O PRESIDENTE – QUE PERFIL?
Por João de Almeida Santos
NÃO SERÁ A PRIMEIRA VEZ que defendo que o Presidente da República deveria ser eleito por um colégio eleitoral. As últimas experiências parecem aconselhar esta solução. Nos últimos vinte anos tivemos dois presidentes de sinal oposto que parece acentuarem ainda mais a necessidade de uma solução deste tipo. A presidência de Cavaco Silva caracterizou-se por uma forte rigidez protocolar e discursiva e por uma acentuada tendência conflitual relativamente ao executivo (é conhecido o ridículo episódio, inventado por Belém, de espionagem do PR pelo executivo – por um adjunto – de José Sócrates). Não deixou grandes saudades. Depois veio uma presidência de sinal oposto: populista, com exposição excessiva da figura presidencial, desvirtuamento da função presidencial, designadamente, por excesso de intervenção na esfera do executivo (é conhecida a tentativa de demissão de um ministro, recusada pelo PM). Tudo isto suportado, afinal, numa legitimidade reforçada obtida por sufrágio universal e directo.
1.
No modelo constitucional que vigora os poderes do presidente são muito limitados, a não ser nas circunstâncias excepcionais em que é chamado a intervir sobre a recomposição do executivo e do legislativo e na promulgação de diplomas legais. A influência do presidente, ancorada na legitimidade directa de que dispõe, resulta mais do prestígio da figura institucional e do valor político da sua palavra do que das competências que lhe estão atribuídas. Quem desempenha a função deve, pois, cultivar um exercício da palavra e da acção que contribua para reforçar o prestígio da figura institucional do presidente no quadro do actual modelo constitucional. Ora, nenhum dos dois casos que referi se desenvolveu neste sentido. Antes pelo contrário, ambas as dimensões se degradaram com o andar do tempo.
2.
Deste modo, a figura mais adequada para o desempenho da função presidencial será a que mais contribuir para boas relações com o executivo, qualquer que ele seja, a que possa contribuir para o prestígio e a recuperação da figura presidencial, a que mais eficazmente possa representar a unidade do Estado e a que possa contribuir para que a sua voz seja tomada na devida consideração, se identifique mais com “auctoritas”, no seu sentido latino, com “virtus”, do que com “potestas” (Cícero). Um perfil, portanto, de bom equilíbrio que respeite a constituição, as suas competências, que seja capaz de construir um espaço eficaz de intervenção, na lógica do poder moderador. Acresce ainda que não é aceitável a possibilidade de Belém se tornar um espaço por onde circulem facilmente interesses em porta giratória. Um candidato que tenha, durante toda uma vida, circulado neste ambientes corre sempre o risco de vir a pagar um preço por isso ou de o fazer pagar à República. Não me quero referir a algum candidato em particular, mas tão-só alertar para esse risco, contribuindo para o prevenir. A função e o simbolismo do cargo são demasiado delicados para serem contaminados por interesses de parte.
3.
Muitas vezes se fala da inadequação de um militar para a presidência, ainda que na reserva ou já completamente fora da instituição. Não me parece que essa observação seja razoável num Estado de Direito. Parece-me, todavia, que toda uma vida levada no interior da instituição militar tem um ponto a favor e outro contra. A favor, é o respeito pelas instituições e a sintonia com a ideia de Estado e de Nação, ideias que creio que estão ou devem estar enraizadas na instituição militar. O factor tendencialmente negativo é o da lógica de funcionamento da instituição militar, ou seja, a dominância do princípio do comando, algo desalinhado relativamente ao princípio que deve determinar o poder moderador na sua relação com a dialéctica democrática, ou seja, a busca permanente de consenso que possa suportar as decisões e tenda a absorver ou a atenuar o conflito. Eu creio que este será o principal obstáculo a que seja um ex-militar a desempenhar a função presidencial. Bem sei que “a função faz o órgão”, mas a passagem de uma condição para outra não se revelará fácil.
4.
Por outro lado, a legitimidade directa, através do sufrágio universal, tende, como é natural, sempre a funcionar como ulterior reforço dos poderes políticos do presidente mesmo para além daquelas que são as competências constitucionalmente configuradas. São conhecidos alguns casos em que isso aconteceu na presidência de Marcelo Rebelo de Sousa. É por isso que, conjugando a exiguidade de competências do presidente, a tendência a exorbitar devido à legitimidade directa de que dispõe e a natureza parlamentar da nossa democracia, faz sentido pôr em cima da mesa, para uma futura revisão constitucional, a eleição do Presidente por um colégio eleitoral. Mas, por agora, do que se trata efectivamente é de tomar em boa consideração o modelo que está em vigor.
5.
Entretanto, também se tem vindo a constatar que no seu discurso eleitoral os candidatos tendem a confundir a função presidencial com a função executiva e isso deve-se, em parte, à escassez de competências e de poder de iniciativa da função presidencial (tornando politicamente mais difícil o discurso), ainda que também seja de grande importância conhecer, na decisão do voto, o que pensa o candidato sobre as questões essenciais que se põem ao sistema político no quadro constitucional, sobretudo porque é ele o garante do cumprimento da própria Constituição: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa” (art. 127.º). O que já não parece aceitável é confundir os discursos, porque o presidente não governa nem legisla.
6.
Creio mesmo que o perfil do presidente se deve centrar muito na sua personalidade, nos seus valores, na sua relação com a política e com a vida, as dimensões que, no meu entendimento, podem fazer dele um bom presidente. Não creio, pois, que o presidente deva exibir uma personalidade forte, um curriculum cheio, ou mesmo a transbordar, e pensamento politicamente muito comprometido e muito activo. Até pela natureza das funções que será chamado a desempenhar: facilitar o bom curso da dialéctica democrática em vez de procurar imprimir as suas idiossincrasias políticas ao desenvolvimento democrático. Atrever-me-ia a dizer que entre as características do presidente deva estar a humildade, temperada com uma personalidade bem definida e dotada de auto-estima, pessoal e institucional. O que se requer a um candidato é, ao fim e ao cabo, um patriotismo constitucional em condições de facilitar e promover uma boa e livre dialéctica democrática.
7.
O PSD já declarou o seu apoio a Luís Marques Mendes. O PS prepara-se para ouvir a sua comissão nacional acerca das presidenciais, certamente para conhecer as sensibilidades presentes no parlamento do partido e, a partir daí, desenvolver a sua estratégia de promover uma candidatura única no seu próprio espaço político, evitando também fracturas internas que possam perturbar a sua própria estratégia. Não lhe cabe traçar um perfil porque esse pertence aos potenciais candidatos, que não deverão ser objecto de prévia escolha partidária. Mas, por outro lado, também não necessita de definir o quadro político e de valores em que se inscreverá o seu apoio a um candidato porque esse é mais que conhecido. De qualquer modo, e pelo que os potenciais candidatos já terão dito (António José Seguro ou António Vitorino, até agora), a vontade de candidatura só será manifestada mais lá para a frente, provavelmente não seguindo aquela que foi a estratégia de Jorge Sampaio. Quanto aos outros, as candidaturas estão, no essencial, confinadas à estratégia de promoção dos seus partidos de referência, incluída a de André Ventura. O que, todavia, não é o caso do Almirante Gouveia e Melo, hoje dado regularmente pelas sondagens como o potencial vencedor. Sim, é verdade, mas, primeiro, é necessário que anuncie a candidatura e, depois, também é verdade que a campanha eleitoral (ou mesmo a pré-campanha), muito importante, neste caso, ainda nem sequer começou, a não ser a de Marques Mendes, que, essa sim, começou há muitos anos. JAS@02-2025
