Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (VIII)

Para um Discurso sobre a Poesia

Por João de Almeida Santos

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"Cascata". JAS 2025
EXACTIDÃO

A QUESTÃO de alinhar (esta é mesmo a palavra) a poesia com a geometria, com a exactidão da geometria, é interessante. A exactidão é uma das seis categorias que Italo Calvino, nos anos oitenta do século passado, nas Lezioni Americane (Milano, Garzanti, 1988), propôs para a arte deste milénio em que já nos encontramos. E verifica-se que o terreno comum é precisamente o das linhas. É com elas que se formam as letras, as palavras, os versos, as estrofes e, finalmente, os poemas. Como uma partitura, uma notação semântica. Mas elas formam também as figuras geométricas: rectas, triângulos, quadrados, rectângulos, círculos. O chão é, pois, comum. A teia que suporta a formação de sentido e de som. Sinestesia matricial que facilita o alinhamento entre a poesia e a geometria. E daqui nasceu um poema (“Linhas”) e a procura, nele, da exactidão que encontramos num círculo ou num triângulo equilátero. Claro, sabendo bem que, como na vida, também há linhas tortas e sincopadas. Mas a beleza reside na evolução do que é imperfeito, logo, humano, para essa perfeição que só o espírito (ajudado por Apolo) nos pode dar. A vida, que é imperfeita, aspira à perfeição. É neste movimento ascensional que se inscreve a poesia, sem solução de continuidade. E pode gerar um autêntico poder de resgate pela força sensitiva ou sensorial que acompanha, na poesia, sobretudo através da sua componente melódica, a conversão estética. Rigor geométrico com força sensorial. No poema fala-se de milagre. E talvez seja. O poder da palavra, cifrada, mas exacta e musical. Uma espécie de confissão poética do fascinante pecado de viver. Quando se lhe acrescenta, na dinâmica sinestésica, linhas e figuras geométricas em perfeita simetria o resultado é verdadeiramente superior.

O VAGO E A EXACTIDÃO

Sobre a exactidão, cito, então, o que diz Italo Calvino, nas “Lezioni Americane”, sobre o poeta Paul Valéry, precisamente a propósito dela (a “esattezza”):

“Paul Valéry è la personalità 
del nostro secolo che meglio 
ha definito la poesia come
una tensione verso l’esattezza” 
(1988: 66).

Ou, então, referindo-se a Giacomo Leopardi:

“il poeta del vago può essere   
 solo il poeta della precisione” 
(1988: 61).

É preciso muita precisão no uso das palavras para aludir a estados de alma que são vagos e imprecisos. A sensação de uma doce melancolia, por exemplo. Depois, o geometrismo que evolui por dentro das letras a caminho das palavras, dos versos, das estrofes para que a produção de sentido seja universalmente partilhável. Desenhar rigorosamente estados de alma com letras que são compostas de linhas e de figuras geométricas. Depois, a exactidão melódica através de uma espécie de notação poética, que é feita com palavras – “melólogos”. Na verdade, a poesia exige um enorme rigor de composição. Às vezes pode parecer um amontoado de palavras, mas é exactamente o oposto. A poesia, não os exercícios de mera libertinagem linguística, de pura logorreia ou de exibicionismo linguístico e narcísico. Sentir é uma coisa, convertê-lo esteticamente é outra. Para a conversão é necessário sentir. E rigor, precisão. Trata-se de uma passagem da alma, que é vaga e imprecisa, ao espírito, que aspira à perfeição e à precisão. Alma e espírito não são a mesma coisa. E é por isso mesmo que até têm dois deuses inspiradores diferentes (Diónysos e Apólon) e que Nietzsche distingue com rigor entre “espírito dionisíaco” e “espírito apolíneo”. Referindo-se a Valéry, Calvino fala de “combater o sofrimento físico através de um exercício de abstracção geométrica”. É disto que o poema “Linhas” também fala.

POESIA E MELODIA

Um amigo que comentava um poema, citou uma interessante frase de Ludwig van Beethoven. Ela tinha sido dita por ele a Bettina Brentano, para que fosse referida a Goethe e tem a ver com as relações entre ambos os génios da poesia e da música. Ela refere-a numa carta a Goethe, de 28 de Maio de 1810. Beethoven queria compor sobre poesia de Goethe: “As poesias de Goethe têm sempre um grande poder sobre mim, não só pelo seu conteúdo, mas também pelo ritmo. Sinto-me induzido e estimulado a compor a partir desta língua que, como por obra de espíritos, se eleva a uma ordem superior e contém já em si o segredo da harmonia” (Braun, F. – a cura di -, Incontri con Beethoven, Milano, Il Saggiattore, 2020, pág. 34). Eles encontraram-se em Teplitz. Na carta, Bettina diz textualmente o que lhe foi referido por Beethoven:

“Sim, a música é precisamente a 
mediação entre a vida do espírito 
e a dos sentidos. Gostaria de 
discorrer com Goethe sobre isto” 
(...) “a melodia é a vida sensível 
da poesia. E o conteúdo espiritual 
de uma composição poética 
não se torna, talvez, sentimento 
palpável através da melodia?” 
(2020: 34-35).

