Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (III)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

EvocaçãodeumaMagnólia

JAS 2021

I.

Pergunto: não é o sonho que comanda a vida, como dizia o poeta? Que seria de nós se não pudéssemos sonhar? “La vida es sueño” e o sonho vida é, dizia, e bem, o Calderón de la Barca. E o poeta não é o grande intérprete, como se fosse o seu pianista, dos sonhos, bem mais eficaz do que o psicanalista? Ele interpreta e “toca” habilmente os sonhos, dando-lhes harmonia e beleza. A sua música seduz e faz vibrar a sensibilidade dos que a escutam, dando vida ao que sente. Se o segundo azevinho que tenho lá no meu jardim também não quiser, como o outro, dar bagas, recrio um novo com bagas ainda mais vermelhinhas. Sonho com bagas? Dou-lhes vida, com palavras, riscos e cores e partilho-as nos meus rituais. Assim pode ser com o amor.

II.

Na poesia o movimento é, primeiro, de fora para dentro e, depois, de dentro para fora. Começa sempre por ser sensorial, mesmo quando o estímulo já está localizado na zona quente da memória afectiva. Deste duplo movimento resulta o poema. Lá mais profundamente fervilham pulsões que só podem ser controladas e revividas através da sua conversão poética. Da sua verbalização poética, que é também musical. Elas, na origem, são accionadas por estímulos sensoriais. É assim que nasce a poesia. Arte que, pela sua performatividade, tem um elevadíssimo poder terapêutico. Em particular, sobre essa particular “maladie de l’âme” que tanto inspira e excita os poetas. Remédio da alma.

III.

Os poemas que parecem mais fáceis muitas vezes são os mais difíceis de compor. É verdade. A chegada auspiciosa da inspiração ajuda o poeta a não mais tropeçar. Ajuda, mas não resolve. Ou então a tropeçar com tal elegância que mais parece dança coreografada.

IV.

Às vezes parece mesmo que temos mais saudades do que não aconteceu do que do que aconteceu. Às vezes… ou sempre? Eu penso que, pelo menos, são mais intensas e até mais desafiadoras. Não houve? Não aconteceu e eu ainda sofro por não ter acontecido? Ah, sim? Então vou-me servir do poder performativo da poesia e vou fazer acontecer o que não aconteceu. Mãos à obra e, no fim, a obra nasce. “Às vezes” (título de um poema meu). E o poeta fica feliz e (quase) realizado. Não beijou? Envia beijos escritos à musa, na esperança de que os fantasmas não os bebam. Sim, porque há sempre fantasmas por aí. Não a vê? Canta-a. É isso: vê-a em palavras e impressa em pauta musical et plus belle qu’elle-même. Milagres da arte e da sensibilidade. De que pode, pois, queixar-se o poeta? Só se for de insuficiência da fantasia e da intensidade da pulsão… Ah, mas se fosse disso talvez não houvesse pressão suficiente para poetar. Porque não haveria dor que doesse. Poetou e pintou? Houve inspiração e tensão pulsional. Pelo menos, o suficiente para lhe baixar a tensão emocional para níveis suportáveis, pelo menos, que não provoquem danos, enfartes ou colapsos sentimentais.

V.

Fazer da fraqueza força. Pode-se dizer isso do poeta: reconhece as suas limitações na lide com o real. Tem saudades dos seus irrealizados sonhos, mas não baixa os braços. Pelo contrário. Com as palavras de que dispõe, levanta-os bem alto a ponto de poder convocar outros para o ritual de celebração da “vitória” da fantasia sobre o real, mobilizando a comunidade poética. Vitória? Não, propriamente. Porque a arte não é desforra, mas enaltecimento da realidade falhada, humana e desejada. Recriação com maior peso estético e até densidade existencial. Milagre? Quem se pode queixar deste milagre? Só quem não o compreende. Só quem não consegue aceder-lhe. De certo modo, estamos num território de “iniciados”. A identidade do poeta é a de um ser imperfeito e, por isso, muito humano, demasiado humano. Alguém que teve necessidade de se iniciar no processo de acesso ao mistério da vida, tantos foram os seus fracassos, as suas derrotas, as suas perdas e os silêncios que se lhes seguiram. A iniciação poética… que não é menos do que as outras. Ou talvez seja mesmo uma iniciação maior, superior. Sem arte, morre-se de realidade, sem dúvida, como dizia um Amigo meu. Sem arte a vida seria um aborrecimento insuportável. Viveríamos de alma perdida ou nunca encontrada. Numa vertigem de fugas para a frente, mas sem saber para onde. Uma correria sem sentido. E circular, porque nunca se sairia do mesmo sítio. Ou talvez a realidade morresse de si própria, por depressão, por incapacidade de se superar e de se dizer. Talvez seja isso. Não sei, instalado, como estou, na poesia. Mas talvez a resposta só possa ser dada num poema. E seria resposta cifrada e incompleta.

