O GRAU ZERO DA POLÍTICA
Por João de Almeida Santos
QUERO REFERIR-ME, com este título, à política tal como está a ser reconfigurada depois da chegada de Donald Trump, de novo, ao poder. Em rigor, do que se trata é da identificação da política simplesmente com o exercício do poder baseado na força, em todas as suas frentes, política, militar, económico-financeira, comunicacional. “Disponho de meios que não podem ser contrastados nem interna nem externamente, uso o poder como força e a força como poder quando e como quiser” – dirá o intérprete qualificado desta concepção de poder. A ideia de poder como relação assimétrica, interdependente e indeterminada, tão exaustivamente tratada no recente livro de Augusto Santos Silva (Lisboa, Tinta-da-China, 2024), conhece aqui uma fortíssima retracção ao identificá-lo como imposição unilateral, como dominação, prescindindo da componente diplomática, da interdependência, da persuasão e do respeito pelas regras internas e internacionais. Hard power. Mas, como se diz neste livro, “poder não é força” embora a força seja uma “das principais fontes do poder”. A política como poder: uso ilimitado da força e relação incondicionada de dominação, poder de e poder sobre (2024: 26, 36, 79, 82 e passim). As posições de Trump sobre o Canadá, o Panamá, a Gronelândia e a Faixa de Gaza dão uma ideia muito clara disto. As negociações com a Rússia sobre o futuro da guerra com a Ucrânia, sem este país e a União Europeia, também.
1.
Internamente, e uma vez obtido por via eleitoral o consenso para a conquista do poder (usando e abusando do poder do dinheiro e das redes sociais, em particular do X), entrou em acção um plano de contracção drástica e repentina dos poderes não presidenciais que configuram o sistema americano e, em geral, todas as democracias representativas, e são condição de autocontrolo dos sistemas democráticos através do mecanismo conhecido como checks and balances; externamente, entrou em acção um plano de imposição difusa do poder económico e comercial americano (a começar pela imposição unilateral de taxas) e pretensões territoriais unilateralmente declaradas, já referidas. Complementarmente, a própria Casa Branca, identificando-se cada vez mais claramente com o populismo radical de direita, avança com uma estratégia de promoção descarada dos seus pares políticos na Europa ao mesmo tempo que relativiza os poderes ditatoriais, mais que comprovados, da Rússia e da China. O intérprete e porta-voz desta visão foi o Vice-Presidente JD Vance ao afirmar que o perigo para a Europa não vem da Rússia, a mesma que invadiu arbitrariamente a Ucrânia, ou da China, mas sim do seu interior, ao proclamar que a Europa está a trair os seus próprios princípios (sobretudo no plano da imigração e da liberdade). Uma posição que seria plenamente partilhada pelo filósofo do Kremlin, Aleksandr Dugin (o que declarou a decadência do Ocidente, resgatável pela própria Rússia, seguindo as pisadas de Oswald Spengler no livro Der Untergang des Abendlandes, de 1918; 1922*) e pelo próprio Vladimir Putin, a partir do santuário da Praça Vermelha, que, ao que parece, conserva ainda muito do seu antigo poder simbólico e esplendor. Corolário directo disto é a injunção política, primeiro, de Elon Musk e, depois, de Vance, na política interna da Alemanha, através de um claro e não disfarçado apoio à AfD, em período de eleições legislativas, tendo motivado uma forte reacção alemã. Já tivemos o caso do Brexit e não se sabe o que acontecerá no próximo domingo, 23 de Fevereiro, sobretudo se tivermos em conta a influência subliminar das redes sociais, e em particular de X.
2.