Interessante, a relação da música com a poesia e com os sentidos, através do que dela diz Beethoven. A música confere poder sensorial à poesia, a melodia converte o conteúdo espiritual em sentimento palpável. Atinge os sentidos e gera efeitos físicos, corpóreos, em quem ouve. Ou a música (de Beethoven) como “uma nova base sensível para a vida do espírito” (2020: 32). Na visão de Beethoven, a música parece entrelaçar-se com a poesia, num efeito sinestésico, exactamente como acontece com a pintura, dando-lhe fisicidade melódica tal como a pintura o faz com a cor e a representação, tornando-se próteses para que outros sentidos a captem como totalidade expressiva. Sem dúvida, uma cooperação que dá poder sensorial ou sensitivo à poesia.

A SEMÂNTICA E A MELODIA

Pois bem, é isto mesmo que eu penso e tento concretizar na minha poesia, sem dúvida, mas não acoplando, do exterior, a música, antes incorporando-a no interior do próprio poema. Algo um pouco diferente do que acontece com a pintura, que uso sobretudo no interior de um processo sinestésico, embora também procure incorporar a cor no interior do poema, usando as palavras. Com a música é diferente pois ela percorre todo o poema como um manto acústico interno que a faz vibrar, a electriza. É a melodia inscrita num poema que lhe confere o poder de atingir directa e autonomamente a sensibilidade de quem o lê, o sente e o ouve. O poder sensitivo da poesia deve-se sobretudo à incorporação da melodia (e do ritmo) no seu interior. Afinal, o que dizia Aristóteles, na sua Poética?

“Há algumas artes que se servem de 
todos os meios mencionados, a saber, 
o ritmo, a melodia e o metro, 
tal como a poesia dos ditirambos 
e nomos” (Lisboa, FCG, 2018: 39).

Não é, pois, coisa recente esta ideia de incorporar a musica no interior da poesia.

UMA OPÇÃO INCONTORNÁVEL

No meu exercício poético, a componente melódica é sempre trabalhada especialmente na fase final do poema e se uma palavra, semanticamente perfeita, não é melodicamente tão adequada como outra que seja, todavia, semanticamente menos pregnante, adopto sem hesitação esta última devido precisamente à exigência melódica, que para mim é incontornável. A força de um poema deve-se em grande parte à sua melodia e ao seu ritmo sonoro, à sua toada. Depois, se a poesia é levitação, porque retira peso à existência, é leveza, como a dança, com os seus momentos “ballon”, a verdade é que a melodia lhe confere corporeidade, fisicidade, pois fala directamente à sensibilidade, aos sentidos de quem a lê, a sente e a ouve. Melodia que percorre todo o poema, do primeiro ao último verso. Na minha concepção, a relação entre a poesia e a melodia dá-se sobretudo internamente, o que confere grande autonomia e poder sensorial directo à poesia. Falando com um amigo sobre este assunto, ele dizia-me que sem melodia a poesia fica diminuída ou até desaparece. Concordei. Numa palavra, a poesia não é somente semântica, ela é, e talvez no mesmo grau, também melodia.

HIPPOCRENE

Pode ser “Voz em Silêncio” o título que um amigo me propôs para uma pintura ilustrativa de um poema a que dera o título “S/Título”. E até poderia ser “Grito em Silêncio” se só tomássemos em consideração a pintura e a criança que emerge do ventre de sua mãe. Na verdade, o que eu pretendi com o poema “As Fontes de Tivoli” foi fazer a passagem das Cem Fontes de Tivoli para a água da Fonte da Poesia, a de Hippocrene. O sujeito poético, Gianni della Rovere, saía de Roma e subia até Tivoli para dar voz ao seu desejo de libertação do amor, pela magia da água pura, de que ficara cativo. Sim, lá, na Villa D’Este, há uma escultura de Pégaso que, naturalmente, alude a Hippocrene, à sua água, às musas e à poesia. E ao desígnio dos deuses. A paixão de Gianni por Paola Valenzi exigia cura e talvez na água das Cem Fontes estivesse, por analogia com a de Hippocrene, a solução. Conjugadas, a primeira estrofe e a última são a chave do poema “As Fontes de Tivoli”. Em Roma, ficara a perdição. De resto, o Tibre, a que o poema também alude, é objecto de algumas canções dramáticas. “Er Barcarolo”, por exemplo, com o fim trágico de Ninetta… por amor. Uma vez mais, a poesia, associada à água pura das fontes e ao desígnio dos deuses, como resgate.

