O QUE PARECE É?
A Política e os Apóstolos do Humanismo Socialista
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2024
LI, COM ESTUPEFACÇÃO, um artigo de António Costa, Pedro Silva Pereira e José Leitão, no “Público” (de 6 de Novembro), “Em defesa da honra do PS”, partido supostamente desonrado pelo recentemente eleito Presidente da Federação Distrital de Lisboa do PS (cargo do qual, entretanto, se demitiu) e Presidente da Câmara Municipal de Loures, Ricardo Leão. Em causa uma Recomendação, proposta pelo Vereador do CHEGA (e as duras palavras de Leão), para alteração do Regulamento Municipal de Habitação que permite resolver o contrato de arrendamento dos que (sejam eles quem forem), dispondo de habitação municipal, sejam condenados, nos termos da lei, por infracção grave à ordem pública, à segurança e às regras da boa convivência. António Costa não desiste de subir permanentemente ao palco da política nacional, apesar de já designado Presidente do Conselho Europeu e de não desempenhar funções políticas institucionais, nem no PS nem no Estado, vindo agora lembrar a Ricardo Leão o longo património humanista do PS, como se este, militante e presidente da maior federação do PS, o desconhecesse e a transformar este seu camarada no grande polarizador da atenção social, depois da morte de Odair, causada por um jovem polícia, e dos graves tumultos que se lhe seguiram em toda a Área Metropolitana de Lisboa. A coisa não é de somenos, pela gravidade dos factos, mas também porque o artigo acaba por atingir o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, e o próprio PS que dizem defender.
1.
Aconteceram, de facto, coisas muito graves que polarizaram a atenção social e mediática: morte e destruição. Algo que, felizmente, não é habitual entre nós. Eu teria gostado de ver neste artigo da honra ferida também uma palavra sobre as forças de segurança, sobre a morte do cidadão e sobre a fúria destruidora que assolou a área Metropolitana de Lisboa, designadamente no Município de Loures. Mas nada. O artigo é uma proclamação das políticas humanistas do PS sobre migrações e integração e sobre o Estado de direito. Como se não soubéssemos qual é a identidade do PS, que ninguém põe em causa, sequer os seus adversários. Mas ele é sobretudo um ataque violento a uma decisão da Câmara de Loures, aprovada pelo PS, pelo PSD e pelo CHEGA, com a única oposição do campeão dos direitos, liberdades e garantias, o PCP, relativamente a um Regulamento sobre habitação nas casas de propriedade da Câmara, visando pessoas condenadas por graves distúrbios cometidos naquele território.
2.
Fui ler a Recomendação em causa, tão vituperada neste estranhíssimo artigo. Fossem os três subscritores responsáveis autárquicos em Loures e, paladinos do humanismo socialista, teriam votado ao lado do PCP contra essa horda de anti-humanistas e racistas que ousaram aprovar a iníqua Recomendação. Vejamos, pois, o que ela diz (publico-a na íntegra no final deste artigo): no essencial, o proprietário (o Município de Loures), ao fazer uma alteração ao Regulamento Municipal de Habitação que visa regular a possibilidade de despejo dos arrendatários que comprovadamente sejam promotores de violência e destruição no território concelhio, comprometendo a segurança, “a convivência pacífica e a qualidade de vida das comunidades”, visa, no essencial, e respeitando a lei, contribuir para a prevenção de futuros comportamentos violentos no território concelhio por parte de quem usufrua de habitação municipal. Isto como resposta (preventiva) ao que recentemente aconteceu em toda a área metropolitana de Lisboa, mas, como é óbvio, somente aplicável no futuro, a partir do momento em que seja aprovada a alteração ao Regulamento. Uma norma aplicável quer a imigrantes quer a nacionais. É claro que a introdução de uma alteração deste tipo só é aplicável no futuro, em homenagem à não retroactividade da lei, sendo, por isso, a sua aplicabilidade essencialmente um factor de prevenção, uma forma de dissuasão de futuros comportamentos violentos e destruidores. De resto, o regulamento em vigor é um regulamento aberto e sem cláusulas discriminatórias de qualquer tipo. Por outro lado, também é verdade que o Código Civil dispõe no seu artigo 1083, n.º 2, alínea a ) que “a violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento de condóminos” (ao qual é aplicável este Regulamento Municipal, enquanto o proprietário é o Município) pode constituir fundamento para a resolução do contrato. Tendo lido a recomendação, eu próprio não hesitaria em subscrevê-la, ainda que soubesse que iria ser severamente verberado pelos apóstolos do humanismo deste partido, que é também o meu. A estes eu responderia que sei interpretar textos e que uma mensagem não pode ser interpretada a partir da qualidade daquele que a enuncia (neste caso, o vereador do CHEGA), mas sim pelo que ela é e significa efectivamente. Mas o que parece é que é isto mesmo que se verifica quer no artigo (na parte final) quer no imenso arraial, ou mesmo lamaçal, montado sobre uma Recomendação que provavelmente muitos dos seus críticos nem sequer leram. A cartilha politicamente correcta, ainda que sob forma de um proclamado humanismo socialista, vale sempre muito mais e é com ela que devemos interpretar a realidade. Assim seja.