Não parece ser necessário fazer um desenho para se perceber que estamos perante uma onda mundial da direita radical que, não se identificando (pelo menos, para já) com as ditaduras russa e chinesa, delas está muito próxima, como se verifica não só com declarações como as de Vance, mas também com as próprias relações internacionais claramente assumidas pela maioria das forças da direita radical, no interior de um modelo de proposta política que procurei identificar no meu mais recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024) e que, no essencial, se pode resumir na ideia de reforço intensivo dos poderes do executivo em detrimento dos outros poderes, do legislativo, do judicial, do regulador e também do poder mediático. É o que está a acontecer actualmente também nos Estados Unidos. Veja-se, a título de exemplo, a sanção drumpiana aplicada à Agência de Notícias americana Associated Press por não ter adoptado a sua decisão de chamar Golfo da América ao Golfo do México: veto indeterminado de entrada na Casa Branca, no acesso à sala oval, e ao Air Force One (El País, 15.02, pág. 6 ). Ou com tudo o que já está a acontecer na máquina administrativa do governo americano. Com efeito, a função do senhor Elon Musk no executivo de Trump (através do já famoso DOGE, o departamento de eficácia governamental, também importante e activa frente de combate contra o “wokismo”) é precisamente o de esvaziar de poderes as outras instâncias, designadamente pelo encerramento (a USAID, por exemplo), pela drástica redução do respectivo financiamento e pelo correspondente despedimento de funcionários públicos, estando em movimento uma autêntica crise constitucional, até pela inopinada usurpação de competências do próprio Congresso. Mas não é menos significativo o governo de Trump através de sucessivos e disruptivos decretos presidenciais: “Trump governa por decretos. Ele deu a Elon Musk o poder de bloquear todo o financiamento que ele considere ilegítimo, em clara violação das prerrogativas do Congresso. É um ataque extremamente radical contra o sistema constitucional americano tal como o conhecemos”, disse Francis Fukuyama (Le Monde, 16-17, 02.2025, pág. 7). A filosofia que subjaz a tudo isto é muito simples: tenho o poder nas mãos e uso-o sem ter de tomar em consideração as clássicas regras do poder democrático, sobretudo o mecanismo de controlo dos checks and balances e o princípio do “judicial review”, a arbitragem final sobre a lei pelos tribunais federais. Vance já declarou que o poder judicial se deve submeter ao poder do executivo: “Os juízes não têm o direito de controlar o poder legítimo do executivo”, disse JD Vance, licenciado em direito pela Universidade de Yale (Le Monde, 16-17, 02.2025, pág. 7).
3.
Na verdade, o pano de fundo de tudo isto traduz-se na redução do poder a puro uso da força sem tomar em consideração o outro lado, que sempre existe, nessa relação assimétrica e interdependente que define o poder. Levado ao extremo, já sabemos o que acontece: ditadura, totalitarismo. Uso da força pura para impor unilateralmente a vontade de um dos pólos da relação ou, ainda mais radicalmente, para anular a consciência do outro, transformando-a em realidade especular do poder que domina. O poder como dominação. E força, os Estados Unidos têm que chegue, ancorada na maior indústria de armamento existente no globo. O poder simbólico talvez também já esteja ao seu dispor com o alinhamento integral das maiores plataformas digitais que operam em todo o mundo com índices de participação avassaladores. Um só valor: 5,24 biliões de utilizadores dos social media, equivalentes a 63,9% da população mundial. Está tudo dito, se tomarmos em consideração que a quase totalidade das plataformas está concentrada nos Estados Unidos, sendo o seu modus operandi do conhecimento público e já abundante e criticamente estudado (veja-se, por exemplo, a obra de Shoshana Zuboff sobre A Era do Capitalismo da Vigilância, Lisboa, Relógio d’Agua, 2020). E isto representa realmente soft power (entendido em sentido alargado), indirectamente imputável ao Estado americano se tomarmos em consideração o actual alinhamento total das plataformas com a Casa Branca de Trump, em particular X, de Musk, e Meta, de Zuckerberg. Aliás, não é de excluir que a compra do Twitter por Elon Musk tenha visado sobretudo a conquista do poder por Trump, à semelhança do que acontecera em 2016 com o uso dos perfis dos utilizadores do Facebook pela Cambdrige Analytica, então detida pelo multimilionário Robert Mercer e dirigida pelo então ideólogo de Trump, Steve Bannon. Mercer financiou a campanha de Trump (directa e indirectamente) com mais de 15 milhões de dólares, o que comparado com os valores de Musk para o mesmo fim, em 2024, cerca de 280 milhões de dólares, parece ser uma pequena esmola. Mas a verdade é que também em 2016 Trump, ajudado pela parelha Mercer/Bannon e pelos mais de 50 milhões de perfis dos utilizadores do Facebook do senhor Zuckerberg, ganhou as eleições. A experiência do referendo do Brexit, em Junho de 2016, revelara-se preciosa e convincente.
4.
