Artigo

“POLÍTICA E IDEOLOGIA NA ERA DO ALGORITMO”

UM NOVO LIVRO

(Apresentação no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã,
27 de Novembro, pelas 18:00)

De João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS 2024, inspirado numa imagem do documentário “The Social Dilemma”, da NETFLIX

De hoje a oito dias, 27.11, às 18:00, será apresentado este meu novo livro (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, 262 pág.s) no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, em sessão presidida pelo Senhor Presidente da Câmara, Dr. Vítor Pereira. Apresentarão o livro o Dr. Alberto Costa, ex-Ministro da Justiça e da Administração Interna, e o Dr. José Conde Rodrigues, Presidente do Movimento Europeu (Portugal) e ex-Secretário de Estado da Cultura, da Justiça e da Administração Interna.

1.

É um livro sobre política e ideologia. Por que razão decidi publicá-lo? Porque as profundas mudanças que estão a ocorrer em todos os sectores da sociedade contemporânea não têm conhecido uma correspondente resposta no plano da política, a não ser nos seus aspectos mais instrumentais, ou seja, nas técnicas de captação do consenso, ficando, pois, confinada na mera ideia de poder. Por isso, o que está verdadeiramente a acontecer é uma autêntica regressão da política: a conquista e o uso do poder pelo poder. O assalto à cadeira do poder. O grau zero da política. O triunfo do poder como fim de si próprio. Exemplo? O plutopopulismo declarado e triunfante da dupla Donald Trump/Elon Musk, nos Estados Unidos, que não é um país qualquer.

2.

A ideia de autogoverno dos povos como eixo central dos regimes democráticos está a ser cada vez mais reduzida à de exercício do poder, não pelo povo, mas pelo mais forte, por aquele que dispõe de mais meios instrumentais para obter a delegação do poder. O que está a acontecer é um efectivo embrutecimento da política, onde já nem sequer parece ser necessário fingir. A própria brutalidade compensa porque apela aos sentimentos mais básicos e viscerais do ser humano. A política desligada da ética pública, dos valores sociais, de uma visão estratégica para o desenvolvimento  económico e civilizacional, onde os cidadãos são vistos como mera massa de manobra para fins puramente utilitários de poder e não como fim expresso da própria política. Plutocracia, não democracia. Guerras de conquista territorial na era da globalização. Uso e abuso da mentira e da força como eficazes meios para chegar ao poder. Instrumentalização do medo para fins políticos. Nacionalismo retrógrado sob forma de soberanismo.

3.

O que é muito estranho é que, dispondo, hoje, a cidadania de meios extraordinários para se informar e para condicionar, por essa via, a vida pública, o que, afinal, se está a verificar é que essa possibilidade se está a converter em regressão, dando razão a Giambattista Vico e aos seus “corsi e ricorsi”, com prevalência dos “ricorsi”. Ou seja, todas essas plataformas de comunicação hoje disponíveis parece terem sido convertidas em instrumentos de opressão simbólica, em vez de tecnologias de libertação, como no início eram conhecidas. Ainda está por fazer o estudo da sua utilização na recente campanha presidencial americana, mas já sabemos que a plataforma “X” foi usada despudoradamente pelo seu proprietário ao serviço da campanha de Donald Trump (tem cerca de 100 milhões de utilizadores nos Estados Unidos), sendo duplamente recompensado por isso: pela enorme subida do valor das acções da Tesla e pelo cargo para que irá ser nomeado pelo novo presidente (Departamento de Eficiência Governamental, DOGE). O que aconteceu em 2016 repetiu-se agora, mas em dose reforçada. O novo Steve Bannon, o da Cambridge Analytica, é agora o plutocapitalista Elon Musk e a sua plataforma Twitter/”X”. O poder económico já dispensa mediadores – assume ele próprio directamente o poder. Já tínhamos visto isto em Itália, com Berlusconi (modelo muito apreciado por Trump). Vêmo-lo agora, agora, outra vez, e sem disfarce, nos Estados Unidos.

4.

A verdade é que estamos a assistir a uma segunda fase de evolução das novas tecnologias, com a sua utilização massiva ao serviço de estratégias estranhas ao interesse dos seus utilizadores por parte das respectivas administrações, designadamente naquele processo nevrálgico que legitima o poder nos regimes democráticos: as eleições e os comportamentos eleitorais. O exemplo de “X” basta para ilustrar esta afirmação. E há uma diferença substancial relativamente às plataformas tradicionais (imprensa, radio, televisão): estas são directamente imputáveis pelas acções que praticam; aqui, só as administrações das grandes plataformas podem ser responsabilizadas genericamente pelo seu uso ilegal e ilegítimo, mas somente no plano comercial e concorrencial, não nos processos de condicionamento do comportamento eleitoral (e em tempo útil). A “mass self-communication” permite uma intrusão no comportamento individual de natureza subliminar, sem visibilidade pública e eventual imputabilidade, sendo também certo que os seus accionistas dominantes alinham politicamente muito à direita. Por exemplo, Elon Musk e  Mark Zuckerberg.

5.

