NOVOS FRAGMENTOS (XI)
Para um Discurso sobre a Poesia
João de Almeida Santos
ARTIGO – “NOVOS FRAGMENTOS” (XI)
1.
A POESIA TEM O PODER extraordinário de acelerar o tempo ou de o retardar. O tempo da poesia é “kairótico”, acontece como “momento oportuno”, como “durée”, para usar o conceito de Henri Bergson, o tempo subjectivo, tempo que é fluxo, movimento, a continuação do que já não existe no que existe, o prolongamento do antes no depois, uma “memória interior à própria mudança”. Daí o seu poder de aceleração. Introduzindo o “instante criativo” na nossa liturgia existencial superamos o tempo cronológico, o “tempo espacializado”. Depois, recorrente no meu discurso poético, vem a neve, que infelizmente é cada vez mais passado, porque já não nos visita, tendo de ser nós, quais turistas da neve, a visitá-la. Ela, antes, vinha ter comigo a minha casa, ao meu jardim, à minha rua. Agora, não. Mas com a poesia, com o tempo subjectivo, é sempre possível reverter o tempo cronológico e ir lá, a esse passado com neve. A essa rua onde ela aparecia… quando queria. Entramos no veículo poético e, zás!, já lá estamos. Outra vez a aceleração. Um veículo poderoso, que só poucos sabem conduzir com a necessária mestria e sensibilidade à flor da pele. Na direcção do passado, mas com os olhos postos no futuro. Trazendo-o com arte ao presente é o mesmo que lhe dar asas para voar até ao futuro, queira o passado ou não. É que, aqui, até o passado tem vontade. Só que o poeta também a tem, aliada da sua fantasia. Aí a encontramos, a ela, ou um outro amor de juventude a que ela, a neve, também possa aludir. Que sempre havia. Oh, se havia… A neve é, sim, metáfora, mas também é referente real – ela representa o passado naquilo que ele teve de mais belo. A neve é feminina, é mulher. E é por isso que o poeta a canta e a procura sob outra forma (líquida e muito fria, como ela, a do silêncio que castiga) lá no alto da montanha para a trazer consigo, a ela e à montanha. A poesia traz a outra, como a água traz a montanha e a neve (em forma líquida). O passado ao alcance da imaginação. A textura delicada de um floco de neve a dissolver-se assemelha-se a um suspiro quase inaudível. Mas lá está a poesia para o registar. Suspiro que até pode ser, realmente, o poético. O canto em surdina. É por isso que a poesia a procura, a neve, para dizer o que de outro modo não poderia dizer. Os grandes amores são muitas vezes, demasiadas até, fugazes, como a neve. Brancos e frios. E petrificam. É por isso que os poetas andam sempre com um espelho para poderem olhar as musas através deles e não petrificarem.
2.
O sonho, seja ele poético ou não, funciona assim: filtra. Codifica o real e reprodu-lo já codificado. Para lhe aceder é preciso uma chave. Uma espécie de código. É uma linguagem e, como tal, tem essa função. Uma linguagem especial. Também é uma descarga não linear de experiências comprimidas e mal resolvidas. O Cioran falava de poética do fracasso. No sonho poético intervém o espírito para sofisticar esteticamente o que a alma sentiu. A alma sente, o espírito estiliza. Sim, o sonho purifica. Por isso, é bom sonhar. Depois, como diz o poeta, o mundo até pode pular e avançar…
3.
Há sempre a poesia para reconstruir no presente o que se perdeu no passado. Com a poesia revive-se. Com a intensidade que a performatividade da poesia torne possível. É variável, a performatividade. E depende muito da melodia, do ritmo, da toada, fundamentais para dar poder expressivo e sensorial à poesia. Como dizia a Yourcenar: “Gherardo, maintenant tu es plus beau que toi-même”. Referia-se já à ausência do amante de Michelangelo e à sua expressiva reconstrução estética. Pensava no passado quente que ficou ao alcance da sua fantasia reconstrutiva na fita da memória. Agarrar o passado com palavras, com melodia, com cores, com beleza, é revivê-lo livremente. Afinal, a felicidade é um sentimento: é algo que se vive interiormente e que podemos accionar à nossa própria escala. Em condição de ausência. E, se assim for, por que razão não a podemos reconstruir e revivê-la sem limites? Só com a nossa fantasia, sim, mas para depois a partilharmos através da arte como projecção e estilização da nossa própria sensibilidade, como um novo andamento da nossa experiência sensível.
Alguém me dizia que abraçar com o olhar é impossível, porque não se sente fisicamente quem abraçamos. Não concordei porque, no meu entendimento, até é possível sentir mais fortemente (e fisicamente) um abraço que seja dado simplesmente com o olhar, com a alma. Afinal, os olhos são a janela da alma. E a conversão somática também acontece com o desejo. Ecco.
4.