Na verdade, os Estados Unidos controlam o hard power e o soft power mundial (e nem sequer falo do uso e da força mundial do novo esperanto dos povos, o inglês), podendo, se assumirem a visão integrada de poder que parece estar a impor-se a partir da Casa Branca, provocar uma viragem radical na política mundial, alterando as regras de funcionamento quer do Estado de Direito e do Estado representativo tal como os conhecemos quer das relações internacionais, com o estabelecimento de três grandes impérios (o americano, o chinês e o russo) e respectivas zonas de influência à escala mundial. Deve-se tomar na devida consideração a crítica que Vance fez à Europa e a União Europeia: o problema não são as ditaduras chinesa e russa, o problema é a vossa decadência em relação aos valores. Trata-se de uma posição clara relativamente ao centro-esquerda e, em parte, ao próprio centro-direita a partir de um conceito de poder como exercício unilateral e impositivo da força ancorado nos valores conservadores que legitimam as posições do poder de facto já existentes na sociedade. O poder político limitar-se-ia, pois, a reproduzir especularmente as relações de poder existentes, defendendo-as, blindando-as, promovendo-as e impondo-as.
5.
E é aqui que assistimos a uma outra profunda viragem relativamente à tradição política ocidental. Ou seja, o fim da clássica separação funcional entre as elites políticas dirigentes e as elites económicas (refiro-me aos grandes grupos económicos), que, antes, não se confundiam. Esta alteração teve um momento quase fundacional em Itália, com Berlusconi (em 1993-1994) e atinge agora o zénite com Donald Trump e Elon Musk. De resto, é conhecida a confessada admiração de Trump pela experiência política do magnata italiano (sobre a conquista do poder por Berlusconi desenvolvi uma longa analítica no meu livro Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 257-338 e passim). O poder político está, pois, agora nas mãos das oligarquias económicas, anulando ipso facto o velho princípio do “conflito de interesses”, inscrito pormenorizadamente em todos os manuais de direito como prática generalizadamente proibida, mas agora espantosamente e despudoramente exibido como virtude a seguir e a promover, em nome da liberdade. Ora, um regime que funciona assim, já não é um regime democrático, mas uma plutocracia, onde o povo fica reduzido a mera “massa de manobra” para boa legitimação do regime.
6.
Era Giambattista Vico que, na “Scienza Nuova” (1724), no século XVIII, falava de “corsi e ricorsi” na história e assinalava a fase em que acontecia a regressão para uma fase de tirania e de anarquia, por degeneração da última das três fases progressivas da história (era dos deuses, dos heróis e dos homens). Pois parece que aquilo a que estamos a assistir, depois de 80 anos de paz e de progresso civilizacional, corresponde exactamente a essa fase regressiva, devido ao colapso das instituições instauradas pela modernidade. Putin, com a guerra territorial contra a Ucrânia já demonstrara que a regressão podia mesmo acontecer. Agora, com Trump, a regressão aprofundou-se a partir do desmantelamento do modelo da democracia representativa e a instauração de uma plutocracia que reduz a política ao exercício do poder como dominação. Até parece que a filosofia do imperialismo territorial de Putin acabou por fazer escola naquela que era conhecida como modelo de democracia de matriz liberal, ao manifestar, também ela, pela voz do seu presidente, direitos imperativos sobre os territórios mais ou menos confinantes ou mesmo situados noutros continentes, como é o caso de Gaza.
7.
A verdade é que o soft power de que os Estados Unidos dispõem, através daquilo a que Shoshana Zuboff chamou capitalismo da vigilância, poderá já ser suficiente para manter um simulacro de democracia e de consenso eleitoral sem ser necessário recorrer ao hard power, ao poder militar e às fórmulas clássicas das ditaduras. Os processos usados vão fazendo o seu caminho: Brexit, Trump em 2016, provavelmente Bolsonaro, em 2018, Trump em 2024. As movimentações já começaram relativamente às eleições alemãs. Vamos ver como vão acabar.
8.
Não me parece ser muito difícil desenhar o perfil desta nova tendência em curso nem os mecanismos e as técnicas usadas para promover este tipo de poder, numa leitura literal do que já pudemos encontrar em “O Príncipe” de Maquiavel, a propósito da conquista e da preservação do poder do Príncipe: ser “lione” e ao mesmo tempo “golpe”, ser leão e raposa. Se a política sempre tomou seriamente em consideração esta fórmula, seja enquanto ditadura seja enquanto democracia, a verdade é que se para a ditadura a raposa representava somente a astúcia (a propaganda), mas não a virtus, para a democracia a raposa sempre representou algo mais, o saber, a influência, a persuasão, o consenso, a inteligência, a virtude. Falo, neste caso, da natureza centáurica do poder. Assim sendo, o que se está a verificar é uma autêntica regressão na política democrática e nos seus princípios fundamentais, onde o que resta é um esqueleto deformado daquilo que era a democracia representativa ou, pelo menos, o sistema representativo, tal como foi concebido originariamente e como se foi consolidando ao longo do tempo, num processo que, como sabemos, teve muitas e graves regressões, sobretudo na primeira metade do século XX. Não se avizinham, pois, tempos fáceis nem gloriosos para as jovens democracias deste mundo cada vez mais pequeno e concentrado.