VI.

Depois das Bagas de um Azevinho, o acre aroma de um jasmim. Resultado da permanente transumância poética. Parte do azevinho e vai até ao jasmim. Tão perto e tão longe. Tão longe e tão perto. O perfume – que se desloca com grande velocidade – embriaga os sentidos e funciona como propulsor da fantasia poética para descolar do jardim rumo ao cume da montanha. O necessário para que o poema nasça… já em voo. A simplicidade, meta difícil, somente atingida em velocidade de cruzeiro, não está ali ao nosso alcance, logo no começo da viagem. É preciso viajar muito para a alcançar. O jasmim, se o tivermos, ajuda, mas também é necessário ir lá ao fundo da memória para resgatar o que por lá foi ficando, inacabado, e que, afinal, merece ser trazido à consciência e cantado. É o perfume do jasmim o combustível necessário para a viagem. Mas também é preciso olhar para a vida como um jardim (e não tanto como um inferno) onde há jasmins e loureiros, beleza a rodos, onde há cores e aromas com os quais nos podemos alimentar. Mundo estranho aos que sempre estão sempre zangados com a vida. Mas, mesmo para estes, há um remédio eficaz: a arte. Se forem seduzidos. Sobretudo com a beleza da simplicidade de um discurso poético.

 VII.

A poesia é intensamente metafórica, move-se entre o dito e o não dito, é linguagem cifrada, mas fala da intimidade com a linguagem velada de quem tem que dizer, mas também de quem tem de calar, de ocultar, de silenciar. Alude, mas não cartografa, deixando a quem a visita a tarefa de interpretar e de se orientar no caminho a percorrer. Ela é mais do que um espelho, do que tradução do que vai na alma do poeta. Porque a alma poética aspira a ser universal, na intimidade, no desejo que a mobiliza. É ambiciosa, a alma poética. Só com a ambição se cura. Ela é estimulada sensorialmente, sim, mas depois eleva-se sobre a contingência do sensível. A poesia também está lá para devolver, como espelho, sentimentos do outro, que não somente os do poeta. Nos seus, ele também encontra os dos outros e só por isso consegue que eles lhe prestem atenção, como se fossem seus. A poesia é um espelho com duas faces.

VIII.

Há na poesia um certo hermetismo e uma vocação alquímica, com o poeta a ir ao centro da alma naquilo que ela tem de mais precioso e comum, daquilo que lhe permite a partilha, o intercâmbio. Processo aurífero. A poesia como o equivalente geral dos sentimentos. Por isso vai ao essencial, libertando-se do acessório. Inclusivamente do que é só seu. É claro que o jasmim, o perfume, o loureiro são metáforas de algo que é mais humano e a subida às alturas, depois de uma profunda embriaguez de perfume, só pode ser figurada com a centralidade do amor. Até do amor físico. Libações inspiradas em Dionísio. No jardim há arbustos que são musas, distantes fisicamente, mas íntimas espiritualmente. Poderosas. São elas a propulsão que permite o voo poético porque no processo de transfiguração disfarçam-se sob forma de perfume. No jasmim, há sempre musas por entre a sua densa folhagem verde. Pois há. E é por isso que o jardim representa a múltipla dimensão sensorial que estimula e anima o poeta, tornando viva a poesia. Se depois for possível, num gesto sinestésico, dar cor e perfume ao poema, através da pintura, a sensibilidade agitar-se-á mais intensamente e, então, entrarão em cena todos os sentidos, provocando uma girândola de sentimentos. Uma autêntica festa com palavras estrepitando no céu da fantasia. JAS@10-2024

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