O tempo é absoluto, mas também é relativo. É as duas coisas. E há o tempo subjectivo, que é o tempo dos poetas. A “durée”. E há o tempo “espacializado”, cronológico. Um tempo exterior que nos atropela constantemente. O do poeta é clepsídrico, reversível, pode sempre recomeçar. Basta virar a clepsidra. O eterno retorno, como vem definido na “Gaia Ciência”, do Nietzsche, Aforismo 341. Este também pode ser o tempo do poeta. Por isso ele fala, no poema “Tempo e Memória”, de uma esfera em rotação entre o futuro e o passado, com o poder do meteorito incandescente que até pode provocar grandes devastações. Por exemplo, quando se tenta agarrar o passado intenso e não se consegue porque a neblina do tempo é intensa e já não deixa ver com nitidez. Só a fantasia consegue penetrar nessa neblina e agarrar o passado, modelá-lo, convertê-lo, estilizá-lo, trazendo-o ao presente e até ao futuro (através da arte). Não acreditar que a musa não ouça o poeta? Bom, talvez ouça. De qualquer modo, ele age sempre como se ela o estivesse a ouvir. E mais: age poeticamente (mas também como pintor) para a seduzir e, assim, remediar o que falhou no passado. Mas conseguirá seduzi-la? E se ela o não ouvir? Resultados concretos? Sim, há: os poemas. Eles bastam-se. É como procurar seduzir um fantasma? Eles sempre voam por aí e fazem parte da atmosfera criativa. E o poeta sabe disso. Mas pode ser que algum dia um poema chegue à musa, se os fantasmas (seduzidos, também eles) não os beberem durante o trajecto. Eles são fluxos que fazem o seu caminho para além do poeta que lhes deu vida. Há um cordão umbilical que se deslaça… na partilha. Os poemas são riachos que fluem para rios e, depois, para o mar… O encontro entre a “água doce” e a “água salgada” é sempre imprevisível e potencialmente instável. Como o poema quando chega à musa…
5.
Talvez a musa esteja num plano intermédio entre a reserva e a altivez própria de quem se sabe amado, mas a tender mais para a reserva, para o culto do anonimato, para o gosto da penumbra. Não sei. Não sei bem se o retrato que resulta de um poema se lhe aplica ou se a musa dos poemas est plus belle qu’elle-même. O que sei é que a relação remota do poeta com a musa gera sempre uma cadeia de sentimentos que parece não ter fim, pois passa a fazer parte do universo onírico dele. Uma espécie de “pecado original” de que o poeta procura resgatar-se pela poesia. E para isso escolhe a via da sedução poética, da beleza, do canto, apesar de não saber se ela o ouve. Sim, mas, de qualquer modo, ele age sempre “como se”. E é isso que é importante. Porque é isso que lhe permite continuar.
6.
O tempo é fluxo e deixa rasto, marcas, sulcos e tudo isso também acontece na memória viva. Acontece no real, com as marcas físicas, e acontece nos registos de memória viva. E estes registos falam, às vezes, como sonhos, outras, como narrativas, como poesia, como música ou pintura. A música popular está muito presente nas composições de Mozart, por exemplo. Há nela marcas muito profundas e reconhecíveis. E nem falo dos romances históricos, das telas de pintura ou dos monumentos e edifícios. Tudo isto passa pela sensibilidade dos executores, havendo, pois, uma mediação por intervenção da consciência, dos registos de sensibilidade, da memória, do saber, da técnica. Acontece assim a cristalização do tempo. E o próprio tempo torna-se, assim, escultor. O poeta é um escultor de sentimentos com palavras em melodia, procurando captar o fluxo temporal, mas sem o petrificar. A linguagem da poesia procura acompanhar a fluidez dos sentimentos e do próprio tempo referindo-se ao objecto como se estivesse a olhá-lo num espelho, não directamente. Esse desafio de superar a petrificação é o mais delicado, difícil e complexo da arte. Nesse sentido, o poema é, sim, tempo, porque se move livremente entre o passado e o futuro, situando-se no chamado “instante criativo”, no “momento oportuno” ou “kairós”. E o próprio poeta situa-se no seu espaço ideal, que é o intervalo entre si e o real. E é por isso que ele próprio, enquanto poeta, pode fluir com o tempo. E até acelerá-lo ou retardá-lo.
7.
A “Esfera do Tempo”, uma pintura minha para o poema “Tempo e Memória”, representa a possibilidade de reversão do tempo. E a verdade é que o poema faz reverter o tempo, tornando-o vivo (na performatividade da palavra poética). A própria ideia de clepsidra, que fui buscar a Nietzsche, à “Gaia Ciência”, também torna possível essa reversão, desde que manipulada (a tal rotação). O centro é, claro, a memória, o lugar onde acontece o tempo subjectivo do poeta, onde acontece a conversão do passado remoto ou mesmo do instante pulsional que leva o poeta a cantar. Nela o passado corre em moviola e é assim que o poeta compõe. Olha para o écran da memória em movimento, como na moviola, observa, regista e compõe. Depois, o espelho (que também está na imagem a reflectir a esfera): é sobre ele que o poeta trabalha, imagem indirecta, instrumento que a deusa lhe deu para não petrificar perante a visão da musa (górgone benigna). De resto, o essencial nunca se dá a uma visão directa, mas sim a uma visão sempre indirecta, mediada. O espelho é, pois, um precioso instrumento para nos relacionarmos com a verdade e a beleza. Depois, a imagem da vela que atrai a borboleta e que morre (morrem ambas) para iluminar é bela. Pode-se intuir isto num poema de Goethe (“Selige Sensucht”, mas creio que a imagem da vela aparece no romance de Thomas Mann, “Lotte em Weimar”, precisamente numa fala de Goethe) e procura simbolizar as palavras que exaltam (iluminam) a musa à custa de uma eventual anulação da própria identidade do poeta. Anulo-me para te fazer brilhar. As velas dos cerimoniais religiosos ao serviço da iluminação divina. E também é verdade que o poema se move entre o magma pulsional e o rigor sideral, sendo, sim, esse o permanente desafio da poesia. JAS@03-2025


