Artigo

VANCE, A EUROPA E AS ELEIÇÕES ALEMÃS

João de Almeida Santos

“F. Merz – Bundeskanzler”. JAS 2025

ARTIGO - "VANCE, A EUROPA 
E AS ELEIÇÕES ALEMÃS"

ANTES DAS ELEIÇÕES DE DOMINGO, 23.02, na Alemanha, houve uma cimeira mundial sobre segurança, em Munique, com a presença do Vice-Presidente americano James David Vance. O seu discurso diz muito não só como o actual poder americano vê a Europa, mas também como ele próprio se identifica (pelo que diz).

1.

Li com atenção o discurso de JD Vance e ficou claro que ele se centrou sobretudo na crítica àquilo que a chamou crise de valores na Europa (a verdadeira “a ameaça interna”), que, na verdade, e a ter em conta os exemplos que deu e a linguagem que usou, se centra no essencial no valor da liberdade e, sobretudo, como ela é posta em causa pela atmosfera woke (de matriz americana, diga-se) e pelo “politicamente correcto”, que lhe impõe severas limitações; na questão das chamadas linhas vermelhas (expressão usada por ele: “não há lugar para linhas vermelhas”) e no problema da imigração, “descontrolada”, também palavra sua. Os exemplos foram escolhidos a dedo: referindo as declarações de um antigo comissário europeu sobre a anulação das eleições na Roménia e a eventualidade de isso também poder acontecer na Alemanha; a censura digital, a ameaça de fecho temporário das redes sociais em caso de agitação civil –  perante o que é considerado como “conteúdo de ódio”; as rusgas na Alemanha contra comentários anti-feministas online, justificadas como “combate à misoginia na internet”; a punição (em milhares de libras) da reza silenciosa (supostamente contra o aborto), no Reino Unido, ou mesmo do exercício religioso no interior das próprias paredes domésticas que, segundo as autoridades, pode levar ao incumprimento da lei das “Zonas Tampão”, por exemplo, na Escócia, etc. etc. Tudo exemplos escolhidos por Vance para dar bem ideia daquilo a que se estava a referir quando falava de liberdade. A referência parece ser clara: a assunção institucional na Europa do discurso woke e politicamente correcto. Um discurso que tem dado um valioso impulso eleitoral à direita radical e que ela já identifica como discurso do sistema. Depois, as linhas vermelhas, estando a indicar a recusa de alianças da direita moderada com a direita radical, por exemplo, na Alemanha (com a AfD) ou, então, digo eu, em Portugal (com o CHEGA). Não há qualquer dúvida de que a actual administração americana está alinhada com a direita radical europeia (e, consequentemente, com a própria Rússia de Putin, como se vê no modo como a Ucrânia está a ser tratada). Finalmente, o coração de todas as políticas da direita radical: a imigração (“descontrolada”). Diz Trump, na sua rede “Truth”, depois de conhecidos os resultados da eleições alemãs:  “os alemães estão cansados de agendas sem sentido sobre energia e migrantes”. Os números apontados por Vance são significativos e não há  dúvidas de que essa, ao lado da ideologia woke, é a principal linha de combate da direita radical. O alinhamento ideológico da América de Trump com a direita radical europeia e com Putin não oferece dúvidas.

2.

Confesso que temia que, fruto (a) deste namoro americano com a AfD, que começou com as declarações de Elon Musk, com a sua longa conversa, no X, com Alice Weidel e a afirmação de que a Alemanha só se endireitaria com um governo da direita radical (AfD) e, ainda, com a eventualidade de uma intervenção política subliminar da sua rede social nestas eleições, b) do gesto de Vance, ao não aceitar reunir-se com o Chanceler Scholz, mas reunindo-se com Weidel, e do teor do seu discurso e, finalmente, c) de uma eventual intervenção digital da Rússia no próprio processo eleitoral alemão, fruto de tudo isto, a AfD superasse em muito o resultado que as sondagens há muito já lhe atribuíam (regularmente 20%). Mas isso não se verificou. Pelo menos, na parte ocidental da Alemanha, já que na parte oriental (os cinco estados da antiga RDA) a AfD é o partido mais votado. O que deve dar que pensar.

