NOVOS FRAGMENTOS (VII)
Para um Discurso sobre a Poesia
Por João de Almeida Santos

“Magia”. JAS 2022, 77×90, em papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, Arglass AR70 em mold. de madeira (Colecção privada).
ABALOS TELÚRICOS
Abalos telúricos. O poder da paixão – treme a terra, treme o corpo, estremece o poeta. Assim nasce a poesia: abalos telúricos. O estremecimento original, potente como aquele clarão que quase cega e incendeia, permanece inscrito na alma. E as réplicas não param. E a poesia também não.
"QUE ME IMPORTA, SEI CANTAR!"
Ah, esta mulher, com este perfil tão belo, mas austero, faz mesmo tremer o chão do poeta. Ao vê-la, o chão foge-lhe dos pés e ele estremece. Este perfil (o de “Perfil de Mulher”) acompanha-o sempre (perguntei-lhe e, excepcionalmente, ele confirmou). Não me disse, confesso, se foi ela própria a causa do estremecimento original. Isso não disse. Mas até podia ter sido. Se é verdade – e parece ser – que é na ausência que a posse se dá pela arte tudo fica explicado. Junta-se um poema a um perfil e a tristeza pode mesmo dar lugar à doce melancolia, num melódico poema. A vida também tem destas coisas: a uma perda, o poeta responde com a posse da alma através da arte. Ele aguenta o embate da única forma que pode: cantando (e animando o canto com a pintura). Dizia o Liolà (personagem central da “commedia campestre in tre atti”, Liolà, considerada por Gramsci a “obra-prima” de Pirandello,) para o tio Simone:
“Io, questa notte, ho dormito al sereno;/ Solo le stelle m’han fatto riparo; (…)/ Angustie, fame, sete, crepacuore?/ Non m’importa di nulla: so cantare!”.
Ecco. Sei cantar, dirá. É assim que o poeta se salva do silêncio da musa e acalma o espirito e a alma. E assim impede que o edifício possa ruir pela violência do abalo telúrico. O poeta como arquitecto de edifícios contra os tremores… de alma. Crepacuore? Que me importa! Felizmente, sei cantar e sei pintar. Por isso, digo (em nome do poeta): “sofrer por amor é poético e sadio”.
OLHAR
“Tensão erótica de um desejo insatisfeito” em forma de poema, como não poderia deixar de ser. E até poderia acrescentar: tensão erótica perfeita. Olhar a musa da janela sem lhe poder tocar. Mas o simples olhar tem força física e, assim, ele capta-a no poema, convertendo o olhar em palavras. Não importa se é um olhar interior ou um olhar exterior. O que tem de ser é um olhar da alma. Dádiva do céu. Eu penso que o amor, quando é autêntico, é uma dádiva (do céu) que nem todos recebem. Predestinação? Não sei. Ele permite ver coisas no real que outros olhares não captam. E nem falo do seu poder criativo. Só de a ver passar ele fica enredado num círculo de fios e de fogo que o aprisionam e do qual só a poesia o pode libertar. Eu acho que a poesia nasce do estremecimento: treme a terra para ele e treme ele perante ela. Eu acho que é por isso que o poeta é mesmo um arquitecto que constrói casas preparadas para os terramotos da alma, para os abalos telúricos. As palavras são as estacas que resistem aos abalos existenciais. Ele não desiste. Um poeta, de resto, nunca desiste por maior que seja a dor. Melhor, quanto maior for a dor mais ele é convidado a resistir. Ou seja, a poetar.
O “CHIP” DO AFECTO
Uma dádiva do céu é ter o “chip” do sentimento e usá-lo. Não há poetas sem este “chip”. Mas há quem não o possua. Às vezes – aqui está – a carga eléctrica é tão forte que o poeta estremece. E tem de poetar para aliviar a tensão. Ele tem uma sensibilidade muito apurada. A sua força, mas também a sua fraqueza.
SÓ PERDEMOS O QUE NUNCA TIVEMOS
Ritualizar e densificar os diálogos em torno da poesia e do que ela representa é tarefa gratificante para quem gosta de poesia. O poeta vai construindo o poema ao longo da semana para o oferecer à musa e aos amigos, ao domingo, muitas vezes com pinturas executadas com esse fim, outras, já existentes, mas que funcionam como sinestésica ilustração.
O José Régio, sobre perder o que nunca se teve, foi-me lembrado por um Amigo que comentava um poema meu. Sim, mas também o Bernardo Soares falava de intensa saudade do que nunca aconteceu. Ter ou não ter, esta é a questão, que se segue à de ser ou não ser do grande Shakespeare. O Régio falava de amigos. Tê-los, perdê-los?
“Nós julgamos perder Mal se nos abre a mão;/ Mal a fechamos que julgamos ter./ Somos bem débil gente! Dificilmente / Podemos encarar a nossa solidão,/ Ou ver que só perdemos O que jamais tivemos.”
