos que integram toda a sua obra, desde os escritos de juventude. Posso, para terminar, dar como exemplo os seus inovadores e precursores escritos de juventude sobre Luigi Pirandello, que, de resto, tive ocasião de expor no capítulo sobre “O Teatro de Luigi Pirandello, segundo Gramsci” no livro já referido: Da Gaveta para Fora. Ensaios sobre Marxistas (Org. de José Neves, Porto, Afrontamento, 2006, pp. 109-117). Mas poderia enumerar tantos outros se não se desse o caso de sobre eles já ter abundantemente escrito e publicado. JAS@10-2024

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