3.

As eleições antecipadas alemãs deveram-se a uma queda do governo de coligação de Scholz com os Verdes e com os liberais, com a consequente dissolução do Bundstag a 27 de Dezembro passado. As sondagens há muito que já davam resultados muito próximos dos que se viriam a verificar nestas eleições: 28.5% (CDU/CSU – 208 mandatos), 20,8% (AfD – 152 mandatos), 16.4% (SPD – 120 mandatos), 11,6% (Gruene – 85 mandatos), 8,8% (Linke – 64 mandatos). Liberais (FDP) e BSW ficaram fora do Bundestag. Tendo-se verificado uma participação excepcional de votantes, cerca de 84%, quando em 2021 fora de 76,4%, não se verificou um ulterior avanço da AfD, relativamente às sondagens que há muito lhe davam este resultado, a verdade é que duplicou os votos obtidos em 2021 (10,4%), com um decisivo contributo das regiões da antiga RDA. O SPD tem a maior queda desde o segundo pós-guerra, reflectindo também ele a crise generalizada da social-democracia. É útil lembrar que o SPD foi sempre o partido inspirador da social-democracia europeia, designadamente do PS.

4.

A Alemanha tem cerca de 60 milhões de eleitores, dos quais 42% têm mais de 60 anos.  A lei de 2023 fixou em 630 os mandatos do Bundestag. O sistema eleitoral é proporcional e maioritário. Os boletins de voto são dois: um, para escolher o candidato local num dos 299 círculos eleitorais; o outro, para votar nos partidos e na relativa distribuição de mandatos. Sistema maioritário para 299 círculos (vence o que tiver mais votos) e proporcional nos restantes para o voto nos partidos. Existe uma pequena quota de “compensação”. Limiar para entrar no Bundestag: 5%. Os principais partidos concorrentes foram a CDU/CSU (centro-direita) AfD (direita radical), SPD (social-democrata), Liberais, Verdes, Linke (esquerda), BSW (esquerda populista). A CDU governou 53 anos em 76 depois da Guerra, sendo os seus principais líderes Konrad Adenauer, Helmut Kohl, Angela Merkel.

As principais linhas de força da vencedora CDU/CSU são

1. controlo da imigração;
2. redução de impostos 
para favorecer a economia;
3. cortes na despesa social;
4. revisão da lei de controlo 
orçamental ("Schuldenbremse).

Por sua vez, a Alternative fuer Deutschland foi criada em 2013, tendo hoje dois lideres, Alice Weidel, proveniente do Goldman Sachs e residente na Suíça, com a sua companheira do Sri Lanka, e candidata a chanceler, e Tino Chrupalla, ex-pintor de interiores, o animador das hostes. Weidel defende:

1. a “re-migração” de centenas 
de milhares de imigrantes;
2. a saída da UE e do euro;
3. Desmantelamento da rede de eólicas;
4. e uma política de aproximação 
à Rússia de Putin.

Nada que Trump não esteja já a fazer, note-se e registe-se. Por sua vez, o programa do SPD alinhava pelas tradicionais medidas programáticas da social-democracia com dominante no Estado social e medidas afins.

5.

