CONSIDERAÇÕES ACERCA DA REJEIÇÃO DA MOÇÃO DE CONFIANÇA
A Caminho do Plebiscito
João de Almeida Santos
MOÇÃO DE CONFIANÇA REJEITADA e, naturalmente, eleições em Maio. E ficou claro no debate parlamentar de ontem que o Primeiro-Ministro Luís Montenegro (LM) não queria (não quer) responder numa “Comissão Parlamentar de Inquérito” (CPI) nos termos regimentais previstos. Diz ele e o seu bloco político que, assim, iria verificar-se uma prolongada degradação da vida política e institucional, sem que, todavia, se tenham preocupado em notar a contradição patente em que incorrem relativamente ao funcionamento de todas as outras CPIs que ocorreram até agora, incluída a que viu o PR envolvido (a CPI das gémeas). Estas, pelos vistos, nunca contribuíram para a degradação do sistema institucional, mas, agora, sim, será uma CPI aviltante e institucionalmente corrosiva. O mínimo que se poderá dizer é que acordaram tarde para a lógica de funcionamento das CPIs.
1.
Assim sendo, o PM só recuaria na “Moção de Confiança” se ele próprio pudesse controlar os termos em que a CPI se fosse desenrolar, incorrendo noutra contradição: ser o inquirido a ditar os termos da inquirição. Mais uma vez: até aqui tudo bem, mas agora há que mudar as regras de funcionamento desta CPI sobre o PM. De preferência, que dure, imperativamente, quinze dias ou, na pior das hipóteses, dois meses. Acordaram tarde, mas dirão que mais vale tarde do que nunca. De qualquer modo, o que parece é que, com o que aconteceu ontem no Parlamento, a CPI será transferida para a campanha eleitoral, desvirtuando-a, mas desvirtuando também a própria campanha eleitoral. Nada melhor para a degradação das instituições.
2.
Pedro Nuno Santos instou o PM (porque é disso que se trata) a retirar a “Moção de Confiança” e a submeter-se a essa CPI (com duração prevista de três meses, quando ela normalmente pode ir até 180 dias, e com eventual prorrogação até 90 dias), nos termos regimentais, recusando negociações de bastidores sobre ela enquanto ia ocorrendo o debate no Parlamento, ou em qualquer outra situação. Ninguém queria as eleições, é verdade, mas elas irão acontecer, e no pior dos cenários. Acontecerão mais como plebiscito do que como eleições legislativas.
3.
PNS ficara amarrado, desde o dia 10 de Março de 2024, ao chumbo obrigatório de qualquer “Moção de Confiança” que viesse a acontecer. E chumbo repetidamente reiterado. É verdade. E isso tornou quase impossível um recuo em relação a esta posição do governo, sob pena de vir a ser considerado troca-tintas. A verdade é que uma rigidez discursiva e decisional deste tipo não parece ser muito apropriada à actividade política, até porque as circunstâncias mudam, e agora muito mais rapidamente do que antes. Uma das razões (não a única, nem a mais importante) da existência do mandato não imperativo deve-se também à necessidade de deixar mãos livres aos representantes para poderem decidir e agir em função da própria imprevisibilidade da política e da história. E, neste caso, se as circunstâncias tinham mudado muito (não era previsivel este estranho comportamento do PM nem esta tentativa plebiscitária de o branquear), o compromisso de PNS não mudara (fora reiterado várias e recentes vezes, quase como um mantra), pelo que ficou amarrado a essa pré-anunciada e reiterada decisão. E, por isso, ontem agiu em coerência, no meio das tentativas mal-amanhadas da maioria no debate parlamentar para reverter a situação de queda do governo, sem excessivo prejuízo para o PM, devido à CPI. O PM tinha receio de ser queimado em lume brando e, por isso, tentou, e conseguiu, uma fuga para a frente, arrastando consigo o governo, o seu partido, o país e o próprio PS.
4.
Há uma pergunta legítima que se poderia fazer a PNS: se era isso que LM queria por que razão lhe deu precisamente o que ele queria? E a resposta seria sempre esta: porque já estava há muito anunciada a posição do PS perante uma tal eventualidade. Ou seja, o governo só cairia, e cairia, quando o PM quisesse, porque o PS já demonstrara à exaustão que não seria causa de instabilidade política: deixou passar o programa do governo, a presidência da AR, o orçamento, e chumbou duas moções de censura. Mas com a consciência tranquila, porque, confiança, isso é que não. Um mantra. A verdade é que, logo que o PM decidiu submeter-se a uma “Moção de Confiança”, a tal fuga para a frente, PNS viu-se obrigado a executar o que já anunciara há muito e, deste modo, a satisfazer o desejo de Luís Montenegro, pagando por isso um preço: ver-se acusado de ser causador de instabilidade política. Injustamente, como se vê, mas também porque ele próprio se amarrara a essa decisão desde o dia das eleições legislativas de 2024.
5.
Já aqui escrevi, na passada segunda-feira, que a melhor decisão teria sido, de facto, a abstenção e a rápida promoção da CPI. E elenquei as razões de fundo e os efeitos. Assim, o que iremos ter, será, independentemente dos conteúdos discursivos mais amplos que seguramente acontecerão na campanha eleitoral, um plebiscito sobre a figura de Luís Montenegro: ter ou não condições para voltar a ser primeiro-ministro. Ou seja, toda a campanha se centrará na sua figura. O que acabará por lhe dar uma centralidade que acabará por ser benéfica para ele, se aceitarmos a lógica e a validade de uma famosa teoria dos efeitos, a do “agenda-setting”. Sei bem do que falo porque estudei ao pormenor a campanha de Berlusconi de 1994, que o levou ao poder, tendo usado e abusado desta tecnologia social, contra, neste aspecto, uma certa inoperância de Achille Occhetto, o líder do PDS (veja-se o meu Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 257-338).
6.
Não me agradou, portanto, o desfecho deste processo e até acho que o PS, mesmo que saia vencedor das eleições, não terá seguido aquela que seria, na minha opinião, a melhor estratégia – a abstenção. A lição a tirar daqui é esta: a rigidez decisional, em nome de uma eventual coerência de discursos de conjuntura, que, em nome precisamente da coerência, amarram o seu autor e não lhe deixam a necessária flexibilidade para agir politicamente em liberdade, não é mesmo muito amiga da acção política. A coerência e a rigidez discursiva só devem ser mantidas no plano da ética da convicção, no plano dos princípios. Mas mesmo aqui, às vezes, a ética da responsabilidade e as exigências de flexibilidade táctica implicam um nível de liberdade que a rigidez decisional não permite. Espero que PNS retire desta experiência a devida lição, como, afinal, em parte, já o tinha feito em relação ao orçamento para 2025. É assim que eu vejo as coisas. JAS@03-2025

