Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VI)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

Noite0905

“S/Título”. JAS 2024

LUZ

UM CERTO POEMA, não importa qual, poderia chamar-se “Sonho”. Chamei-lhe “Luz” porque, afinal, no sonho sempre se acende uma luz (ele acontece sempre no escuro do sono). Ou o sonho é ele próprio essa luz. Talvez. O sonho é uma luz no escuro do sono. Qualquer que ele seja. É uma brecha que se abre. Sonho também está por poesia, que é sonho de olhos abertos, de palavras cifradas e de melodia que embala – uma luz que nos guia no caminho luminoso dos afectos. Da saudade ou da melancolia. Ou do amor. E o jardim é pista de onde o poeta descola em direcção ao paraíso, onde a luz é tão forte que há sempre o risco de encandeamento. E, neste caso, de queda. Os olhos do poeta são faróis cuja luz se reflecte no espelho mágico da poesia e, por reflexo, pode mesmo encandear e provocar uma queda no real. Sim, uma queda no real. Mas a queda acabará sempre por ser no jardim, de onde partiu, onde uma densa nuvem aromática e acre de jasmim atenuará o seu impacto. Das libações se parte, às libações se regressa. Vias oníricas para o desejo. Poéticas, porque a poesia é sonho. Sem remorsos. O poeta sonha e não é culpado disso. Acontece-lhe sonhar. Felizardo, mesmo quando o sonho é parecido com um pesadelo. Parecido, digo, porque o sonho poético acrescenta beleza e leveza ao que pode parecer pesadelo pela intensidade da dor que lhe esteve (está) na origem. O poeta desabafa esteticamente e não lhe pode ser imputada culpa por dizer o que talvez não devesse. Mesmo em forma cifrada.  Acontece-lhe.  E ainda bem, dirão alguns, os que se revêem no espelho mágico da poesia.

MUSA

Também a musa é uma luz que se acende à medida do desejo do poeta. Reacende-se na fantasia. Quando ele a procura porque entra em nostalgia ou em sofrida melancolia. Começa o canto e ela vai-se acendendo lentamente até atingir luminosidade máxima. A musa. No fim do poema. E há um ambiente especial onde tudo acontece mais naturalmente. O do jardim. No Symposion do Platão um dos intervenientes dizia que o Eros, que concede o dom da poesia, só se instala onde houver flores e perfumes. E é para lá que os poetas tendem a ir, porque é lá que acontecem as libações com os perfumes mais intensos, abrindo caminho à inspiração. Faz pensar, a poesia? Sim, mas ela realiza-se melhor se se fizer sentir na alma ou até no corpo.

ZÉFIRO

“Eu acho que Zéfiro passou por ti” – disse eu a um Amigo que comentava um poema meu – “como leve brisa que deu asas ao desejo em forma de poético comentário”. Pelo menos, digo eu, levou-o lá para dentro do poema e pô-lo a navegar nele, como habitualmente lhe acontece. Deixar-se ir ao sabor das ondas e da maresia poética.  Sem Zéfiro não sei se isso poderia acontecer. Claro, as palavras têm vida própria e muitas vezes vão por ali sem pedir licença ao condutor que as pôs a caminho. Mas a verdade é que a via já está traçada e elas bailam nas rectas e nas curvas do caminho ou nas ondas de mar encrespado. Sem se desviarem. Por isso, qual perdão, qual quê! – respondi-lhe. O que, mais uma vez, ele fez foi uma viagem por dentro do poema, só que, desta vez, caminhando, ia, poeticamente, dizendo que não, que não estava a caminhar como gostaria de o fazer, que o Zéfiro propulsor não o impulsionava com suficiente energia. E, assim, caminhando com palavras pelos sendeiros abertos pelo poema, ia timidamente invocando a divindade para que soprasse com um pouco mais de energia. “Mas” – disse-lhe eu – “sabes por que razão ela não o faz? Para te obrigar a caminhar lentamente ao sabor da brisa poética que já te sopra na alma, em partilha com o poeta que te chamou ao habitual ritual”. Cumplicidade benéfica. Só isso. Entre o poema e o comentário sopra a brisa da inspiração, que faz feliz o poeta e, espero, o comentador.

A DIALÉCTICA DO SONHO

Oh, mas essa, a dialéctica do sonho, é própria da poesia – exclamei, quando alguém me falou dela. O poeta, depois de declarar o seu fascínio pela musa, termina dizendo que lhe basta o sonho. Pois. Mas o que ele está a dizer é que ela lhe falta e que só por isso é que a sonha. Se a tivesse não a sonharia? Talvez. Ao dizer que o sonho lhe basta, o que está a dizer é que não lhe basta. E que é por isso que tem de continuar a cantá-la (a sonhá-la) para que ela o ouça. Essa é que é essa. Para que ela o ouça. É para isso que ele canta para o vento que passa. Aqui ele não é como o Pessoa, que só sabe amar em poesia, apesar dos beijos apaixonados que, pelo menos uma vez, deu à Ofélia num vão de escada. A verdade é que o poeta tem sempre uma referência. E, se não a tiver, inventa-a. De carne e osso. Há sempre uma Ofélia, mesmo que não haja um vão de escada. Bem sei que ele, o poeta, compõe a poesia partindo do princípio de que a musa o está a ver e a ouvir. É por isso que a sedução faz parte do seu poetar. E só por isso é que ele pode dizer que cantá-la lhe basta. Pudera! Assim é fácil. Digo eu (mas não é). Porque é uma ficção, por mais poder performativo que tenha. E tem (e atenua a dor). Mas a dor continua lá, obrigando-o a continuar poeta e a compor sem parar.