3.
Do que se trata, efectivamente, é de matéria diferente da do processo penal, aplicável noutra sede, não constituindo, por isso, qualquer tipo de pena acessória. Até porque o arrendatário terá, doravante, conhecimento das condições em que poderá ver o seu contrato resolvido pelo Município. Por outro lado, o argumento de que a medida atinge inaceitavelmente a família do arrendatário, não culpada, ele é simplesmente absurdo. Imagine-se que um qualquer arrendatário, a viver com a respectiva família numa habitação, deixa pura e simplesmente de pagar a renda – o que acontece é que ele terá de deixar livre a casa por incumprimento dos termos do contrato. Mas se o argumento da família fosse legítimo e legal o que aconteceria é que passaríamos a viver num país onde, ao abrigo do princípio moral de protecção da família, quase ninguém poderia ser desalojado de uma habitação, ainda que não cumprisse os termos do contrato de forma reiterada. De norte a sul do país era o que aconteceria. E muito especialmente em habitações de propriedade pública. Se a moda pegasse o já grave problema do arrendamento ficaria muito pior porque não haveria quem se dispusesse a pôr no mercado casas para arrendar. Bom, o Estado-Caritas de António Costa sempre podia construir casas para oferecer à cidadania, matando o problema logo na raiz.
4.
O tão invocado argumento da pena acessória é, pois, pura e simplesmente instrumental, errado e pouco convincente porque o direito a pôr termo ao contrato está previsto na lei e está abrangido por um ramo do direito diferente, o direito civil, aplicável subsidiariamente, no caso dos municípios, por via da remissão do direito administrativo, no âmbito do qual são resolvidos os contratos, e não o penal, aplicável aos desacatos públicos. O mesmo acontece, como já disse, para quem deixar de pagar a renda. Esta acção é, pois, completamente independente do julgamento por actos de vandalismo em geral e está prevista nos contratos. É uma acção totalmente autónoma, que nada tem a ver com o processo judicial instaurado por desacatos públicos. E a conclusão subsequente, de que, assim, a família também é atingida, e não só o titular do arrendamento, infelizmente é correcta, porque será isso que acontecerá. Mas isso é o que também acontece em qualquer parte do território nacional quando um arrendatário, por exemplo, deixa de pagar a renda e tem de libertar o imóvel. Também aqui, infelizmente, a família será atingida. Mas nada há a fazer, caso contrário, um dia destes, nenhum arrendatário pagará a renda sem que possa ser despejado… porque vive lá com a família. Uma bela maneira de resolver a falta de habitação para arrendamento em nome do humanismo. Quem o faria nestas condições?
5.
Estes três socialistas, com este artigo, estão a cavalgar deliberadamente a onda avassaladora do politicamente correcto e do wokismo, cujos estragos acabam de ser bem visíveis nos Estados Unidos, ao vermos eleito o mais anti-wokista que é possível imaginar. Mas, sobretudo, parece que estão a combater mais o PS, este PS, do que a defender o seu humanismo; que estão a alinhar numa onda, recentemente interpretada por Vieira da Silva e por quantos apontaram o dedo em riste ao SG do PS a propósito das suas declarações em torno do orçamento; que se está a formar uma corrente para lançar uma alternativa à liderança de Pedro Nuno Santos, apeando-o da liderança. Isto para não falar da preciosa ajuda (talvez seja isso) que estão a dar ao seu próprio partido para as próximas eleições autárquicas de Loures. Mas verdadeiramente não sei se têm algum candidato alternativo que queira deslocar-se de Ferrari para a Presidência da Câmara insatisfeitos com o burro em que, nas próximas eleições, certamente se deslocará o candidato Ricardo Leão, depois de se ter demitido da distrital de Lisboa, para, mais uma vez, e ao contrário de Costa, ganhar a Câmara de Loures para o PS.
6.
António Costa faria melhor se se concentrasse nos dossiers da União Europeia e se tudo fizesse para ver esclarecida a sua situação no famoso inquérito em que continua envolvido. Até pela delicadeza da situação, inclusive no plano ético. O anúncio público do inquérito levou-o a entregar de imediato a maioria absoluta do PS nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa (e talvez a decisão tenha sido errada), mas já não fez o mesmo ao não entregar o convite para Presidente do Conselho Europeu nas mãos da senhora Ursula von der Leyen, apesar de se manter sob suspeita judicial (e também talvez a decisão tenha sido, de novo, errada). A verdade é que se trata de uma questão com relevo nacional e internacional e, ao contrário do que diz o novo Procurador-Geral, os responsáveis pela justiça têm o dever de se pronunciar rápida e definitivamente sobre o assunto, vista a relevância do cargo para que António Costa foi designado. Mas não, logo aceitou rapidamente o cargo ainda que o mesmo inquérito se mantivesse plenamente activo (como está). A ética que o moveu em Portugal para abandonar o cargo de PM deveria tê-lo movido também no caso da União Europeia. A ética do PS, que deve ser só uma, seria, assim, melhor defendida se António Costa não revelasse ter duas, de acordo com as suas conveniências pessoais: uma aqui e outra na Europa.
