POR QUE RAZÃO NÃO ADIRO À MANIFESTAÇÃO
“NÃO NOS ENCOSTEM À PAREDE”
Por João de Almeida Santos

“A Linha do Horizonte”. JAS 2025
1.
EM PRIMEIRO LUGAR, a ter em consideração o mote da manifestação (“Não nos encostem à parede”), o que logo surge como seu alvo é a Polícia de Segurança Pública. Em segundo lugar ficam aqueles que, de facto, foram objecto daquela rusga policial, um pouco aparatosa, reconheço. Portanto, uma manifestação sobretudo contra a polícia de um Estado democrático, não contra a polícia de uma ditadura. Isto deveria ser suficiente para o PS se distanciar da manifestação em vez de a ela se associar, ainda que indirecta ou informalmente, deixando a iniciativa àqueles que sempre viram na polícia a mão repressiva do capitalismo e do Estado de classe. O PS não faz parte, julgo eu, deste radicalismo nem partilha desta visão. Mas mesmo que este mote se aplicasse ao governo, mesmo assim, não creio que o PSD constitua, atendendo ao seu histórico, uma perigosa ameaça às liberdades públicas. De qualquer modo, a alusão é, efectivamente, à polícia. Foi essa que encostou pessoas à parede, durante uma rusga. Dizer que, no fundo, não é, é pura dissimulação.
2.
É preciso olhar para a natureza das funções desempenhadas pela polícia. Trata-se de funções extremamente delicadas porque envolvem o exercício da força institucional perante situações de violação da ordem pública ou de prevenção de práticas de ilícito ou da própria violência. Prevenir as infracções à lei e à ordem pública, em largo espectro, e agir para impedir que prossigam não é tarefa simples e fácil, porque ocorre sempre numa linha de fronteira entre uso da força institucional, legal e legítima, e a preservação de direitos. O uso da força institucional é sempre um fenómeno delicado, perigoso e difícil até porque tende a colidir com os direitos, as liberdades e as garantias, vindo de um agente, o Estado, que detém o monopólio do uso legítimo da força, esse que foi inventado pelos contratualistas precisamente para garantir a segurança de pessoas singulares ou colectivas – o Estado moderno. E, por isso, podem ocorrer facilmente erros (que serão sempre graves) cometidos por aqueles que estão incumbidos de a usar em nome da lei e da segurança, em nome do Estado. Por exemplo, agir em ambiente de manifesta violência é condição propícia a desvios imprevistos, não intencionais e muito menos programáveis. Isto é de senso comum e tem de ser levado devidamente em conta, antes de gritar ao vento a pureza dos princípios perante a dura realidade. A “ética da convicção” deve ser temperada pela “ética da responsabilidade”.
3.
O PS tem um histórico que deve ser tomado na devida conta, precisamente a propósito desta questão. Foi durante o primeiro governo de António Guterres que foi criada a IGAI, Inspecção-Geral da Administração Interna, tendo como desígnio controlar institucionalmente a actividade das polícias, e por acção do Ministro Alberto Costa, que nomeou o primeiro Inspector-Geral, Rodrigues Maximiano. Um meio legítimo e inteligente de manter dentro das boas práticas o exercício de uma missão difícil, delicada, complexa e perigosa, como é a actividade policial. A que acresceu ainda a introdução de uma lógica de força civil na polícia, transformando o Comando-Geral de Polícia, de inspiração militar, em Direcção Nacional de Polícia, de natureza civil, tendo pela primeira vez um civil à sua frente. Deixou de ser obrigatória a nomeação de um general para o comando da PSP. Foi nessa ocasião desenvolvida a filosofia do “policiamento de proximidade”, que se traduziu, por exemplo, na criação das iniciativas “Escola Segura” e “Idosos em Segurança”, hoje reconhecidamente consideradas iniciativas de grande sucesso. E um forte investimento na formação policial. Obra de um governo socialista chefiado pelo actual Secretário-Geral da ONU, António Guterres, dando, assim, corpo, no plano da segurança, à visão inovadora do PS para esta tão sensível área.
4.
Por isso, o PS (de que sou militante há umas décadas) não deveria transformar essa sua vocação reformadora com forte pendor institucional num agit-prop de inspiração woke cada vez mais agressivo e presente na nossa sociedade, em vez de lutar pela melhoria das condições de eficácia e de responsabilidade das forças de segurança. Não é combatendo-as na rua com manifestações nacionais, com intervenção da sua máquina partidária, que contribuirá para melhorar as condições de segurança no nosso país. Pelo contrário, o que, assim, conseguirá é promover o bloqueio da acção da polícia, tornando-a cada vez mais difícil, complexa e delicada. Mais do que já é. Há uma tendência dominante, talvez por ainda estar presente a imagem da polícia da ditadura, meio século depois, para apontar sistematicamente o dedo em riste à polícia, não só pela esquerda radical, mas também pelo mainstream jornalístico que ainda vive sob influência da sua matriz liberal, onde o Estado surge sempre como o invasor do terreno privado de exercício da liberdade. Alguns até acham, erradamente, que a função do jornalismo é ser contrapoder. É ver a Resolução 1003 do Conselho da Europa sobre Ética do Jornalismo (de 1993), onde essa ideia é explicitamente recusada. Mas é coisa antiga e também actual, facilmente comprovável por quem ainda vê televisão e a forma como é noticiada a relação entre a polícia e os cidadãos a propósito de um qualquer incidente. O facto é que, esta, não é uma polícia de ditadura. É uma polícia de um Estado democrático, que deve ser respeitada, mesmo em situações em que possam ocorrer erros.