Esta situação, em face dos mandatos parlamentares (208 da CDU/CSU e 120 do SPD), parece aconselhar a reconstituição de uma nova “Grosse Koalition” (com 328 mandatos), visto que o número para uma maioria absoluta parlamentar é de 316, não pretendendo Friedrich Merz, ao contrário do que pretenderia Vance, promover uma aliança com AfD. Esta solução tem uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem consiste em dar consistêntcia a um governo com uma clara maioria parlamentar num país charneira para uma União Europeia a braços com uma gravíssima crise com o seu antigo aliado, os Estados Unidos. A desvantagem consiste em, à direita, ficar o AfD praticamente  com o monopólio da oposição ao sistema. É claro que um governo que integrasse também os Verdes poderia ficar perto da maioria qualificada, dando, nesta fase tão crítica da UE, maior robustez política ao governo e permitindo-lhe até mudanças constitucionais, para as quais é, segundo a Constituição, necessária uma maioria qualificada. Mas é conhecido o ponto de viragem que aconteceu em Itália, quando o único partido que ficou fora da aliança que sustentou o governo Draghi foi precisamente o de Giorgia Meloni, Fratelli d’Italia, que acabaria por ganhar as eleições e por formar governo em 2022.

6.

Uma coisa é certa. A direita recolheu cerca de 50% do eleitorado e o centro-esquerda teve um enorme tombo (o SPD perde cerca de 9 pontos). O mesmo que se tem vindo a verificar por essa Europa fora, com os sucessivos triunfos, um pouco por todo o lado, da direita radical. Ou seja, na Alemanha confirmou-se, mais uma vez, o reforço substancial da direita radical: duplicou o número e eleitores.

Em síntese, várias conclusões é possível tirar destas eleições:

1. O crescimento da direita radical, 
sobretudo nas regiões da antiga RDA, 
onde AfD é o partido mais votado.

2. A queda persistente da 
social-democracia, tendo o 
SPD registado o maior tombo 
eleitoral desde o pós-guerra.

3. O claro alinhamento dos USA 
com a direita radical europeia e, 
mais concretamente, com a AfD 
e o seu programa.

4. O reforço global de direita, 
que, somada, ultrapassa em muito 
os 316 mandatos (360 mandatos), 
embora não possam ser somados 
para efeitos governativos porque 
a CDU/CSU não quer entendimentos 
com a AfD.

5. A centralidade política do 
problema da imigração e, em menor
grau, do wokismo e do 
“politicamente correcto”.

6. A estratégia dos Estados Unidos 
de Trump (claramente formulada 
por Vance em Munique) para forçar o 
ingresso da direita radical nos 
governos europeus.
7.

A Alemanha, o maior país da União Europeia, com  mais de 80 milhões de habitantes, e que viu a direita radical duplicar o número de votos que obteve em 2021, provavelmente voltará a ter uma “Grosse Koalition” com o SPD. Provavelmente, o conceito já nem corresponde ao dado de facto devido à queda do número de mandatos da coligação  CDU/CSU – SPD, visto que apenas possuem mais 12 mandatos do que os que são necessários para uma maioria absoluta. Só para se ter uma ideia, a média, em percentageml, dos mandatos de ambas as forças políticas nas cinco eleições que houve em 2005, 2009, 2013, 2017 e 2021 era equivalente a 62% dos mandatos do Bundestag, sendo agora, nas eleições de 2025, equivalente a 52%. Uma diferença de 10 pontos. Mas esta não é uma alteração conjuntural, é uma tendência que se está a verificar de forma consistente um pouco por toda a Europa, com a fragmentação dos sistemas de partidos e o fim da tradicional alternância entre o centro-esquerda e o centro-direita. O que está a acontecer é que a capitalização desta fragmentação é feita sobretudo pela direita radical, por razões que neste artigo não cabe esmiuçar, e para além do que ficou dito. E a grande novidade é a guinada monumental que se verificou nos Estados Unidos e que se soma à que tem vindo a acontecer na Europa. Se, depois, ainda lhe juntarmos a cumplicidade que está a acontecer a olhos vistos entre os Estados Unidos e a Rússia do senhor Putin, é mesmo caso para falarmos num enorme retrocesso na política mundial. Tinha razão Giambattista Vico quando falava dos “corsi e ricorsi” da história, pois já nos encontramos numa fase de grave recessão política e civilizacional.  JAS@02-2025

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