A fonte original é, pois, a de Hippocrene, a da inspiração poética, no Monte Hélicon, na Grécia. A inquietação do poeta leva-o até lá, onde vivem as musas e onde jorra água pura. Água pura que pode transformar a tristeza em doce melancolia. Claro, desde que seja água desta Fonte. Os poetas vão sempre bebê-la lá, no lugar onde habitam as musas. Para isso, devem levitar com a fantasia e voar até lá com a imaginação. Mas, para que a poesia aconteça, é preciso que se conjuguem algumas variáveis num súbito e preciso instante: Eksaíphnes.

A FONTE, O POETA E AS MUSAS

Viajar com os poetas em torno das raízes da sua inspiração pode ajudar a compreendê-los melhor. Durante anos, todos os dias, à hora de jantar, eu passava em frente da Fontana di Trevi, um privilégio, mas foram as fontes de Tivoli que mais me inspiraram. Claro, fontes, em Roma, há tantas quanto igrejas. Centenas. E há as que definem Roma. A “Fontana dei Quattro Fiumi”, do Bernini, na Piazza Navona, a sala de visitas de Roma, por exemplo. Aqui vivi dez anos, mesmo ali ao lado. Mas a água, ali, em Tivoli, é diferente e convoca-nos a poetar, sobretudo se levarmos connosco, na subida ao monte, a dor original do poeta, o desencontro, o fracasso amoroso, o silêncio, a ausência. Lá, nas Cem Fontes, acederemos à origem da poesia, porque esse é o seu ambiente de culto, desde as origens da Grécia antiga. Está lá a água, abundante e pura, e a escultura de Pégaso que nos lembra a origem de tudo: Hippocrene, a fonte que inspira os poetas e dá de beber às musas. Um poeta procura resolver, com a poesia, as dores de uma sensibilidade extrema, como é a sua, afinada que foi pela dor que o estimulou. E é junto da água abençoada pelos deuses e pelas musas que ele se realiza. Aqui, nestes jardins, vivem muitas musas. E é nos jardins que, por vontade dos deuses, acontece a poesia, como, creio, se diz no “Symposion” de Platão. De resto, sempre me inspirei na mitologia grega. Ela diz tudo. E ajuda a evoluir poeticamente até chegar à fonte mágica da poesia, que faz milagres na sensibilidade de quem nela bebe. E os poetas bebem nela. E povoam, desde sempre, a mitologia. Neste poema, “As Fontes de Tivoli”, evoco, muito superficialmente, uma história de amor contada no meu romance “Via dei Portoghesi”. Roma, Tivoli e a Grécia antiga, com a sua mitologia entrelaçada.

A CAMINHO DE TIVOLI

Sim, claro, compreendo que na subida de Roma para Tivoli alguém acabe por ficar ali, já perto de Tivoli, na Villa Adriana. A grande Yourcenar revigorou, com esse extraordinário romance, “Memórias de Adriano”, o interesse desta famosa Villa do Imperador Adriano. Mas Villa D’Este, com as suas Cem Fontes, é fascinante, não só pela beleza da avenida das fontes, mas também pelas obras de engenharia que lhe estiveram na base. Eu subi várias vezes de bicicleta (de corrida) de Roma até Tivoli. E sempre me fascinaram aquelas fontes. E lá está o Pégaso. E, por isso, a mitologia grega, onde gosto de me inspirar. Não sei, mas talvez seja devido à minha velha paixão pelo grego clássico, que, de certo modo, condicionou a minha vida profissional (comecei como monitor de filosofia antiga, ainda estudante devido ao domínio do grego). Aqui, neste poema um pouco introspectivo, interessou-me a ligação a Roma e à mitologia grega sobre a poesia, através das fontes de Tivoli e da presença alusiva de uma escultura de Pégaso que faz a ligação com a Fonte de Hippocrene, a fonte dos poetas e das musas. Depois, a alusão à história de amor entre Gianni e Paola no romance “Via dei Portoghesi”. Uma autêntica teia de relações num poema sobre a poesia. JAS@01-01-2025

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