5.
Admitamos que a polícia tenha cometido um erro, por excesso no uso de coerção sobre cidadãos portugueses ou imigrantes que nem sequer se encontravam em situação de eventual prática de ilícito, violando, assim, o princípio da proporcionalidade (a que está obrigada) na organização da referida rusga. Mesmo assim, o que o PS deveria fazer era desencadear uma acção parlamentar com vista ao apuramento institucional da situação e de eventuais responsabilidades (políticas ou operacionais), mas nunca participar numa batalha cívica nacional contra a instituição que tem por dever zelar pela segurança dos cidadãos sejam eles nacionais ou estrangeiros. A situação chegou ao ridículo de uma deputada do PS (a crer no relato dos jornais, também dois ex-ministros de António Costa o terão feito) assinar uma queixa junto da Provedoria da Justiça contra a PSP em vez de usar as suas prerrogativas institucionais para intervir, através do Parlamento, na situação. Mas não admira, visto o habitual pendor wokista das suas intervenções. Talvez seja um modo de sobrevivência política, quando não se tem real inserção orgânica no território partidário. O que é legítimo, sem dúvida, embora não seja aceitável que a sua acção, enquanto deputada, comprometa o partido no seu todo. Sim, porque o PS, no meu modesto entendimento, nunca deverá ser confundido com qualquer agenda woke que vagueie por aí na luta política pessoal ou de grupo.
6.
Eu creio que em Portugal a agenda woke está em perigosa ascensão mesmo junto dos partidos que, mais do que assumi-la, a deveriam combater, não deixando que acabe por colonizar as suas agendas políticas e dando, assim, pretexto à direita radical para identificar esta agenda com o próprio sistema, com o establishment ou com o centro-esquerda e o centro-direita, que nos têm governado. Este é, de resto, assunto que eu trato detalhada e longamente, de forma muito crítica, no meu recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Quando vemos a direita radical tomar conta, através de eleições, da política internacional é confrangedor ver estes puristas da convicção e de um wokismo de importação insistirem em dar-lhes argumentos para comodamente irem conquistando consensos junto dos eleitores.
7.
O PS faz, pois, mal em alinhar nesta iniciativa pelo que ela facialmente parece representar. E nem sequer precisa de demonstrar aquilo que sempre foi: um defensor da liberdade e da democracia contra os que sempre a elas se opuseram. E já demonstrou que sabe como gerir a sua intervenção no plano da segurança sem desvirtuar a doutrina que sempre o inspirou. E por isso também não precisa de fazer da polícia democrática o seu inimigo, qual perigosa ameaça às liberdades, aos direitos e às garantias. O PS já foi governo muitas vezes e sabe bem que a polícia de um Estado democrático tem um efectivo papel a desempenhar justamente para garantir as liberdades, os direitos e a segurança daqueles que hoje a estão a combater, como se fosse ela a inimiga central de uma sã convivência democrática. Só que não é, mesmo quando possa cometer erros. Erros que, de qualquer modo, nunca será deste modo que se corrigem. Mas se o combate é contra este governo e as suas políticas para a segurança, então, o mote desta manifestação está errado. O combate deve ser político, com manifestações, no parlamento e na opinião pública e publicada… mas não contra a polícia. Se algo correr muito mal, o governo dispõe de poderes para o corrigir. E deve ser instado a fazê-lo. De resto, quem tutela a PSP é o próprio governo, através da Ministra da Administração Interna, que foi, ela própria, Inspectora-Geral, ou seja, garante de que a actividade da PSP segue as melhores práticas no exercício das suas competências. Bem se poderia lembrar-lhe essa sua antiga condição.
8.
A carta que umas tantas personalidades de esquerda (muitas do PS, incluída a sua líder parlamentar) escreveram ao PM é, por isso, legítima e é um modo de intervenção política que, todavia, não deveria ser associada a esta manifestação e aos termos em que ocorre, tornando-se uma espécie de sua moldura conceptual, porque, se o for, então, fica criada uma “frente popular” onde só já faltará um Mélenchon para a teleguiar rumo à utopia de uma sociedade sem polícia. Mas sabemos muito bem onde levaram estas utopias. JAS@01-2025