Os amigos não se têm, logo, não se perdem. Eles são, não se possuem, não se têm e, por isso, a perda é outra coisa. Perdê-los porque partiram, por exemplo. A perda de amigos não corresponde à perda de coisas. Será isso? Talvez, porque os amigos estão cá dentro. Verdadeiramente nunca se perdem. Há mudança de estado, isso pode haver. Os amigos são. É como amar. Pertence à esfera do ser, não do ter. Ou à esfera do acontecer. Acontece por obra do destino ou por alinhamento dos astros. A posse não é coisa de amizade nem de amor. Ela só é possível pela arte. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Partir é outra coisa. Partir é deixar de caminhar juntos, de um modo ou de outro. Perde-se, com a partida. Mas também é verdade que é a partida que move o poeta a conservar em si aquele que partiu, cantando-o e elevando-o ao sublime. Só assim se pode possuir. Mas há muitas formas de partir. Por exemplo, partir antes de chegarmos, juntos, a um determinado ponto do percurso que iniciámos. Caminhada interrompida. “Só perdemos o que jamais tivemos”. Outra versão: saudades do que não aconteceu, nem podia acontecer. Mas, muitas vezes, podia ter acontecido. E muitas vezes desejávamos intensamente que acontecesse. Chegar juntos a uma meta, por exemplo. E festejar a chegada. Por vezes, é a própria intensidade do desejo que nos inibe e nos impede de chegar juntos. Um estremecimento inibidor. E assim fica apenas como desejo. E é por isso que dói. Os desejos intensos não concretizados doem muito. E por isso há que encontrar uma cura para essa dor: a poesia. Saudade do que ficou por viver. Um vazio pleno e, por isso, doloroso. A saudade é como uma moinha que fica ali a moer sem poder ser removida, ou melhor, que nem sequer se deseja remover na esperança de que aconteça um milagre que a transforme em luz que ilumine o passado em direcção ao futuro. Os poetas não a removem porque ela, tal como a melancolia, inspira e ajuda a reviver de forma luminosa esse passado não vivido e sofrido por ausência. É por isso que a poesia faz bem, é remédio para o amor, como diria o Ovídio. É a única forma possível de posse. E ilumina o caminho do futuro, acende a tocha do tempo.
GOSTO AMARGO DE ACERBO ESPINHO
“Saudade! Gosto amargo de infelizes. / Delicioso pungir de acerbo espinho”. Como gosto desta forma de a traduzir, a saudade. Gosto amargo, sim. E acerbo espinho. Coisa de infelizes. Pois foi isso que o poeta sentiu quando se cruzou com ela num dia cinzento, característica própria da saudade, que é sempre um pouco cinzenta e amarga. Regressar ao passado e à interrupção da caminhada que haveria de conduzir à meta e à festa de júbilo que se seguiria. Regressa, pois, poderosa, a saudade. E logo se tem de a cantar para a afagar, a acarinhar e dulcificar o seu gosto amargo. Vem-me à mente a imagem do chocolate negro (é o chocolate de que mais gosto), que é um pouco amargo, mas não é de acerbo espinho, porque já pertence ao universo do gosto, como a poesia. “Dor que tem prazeres”. Ele é mais rijo do que os outros. Resiste melhor do que os outros, talvez também porque é amargo. Como a saudade no tempo, que é seu cúmplice. A saudade como o chocolate negro? Talvez só para os poetas, que vivem em ambiente sempre amargo e prisioneiros do tempo, mas sempre com sabor agridoce, acre e doce. O tempo é como uma estufa: ajuda a maturar os sentimentos. O tempo é cúmplice dos sentimentos que, no passado, não chegaram a maturar suficientemente. Depois, devolve-os ao futuro e ao poeta, que vagueia por aí. Neste vaguear acaba sempre por se cruzar com eles. Estremece e dá-se o início do processo criativo. É assim. Um qualquer sinal é suficiente para o pôr em estado de estremecimento visto que ele tem a sensibilidade à flor da pele, melhor, da alma.
A MUSA
“Põe-a com dono. Só te faz sofrer”, poeta! Ah, mas os poetas não controlam as musas. São elas que os encantam, os põem a cantar. Elas são como as sereias e não há quem possa tapar os ouvidos aos navegadores de palavras para que não fiquem enfeitiçados pelo seu (en)canto. Os deuses são seus cúmplices e os poetas, mortais, são seus súbditos. Nada a fazer. Sofrer: mas haveria poesia sem sofrimento, sem dor? E a dor é manipulável? Há remédios para esta dor, esta “maladie”, a não ser o poético? Bem insisto em ler o Ovídio, mas não funciona. Se calhar nem o poeta quer sair deste estado, dizendo ao passarinho “some daqui!”, já não há poeta nem poesia porque sou feliz (o poeta era o Vinicius). Não é possível pôr as musas com dono, simplesmente porque elas não são capturáveis. Bem sei que é uma “frase idiomática”, mas o poeta nem sequer consegue resistir-lhes. Aliás, quando esvoaçam para outros lugares, o poeta sofre e fica com dolorosos ciúmes. Não, ele nunca quererá “pô-la com dono”. Não pode nem quer. Elas são leves e rápidas como as fadas e só obedecem à sua própria fantasia. Estão sempre alinhadas com os deuses e com o vento que passa. E voltam a seduzir sempre que querem. JAS@12-2024.