E é esta a razão pela qual dedico, no livro, muitas páginas ao chamado “constitucionalismo digital” como modo de superior regulação do comportamento das grandes plataformas digitais. Não me incluo nos apocalípticos, os que vêem nestas plataformas exclusivamente uma nova forma de opressão, de capitalismo ou de imperialismo (a que Shoshana Zuboff, no seu livro A Era do Capitalismo da Vigilância, chama precisamente “Capitalismo da Vigilância”), porque elas vieram dar voz a todos os que não mereciam qualquer atenção por parte do establishment mediático, dos famosos guardiões do espaço público (gatekeepers), quer no plano da informação quer no plano da produção de conteúdos, tendo sido, por isso, conhecidas originariamente como “tecnologias da libertação. Reconheço, todavia, que estamos perante uma realidade altamente sensível e perigosa se as plataformas não estiverem enquadradas por normas rigorosas que delimitem e possam punir a sua acção, em caso de graves desvios, e em especial na área política. É neste sentido que falo em “constitucionalismo digital”. Sabemos que a Cambridge Analytica foi desmantelada, na sequência do escândalo que também viu envolvido o Facebook por ocasião do Brexit e da primeira eleição de Donald Trump. Mas agora também vemos o homem mais rico do mundo e dono do “X” (mas também da Tesla, de SpaceX, de xAI e de Neuralink) pôr ao serviço de Trump, e sem limites na forma como foi usada, a sua rede social. Depois de Steve Bannon, o estratega de 2016, veio Elon Musk, muito mais poderoso e perigoso. O poder do dinheiro e dos meios de condicionamento do comportamento eleitoral e o perfume do poder.

6.

Até agora, e ao que parece cada vez mais, estas plataformas têm sido usadas com mais eficácia pela direita radical (que analiso em três capítulos do livro), não só pela proximidade ideológica dos seus dirigentes, mas também porque as formas de actuação são mais adequadas à linguagem e às suas práticas do que às das formações políticas mais moderadas, designadamente do centro-esquerda. Isto para não falar do desejo de reproduzir o dinheiro e o poder. Algo muito diferente, certamente, mas equivalente ao tabloidismo que tem vindo a colonizar os meios de informação, em especial o audiovisual – o apelo ao negativo como processo mobilizador (de audiências). Um negativo que, no caso das redes sociais, já tem nomes próprios: “fake news” e “pós-verdade”. Disto falo abundantemente no livro, mas falo também, e pela positiva (na III Parte), de um processo em curso que pode ajudar a resolver a velha crise de representação, especialmente porque ele dá voz à cidadania num plano diferente e superior ao que se verifica precisamente no velho tabloidismo mediático. Falo da política deliberativa, que visa uma maior e mais esclarecida intervenção da cidadania nos processos decisionais, logo a começar nos processos eleitorais. Na verdade, já existem poderosas plataformas (ou mesmo partidos-plataforma) cujo objectivo é dar voz organizada à cidadania nos processos públicos, resolvendo o problema da hiperfragmentação e da comercialização da cidadania. Mas muito há a fazer para reorientar a política no perigoso caminho que está a percorrer nos nossos dias.

7.

O que certamente não ajuda a uma evolução em direcção à democracia deliberativa é a nova e avassaladora onda ideológica promovida por aquela que eu designo por “esquerda identitária dos novos direitos” (wokismo, politicamente correcto, revisionismo histórico, etc.) e a que dedico criticamente cerca de 60 páginas (na parte IV do livro). De resto, esta onda ideológica multifacetada e em expansão tem constituído um alimento muito nutritivo e eficaz da direita radical para se afirmar perante uma cidadania que claramente não embarca no radicalismo e nas absurdas reivindicações e princípios desta doutrina identitária. E o que também não ajuda é a tendência do centro-esquerda e do próprio centro-direita a deixarem-se generosamente infiltrar por esta ideologia na ilusão de estarem a colmatar o seu evidente défice ou vazio doutrinário por um enganador progresso civilizacional e por um construtivismo social completamente absurdo. Um exemplo. Um site falso da campanha de Harris, criado e financiado por ordem de Musk, e muito divulgado, procurando enganar o eleitorado democrata e deslocar eleitores para Trump, dava a entender que a campanha democrata estava a promover comportamentos enquadrados nesta ideologia, ou seja a encorajar “a transição sexual nos menores da LGBTQIA”  (veja o artigo do matemático David Chavalarias, do CNRS francês, no Libération, de 18.11, pág. 20). É um mero exemplo, mas muito elucidativo. Esperemos que estudos sejam feitos sobre esta campanha porque o assunto é mesmo muito sério.

8.

A conversa sobre a inteligência artificial está a ocupar muito do debate acerca do futuro das sociedades contemporâneas, estando a ser sublinhada a intervenção dos processos automatizados de decisão, independentes da vontade e do processamento humano. O recente livro de Yuval Harari, Nexus, é disso que fala, alertando para os seus perigos. A distribuição e a reprodução digital alargada dos conteúdos pelos algoritmos segundo lógicas que radicam nos comportamentos dos utilizadores, mas que são finalizadas estrategicamente a critérios de programação predefinidos e orientados a objectivos exógenos à comunicação dos utilizadores é já uma constante que pode ser observada por quem se move na rede. Foi isto que aconteceu com os algoritmos da “X” de Musk nesta campanha. É aqui que, de resto, reside, por um lado, o imenso poder das plataformas e, por outro, a impotência do cidadão-utilizador, dedicando o livro muitas páginas a explicar este processo e as suas consequências, designadamente políticas. E todavia, não se trata, como já disse, de uma visão apocalíptica das redes sociais e das grandes plataformas digitais, como infelizmente – mas com alguma razão, pelo que se está a ver nesta segunda fase da evolução das TIC – parece já ser a tendência dominante no mainstream. No livro, procuro não só mostrar os riscos que ameaçam a democracia, mas também as enormes potencialidades que a rede apresenta para um futuro progressivo e amigo da cidadania e da democracia. Mas, como tudo na vida, isto não acontecerá se não lutarmos por um uso decente e positivo das possibilidades que a rede nos oferece, designadamente na política. JAS@11-2024

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