9.
O que parece é que se está a delinear uma nova geopolítica com três fortes esferas de influência imperiais, a dos USA, de Trump, a da China, de Xi Jinping, e a da Rússia, de Putin, excluindo a União Europeia, que, de resto, sendo certo que não ambiciona um poder imperial, parece nem sequer partilhar a própria ideia de “esfera de influência”, a crermos nas palavras da senhora Kaja Kallas, alta representante da UE: “Não acreditamos nas esferas de influência”, disse recentemente no Parlamento Europeu. Sim, “pero que las hay, hay”. Que o diga a China. Influência que, afinal, também sempre correspondeu ao clássico soft power da Europa, pela sua consistente dinâmica civilizacional, científica, cultural e social, hoje em crise. Mas, por outro lado, o que, mais realisticamente, parece é que os Estados Unidos de Trump tudo estão a fazer para perderem a influência que já tiveram, atendendo à agressividade brutal da sua política internacional, centrada na doutrina do “America First”, e nas medidas unilaterais e agressivas que estão a tomar. E também parece ser pouco provável que a sua activa aliança com a direita radical europeia possa vir a tornar a Europa numa zona de influência mais dócil e subordinada do que já era até aqui.
10.
Entretanto, no fim do encontro de segunda-feira, em Paris, o que sobrou foi mais divisão do que a que já existia, neste caso sobre o envio de tropas de manutenção de paz para a Ucrânia, na imaginária fase do pós-guerra, decretada uniteralmente pela Rússia e pelos Estados Unidos de Trump. Por exemplo, Scholz e Sánchez acham totalmente prematura a questão. A verdade é que a UE, com a actual configuração institucional e com as fracas lideranças de que dispõe não parece estar à altura do desafio que a situação internacional lhe está a colocar. E não se trata sequer de um problema de dimensão, em todas as frentes, de uma área em comunidade com cerca de 450 milhões de habitantes. É certo que a UE nunca se preocupou muito com a questão da defesa, com a dotação de uma agência de rating europeia, com a criação de plataformas digitais de grande dimensão, mas também com um dispositivo institucional que facilitasse rápidas e consistentes decisões operativas sustentadas em legitimidade directa (como, por exemplo, aquela de que dispõe o presidente dos Estados Unidos). E, todavia, a dimensão, a consistência económica e cultural da UE exigiriam muito mais do que aquilo que é e que tem. Muitos foram aqueles que sempre o quiseram. Infelizmente, as diplomacias nacionais sempre procuraram ser elas e decidir, tendo-o conseguido, com resultados políticos verdadeiramente pífios ou mesmo regressivos em relação aos necessários avanços. Lembro-me bem da luta de Altiero Spinelli para acabar com essa supremacia das diplomacias europeias na gestão do processo europeu, consideradas mais fonte de paralisia do que de acção e progresso. E estamos a pagar o preço disso. Esperemos que a resposta da UE não esteja somente ancorada numa lógica da reacção, mas seja fruto de uma visão realmente estratégica sobre o papel de uma região do mundo que sempre foi decisiva na história mundial. JAS@02-2025
NOTA
* Achei muito curiosa a forma como o autor da entrada Spengler (Oswald Spengler, 1880-1936) no Dicionário de Filosofia da Editora Garzanti (Milano, Garzanti, 2001) se refere à sua doutrina: “Alla civiltà occidentale dovrà pertanto succedere uma civiltà russa. Ma prima della ricaduta nella barbárie deve ancora venire la fase del cesarismo” (pág. 1093). Acrescentando-lhe, agora, as recentíssimas palavras do putiniano filósofo russo Aleksandr Dugin sobre a Alemanha e os alemães, a propósito das eleições do próximo domingo – “Votai na AfD ou ocuparemos de novo a Alemanha e dividi-la-emos entre a Rússia e os Estados Unidos” –, as posições ainda se aproximarão mais: Musk, Vance e Dugin, a mesma luta.