7.
Esta sua intervenção é verdadeiramente infeliz a todos os títulos pois constitui um grave ataque ao seu partido de sempre e uma bênção a um governo em graves dificuldades perante o que aconteceu na Área Metropolitana de Lisboa e, agora, ao que parece, com o socorro de emergência do SNS. Não me admiraria que, feitas bem as contas, no fim, o culpado disto tudo ainda acabe por vir a ser o Presidente da Câmara da Loures, Ricardo Leão. Luís Montenegro deverá estar radiante com esta generosa dádiva de António Costa. E, mais uma vez, Pedro Nuno Santos se sentirá visado com esta infeliz e inoportuna intervenção do antigo líder. E, com ele, o PS.
8.
Têm sido cometido erros, certamente, mas, quanto a mim, o maior deles foi o de António Costa ao entregar inopinadamente a maioria absoluta do PS nas mãos de MRS para que, assim, se abrisse, e sem obstáculos simbólicos, e até na condição de vítima inocente, uma clareira para a sua caminhada rumo a Bruxelas. Agora acrescentou-lhe mais este. Como disse, e bem, Duarte Cordeiro: tratou-se de um acto arrogante e desnecessário.
9.
Depois, eu, que sou militrante do PS há várias décadas, confesso que não me revejo minimamente na defesa da minha honra política por esse arauto do socialismo mundial chamado Silva Pereira, porque de nada me lembro que possa fazer dele um autorizado apóstolo de uma qualquer fé socialista, a não ser da sua.
10.
Não sei, mas esta iniciativa mais me parece um teste à liderança de PNS e à consistência dos seus apoios no interior do próprio partido e até da sua própria maioria. Se pensarmos no modo como, ainda recentemente, certos socialistas encartados se referiram à sua liderança a propósito da questão do orçamento não parece ser desadequada esta leitura, reforçada agora pelas divisões internas que o assunto já está a provocar, inclusivamente na área da própria maioria do secretário-geral, onde infelizmente pululam muitos defensores acirrados do politicamente correcto, do wokismo e da ideologia de género. E esta é uma matéria que deveria merecer a mais atenta das reflexões. No que me toca, a ela me dedico detalhada e criticamente na obra que apresentarei no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, no dia 27 de Novembro, pelas 18.00 (em particular na parte IV): “Política e Ideologia na Era do Algoritmo” (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s). Se se quiser assim entender, este meu livro poderá ser considerado como um humilde contributo para os novos Estados Gerais do PS.
NOTA
O texto integral da Recomendação, proposta pelo CHEGA, aprovada em sessão de Câmara com os votos favoráveis do PS, do PSD e do CHEGA e com o voto contra do PCP. Texto:
76.ª Reunião Ordinária 30/10/2024 N° 696/2024 Recomendação
Alteração do Regulamento Municipal de Habitação.
“Nos últimos dias, temos assistido a um aumento preocupante de atos de vandalismo e desacatos em diversos bairros municipais de Loures e não só, perpetrados alegadamente por indivíduos que habitam estas áreas. Os distúrbios em vários concelhos da Área Metropolitana de Lisboa acontecem após a morte de um homem baleado pela PSP, no bairro do Zambujal, no concelho da Amadora. Segundo a PSP, o homem pôs-se “em fuga” de automóvel depois de ver uma viatura policial e “entrou em despiste” na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, terá resistido à detenção. É imperativo que a gestão da habitação municipal leve em consideração a responsabilidade cívica dos inquilinos. A manutenção da ordem e da tranquilidade nas nossas comunidades deve ser uma prioridade. Esses comportamentos não apenas comprometem a segurança dos moradores, mas também prejudicam a convivência pacífica e a qualidade de vida nas comunidades. Na madrugada da passada quinta-feira, dia 24 de outubro, um autocarro foi incendiado em Santo António dos Cavaleiros, após o arremesso de diversos cocktails molotov, tendo o motorista da Caris Metropolitana sofrido ferimentos graves no tórax eno rosto, e está agora na unidade de queimados do Hospital de Santa Maria. Neste episódio para além deste autocarro, foram incendiados mais dois carros. Na noite anterior já tinham sido registados desacatos em várias localidades do concelho;
Considerando que a habitação municipal deve ser um direito acessível a todos, é fundamental garantir que os recursos habitacionais sejam destinados a cidadãos que repeitam as normas sociais e legais. A presença de indivíduos que cometem actos ilícitos pode comprometer a segurança e a qualidade de vida de todos os lourenses. Assim, considera o vereador do partido CHEGA, e como forma de dissuadir a prática de quaisquer tipos de ilícitos, por parte dos arrendatérios das habitações municipais que, ao ser provada a participação e/ou incentivo nestes ilícitos, que seja dada imediata ordem de despejo, recomendando para isso ao executivo municipal que seja feita a segunda alteração ao Regulamento de Habitação do Município de Loures”. JAS@11-2024