DESEJO

A linguagem do sonho é a linguagem própria do poeta. Para ele, “la vida es sueño” e “el sueño vida es”. Calderón de la Barca. E o sonho comanda a vida, como dizia o nosso Gedeão na “Pedra Filosofal”. E a vida é um longo desejo que se vai cumprindo à medida da ambição de cada um. Do sonho de cada um. Cumpre-se mesmo quando o desejo não se cumpre. A negação também faz parte da vida. E o modo como se reage a ela, à vida, determina o próprio percurso vital. É nesta encruzilhada que se situa o caminhar do poeta.

ESPELHO MÁGICO

Na verdade, o poema funciona como um espelho onde é possível encontrar os nossos próprios sentimentos. Um espelho mágico. Quanto mais isso acontecer maior valor tem um poema. Por isso, é verdade que o leitor pode sentir o poema de forma diferente da do próprio poeta. Quanto mais a construção de um poema lhe der forma de espelho mais possibilidades há de nele sentir o que vivemos ou sofremos. Um poema tenderá sempre a ir ao fundo do sentimento e assim poder ser sentido a partir de experiências diferentes. Mas terá de funcionar como um espelho que devolve a imagem já transfigurada. Um espelho mágico.

A PORTA

Na verdade, o jardim (o meu jardim) existe, mas o jardim poético, esse, é fruto da fantasia. A porta, essa, a da pintura (“Paraíso”), também existe, como acesso ao jardim encantado, não como acesso directo ao cintilante céu onde a fantasia do poeta navega. É sempre necessário descolar com a fantasia a partir do jardim. Digamos que aqui se aplica a natureza híbrida da poesia (como é a do Eros), entre os homens e os deuses, entre o finito e o infinito, entre o jardim terreno e o Éden. Neste sentido, essa porta é a entrada para este espaço intermédio, para esta pista de descolagem da fantasia.

ROUQUIDÃO DA ALMA

Rouquidão da alma, dizia, de si, uma Amiga que comentava um poema meu. É verdade que podemos ficar roucos, por exemplo, quando usamos em excesso as cordas vocais. Dado físico. E podemos ficar roucos de espírito – não de alma, que é diferente – quando usamos em excesso as cordas mentais? Há simetria? Sim, há, e por isso há que moderar o seu uso? No aspecto físico, temos de falar pouco e baixinho para não agredir as cordas vocais. No caso do espírito, mais do que de rouquidão, talvez se deva dizer cansaço, fadiga, havendo pois que moderar a actividade mental. Mas também há espíritos roucos. A rouquidão da alma é estrutural, embora haja quem nunca esteja rouco de alma, por escassez de sensibilidade. No caso da rouquidão do espírito o que é preciso é verbalizar menos, até porque a rouquidão do espírito torna baça e de difícil compreensão a própria expressão. Os que são roucos de espírito são sempre um pouco confusos, sentimentalmente turvos e escuros de alma. O problema é que se não verbalizarmos, não dermos forma às “intensities”, podemos “explodir”, como uma panela de pressão. É por isso que a “rouquidão” da alma é mais perigosa. Os poetas estão sempre em risco e por isso estão sempre em modo poético, não vá a pressão explodir. A poesia de certo modo nasce de uma permanente rouquidão de alma. E é por isso que a sua linguagem é tão minimalista, suave e delicada. Para conter a rouquidão e não “arranhar” as almas, a do poeta e a dos outros.

LIBAÇÕES

Reflecti sobre se uma pintura que ilustrava um poema devia ter título ou não ter. Optei por não ter, porque o título seria o próprio título do poema. Redundância. Mas, pensando no que me disse um Amigo, poderia encontrar uma solução de compromisso, “Rosto para um Poema”, que era “Poema para um Rosto”. E assim decidi mesmo alterar a publicação. Já sobre o nariz do rosto que pintei, ele não é objecto das palavras do poeta, embora o olfacto seja central para a pulsão poética, para as libações aromáticas. Mas está lá. A embriaguez de perfumes do jardim (por exemplo, o do jasmim) é decisiva no seu poetar e ela acontece sensorialmente através do olfacto. Que é, neste caso, tão importante como a boca o é para o beijo, a “poesia dos sentidos”. O poeta, todavia, sente-o como esteticamente pregnante e motivador. Trata-se de libações aromáticas.

Mas ainda há uma outra razão para me ter decidido por não titular a ilustração, nesta “aguarela de palavras”: a sinestesia é intensa e, por isso, deixar a titulação confiada somente ao poema pareceu-me adequado. Mas a solução motivada pela observação pareceu-me que preservaria ou aumentaria mesmo essa intensidade sinestésica daquela “aguarela de palavras”. Por isso, decidi-me pelo título. Não é coisa de somenos, porque do que se trata é da dialéctica da sinestesia.

ROSTO

Comentando uma pintura (“Rosto para um Poema”)  que ilustrava o poema (“Poema para um Rosto”), um Amigo dizia-me que havia ali algumas “parecenças”, como se diz entre nós, com a Amália. “Mas não é ela, a Amália”, respondi-lhe. Essa senhora que também dizia que o canto lhe acontecia. Não é. Aliás, no fado, eu só gosto de alguns poemas cantados e de algumas vozes extraordinárias. Como a dela. Este rosto, disse, é o que eu canto e procura dar forma à alma que seduz ou seduziu o poeta deste poema. O rosto é uma projecção do poema e vice-versa. Há um referente? Não sei. O poema e o rosto valem por si. JAS@12-2024

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