Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (V)

PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA

Por João de Almeida Santos

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“Transfiguração”, JAS 2024

SONHO COM OLHOS ABERTOS

A poesia é sonho com olhos abertos, com os sentidos em alerta e a fantasia em movimento.

RITUAIS

Os rituais, mesmo os que acontecem no universo digital, têm poder, dão forma, solenidade e regularidade a acontecimentos relevantes. Neste caso, a intensities. O ritual poético dá forma, sentido e solenidade à relação do poeta com a musa e com os amantes da poesia. Uma forma especial de partilha. Nos rituais há evocações, sim, mas também invocações que chamam a musa à presença. E o lugar deputado é um templo porque nele o silêncio, a refracção da luz pelos vitrais e a penumbra dão solenidade ao chamamento poético. Algo de que a poesia sempre precisa para acontecer em plenitude.

POESIA NÃO É MONÓLOGO

Transformar a perda em criação, vestir o passado de palavras e dar voz ao silêncio. É verdade. É esta a missão do poeta. Por imperativo existencial. E se o fizer bem fala de si e de todos. O poeta sente isso como missão. A poesia não é monólogo, ela deve falar por todos e para todos, sem deixar de ser a fala de um poeta singular.

A SINA DO POETA

Sina de poeta. Concordo. Até considero que poeta sem sina não é poeta. Ele é escolhido pelo destino ou pelos deuses. E é daí que lhe advém a responsabilidade e o desejo de universalidade. E a humildade de alguém que foi escolhido, a quem foi concedido um dom e a responsabilidade de o honrar. Mas também a necessidade de, nessa medida, que o ultrapassa, recriar o seu tempo de vida, para além daquele com que o destino o marcou. Para ser um pouco mais livre, porque é no intervalo entre a necessidade e a liberdade que se inscreve o discurso poético.

VER COM A ALMA

A poesia dá conta do que a alma vê. O sublime só pode ser visto e atingido com a alma. Os sentidos não chegam. A técnica também não, mesmo quando é virtuosa. É por isso que a sinestesia ajuda a ver melhor.

ASSALTO PULSIONAL

Que seria dos poetas sem as musas? Elas inspiram, provocam, muitas vezes com silêncio teimosamente reiterado e como castigo, e agitam-se nas profundezas da memória afectiva. Tudo isto se converte em imperativo existencial a exigir resposta. E o pobre poeta tem mesmo de obedecer. Mas, no fim, acaba por ficar feliz, porque deu forma a este assalto pulsional que o fez (o faz sempre) estremecer e o pôs (põe sempre) em sobressalto. A pintura ajuda a pacificar porque nela intervém o olhar. É a versão sensorial do que ocorre na alma, lá mais profundamente, daquilo de que a poesia dá conta. Na pintura “Perfil de Musa” o perfil sereno, mas severo, da musa, o negro dos seus cabelos e o vermelho dos lábios fazem a ponte para o poema (“Confissão”).

NEBLINA

O pintor-poeta sentiu alguma dificuldade na execução de um certo retrato (e foi por isso que teve de estilizar o rosto com um perfil, “Perfil de Musa”, deixando apenas algumas marcas, acenadas no poema) porque a nitidez da memória visual  (do referente, que às vezes existe) com o tempo diminuíra. Interpusera-se uma leve neblina que não deixava ver o rosto com essa desejada nitidez, apesar de a visão interior, a da alma, se manter fresca e, com essa, sim, poder desenhar-lhe poeticamente o rosto, à perfeição. Claro, a perfeição seria a da poesia e os riscos seriam as palavras. A estilização plástica seria quase obrigatória, mas somente com algumas marcas identificáveis no poema.

RESISTÊNCIA

A poesia está protegida pela blindagem do sentimento, que se conserva dentro, na alma, e não sofre a mesma erosão que afecta os sentidos físicos. A resistência dos sentimentos (a força das pulsões) é tão forte que até exige fugas para não provocar danos (como as panelas de pressão). Aqui entra a verbalização poética, com toda a sua riqueza plástica e musical, dando asas ao sentimento, pondo o poeta em levitação e libertando-o dessa poderosa pulsão que tende a oprimir se não for libertada – a tristeza que se converte em doce melancolia.

RELAÇÃO ESPECULAR

O que fica do que aconteceu ou do que não aconteceu é o que ele significou. O que foi até pode ter sido pobre ou mesmo pura ilusão. A relação amorosa ser, por exemplo, unilateral, ou seja, não ter sido verdadeiramente uma relação, por falta de correspondência. As saudades do que não aconteceu são mais fortes do que as do que aconteceu, dizia o Pessoa (o Bernardo Soares). Portanto, o que conta é o que significou, o que foi sentido, não o modo como isso aconteceu ou não, ficando como saudade. E não é solipsismo. O Aristófanes (o crítico de Sócrates, por exemplo, nas “Nuvens”) no “Symposion”, de Platão, dizia que o amor é a busca da nossa outra parte de que os deuses, por castigo, nos privaram. Ou seja, no amor sou mais eu do que o outro que amo. Ou, pelo menos, o outro tem de ser como que a outra parte que nos falta, o nosso complemento. Uma relação de tipo especular. No espelho reflecte-se o que, de nós, parece permanecer ainda oculto. O espelho, neste caso, é o outro. E nele vemos o que de nós ainda não encontráramos. Por isso, não se trata propriamente de uma relação. Algo parecido é o que também dizia o Bernardo Soares: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. (…) “em suma, é a nós mesmos – que amamos”. Por outro lado, ou do mesmo lado, é provável a ideia de que a memória visual se esbata no tempo, enquanto a memória afectiva persiste, às vezes até de forma excessiva, a ponto de doer, doer muito, e de representar mais o próprio do que o outro. Os poetas sofrem desta dor, desta “maladie d’amour”. O amor encontra-se no amante, não no ser amado, lê-se também no “Symposion”. Não há simetria perfeita no amor. Depois, se passarmos para o amor cantado em poesia, o crescimento subjectivo do amor (ao nível daquilo que o Kant designava por “universal-subjectivo”, na “Crítica do Juizo”) é sem limites.

O PRESENTE E O PASSADO

O presente como sobrevivência do passado. É verdade, mas o presente é mais do que sobrevivência do passado porque também é antecipação do futuro. O presente é intersecção do futuro com o passado. Mas há passado e passado. Há, sim, o que resiste porque significou muito… e até pelo que não aconteceu e poderia ter acontecido. E quando a poesia o assume ele já é mais futuro do que passado, podendo mesmo identificar-se com a eternidade. A poesia vai lá para o trazer de volta e, dando-lhe forma, colocá-lo no futuro. Aqui está o que eu penso do passado que sobrevive. JAS@12-2024

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