NOVOS FRAGMENTOS XII
Para um Discurso sobre a Poesia
Por João de Almeida Santos
ESTAR-À-JANELA
“UM ETERNO ESTAR-À-JANELA”, dizia-me alguém, a propósito de um poema meu. Mas há quem esteja sempre a entrar e a sair pela porta, respondi. Quem não saiba sair da rua e não goste de estar à janela. Um desperdício, dizem. Uma bela diferença. O poeta também entra e sai pela porta, anda pela rua, cruza-se e descruza-se com pessoas, tropeça, cai e levanta-se… Tudo isto acontece e ele conserva e metaboliza a experiência. Mas, ali, da janela, ele vê mais longe do que o simples horizonte da sua rua, da rua onde demasiadas vezes tropeça. E esta é uma bela diferença. Mais: projecta a sua rua (e o que lá lhe acontece) para a linha do horizonte, pinta tudo de azul e fala disso, de forma cifrada, em código, aos que também, como ele, observam o horizonte a partir da própria janela. Como se o mundo fosse um pátio para onde dão as nossas janelas. Janelas diferentes, claro. Umas, sempre escancaradas; outras, sempre fechadas e com os cortinados a impedirem a dupla visão de dentro para fora e de fora para dentro; outras, aInda, intermitentes, sempre a abrir e a fechar; e outras, finalmente, sempre fechadas, mas sem cortinas. Claro, o horizonte das janelas é sempre uma miragem, porque depende da nossa retina e do que queremos ver (ou não ver) sempre que vamos à janela. Se olhamos para a rua ou para o horizonte. Ou, então, para a janela vizinha, procurando entrar na intimidade dos que a habitam. A vida é feita de miragens, apesar dos corpos rígidos em que vamos embatendo quando saímos à rua, quando deixamos a janela. O que acontece, afinal, nos sonhos? Miragens. E os sonhos não fazem parte da vida e, por isso, como dizia o Calderón de la Barca, a vida não “es sueño”? E não é à janela que sonhamos? A vida é feita de miragens. Não é um deserto, mas também é. E é a parte desértica da vida que as provoca. A rua, que nunca é desértica, porque transborda de transeuntes que sempre nos interpelam, não é lugar para isso porque está sempre a interpelar, a provocar, a interromper o desejo e o sonho. Sonhar na rua é muito perigoso. Provoca acidentes. À janela, pelo contrário, podes olhar o horizonte, fechar os olhos… e sonhar. Na rua não podes fechar os olhos.
“Um traço lento de fumo ergue-se e dispersa-se lá longe…”. É a vida a esfumar-se, vista da janela. Mas da janela também é possível fazê-la regredir desse movimento para o nada, recuperá-la com a fantasia, torná-la ainda mais nossa, mais próxima e até mais íntima. E mais bela. Basta mudar a direcção do olhar e da imaginação… desde que não seja na direcção da rua. A poesia serve para isso, se é que a palavra “serve” lhe é aplicável.
DEAMBULAÇÃO
O poeta, “na sua fatal deambulação”, que é poética, interpela a musa. E a musa cativa-o. E ele, imprudentemente, leva-a para o seu próprio ambiente de vida, as ruas empedradas da sua aldeia, a montanha, o sol especial que lá nasce, o azul profundo do céu, tudo aquilo que a pode aproximar mais de si. Um doce cativeiro voluntário. E a poesia é o veículo onde a leva até lá, “em fluxo criativo”. E ela deixa-se ir, na condição de sedutora. Mas, assim, o poeta troca a vida pelo passado, julgando estar a dar vida a esse passado. E de certo modo está. Resgate ou renascimento? Tudo se passa na esfera vital da alma. Mas, afinal, não foi sempre esse o lugar onde tudo aconteceu, nesse passado? Há um traço-de-união entre o presente poético e o passado vivido.
ERRÂNCIA
Errância poética, poder-se-ia dizer da vida de um poeta. Duas janelas e uma musa (ou duas, quem sabe…) a provocarem errância poética. Das miragens também se poderia dizer o mesmo. E ainda bem que há miragens porque, não havendo, nem haveria poesia nem cura. As miragens são a matéria de que se nutre o poeta. E elas surgem quando ele está (ou estava) à janela a olhar para a rua e, depois, para o horizonte. O que vê ele, lá da janela? Silhuetas. E no horizonte ele vê aquele traço lento de fumo que se ergue e dispersa, lá ao longe, isso a que se refere o Bernardo Soares (quase me apetecia, neste caso, dizer “Só Ares”). Traços lentos de fumo a esfumarem-se (é a palavra) lá longe é também o que muitas vezes encontramos na memória e que, por isso, nos obrigam a reconstituir integralmente, ainda que em código, o que aconteceu nesse passado que se esfumou. Tudo porque dói a alma. Ao poeta. E porque há uma musa que lhe sobrevive activa na penumbra da memória. E é aí que tem de intervir a fantasia, para a reconstrução, à medida do seu desejo insatisfeito. Na penumbra da memória. Como se estivesse a visitar o colunado de uma mesquita ou de uma catedral. Com a fantasia pode fazer isso ou viajar até uma ilha encantada… com ela, a musa. Só com ela. Faz lembrar Sininho e o Peter Pan. A miragem, intervencionada com a fantasia e o código poético, pode, sim, tornar-se realidade e o passado tornar-se futuro, resgatando o poeta do poço fundo da memória. Até ao próximo ciclo daquilo que mais parece o eterno retorno e a clepsidra do Nietzsche.
O MILAGRE DA POESIA
Fecho os olhos para a deixar entrar, sem interferências nem ruídos exteriores. A musa. De noite, através dos sonhos. De dia, pelas janelas da alma. Nunca a quis afastar do meu universo onírico nem do fio do horizonte que vejo da minha janela. Porque nunca se deve afastar o que para nós é (ou foi) vital. Um poeta que expulse a musa que o inspira está a cometer suicídio. Não, o que se deve fazer é transformar a ausência em presença, o silêncio em melodia e o passado em futuro; fracasso em sucesso, a dor em prazer e a tristeza em doce melancolia. Assim, a musa fica mais bela do que (já) é (a seus olhos). E assim diria Michelangelo, o da Yourcenar, do seu amante Gherardo Perini. Fechando os olhos e deixando-se ir da janela para o horizonte, tendo como asas as palavras, ficará mais perto dela, da musa. Nem é preciso nomeá-la ou retratá-la.
UMA PORTA PARA O SONHO
A poesia é uma porta para os sonhos. Tal como os sonhos são uma porta para ela. Entramos por ela adentro e começamos a sonhar, a ver beleza onde talvez não houvesse, a ouvir uma melodia onde talvez só houvesse ruído, a ver futuro onde só se via passado sem recurso. A poesia abre sempre as portas para um mundo melhor e mais belo, mesmo que seja melancólica. É uma porta em forma de janela, que, em vez de dar para a rua (mas também dá, com o olhar), dá para o vasto horizonte.
O POETA E O MUNDO
Eu adoro o Fernando Pessoa, que considero um génio. E a ideia de que o mundo não precisa dele para existir tem uma correspondência simétrica: também parece que ele não precisa do mundo para existir. Ele (neste caso o Bernardo Soares) nem gosta de tocar nele (no mundo) sequer com as pontas dos dedos. O mundo, para ele, de certo modo, é uma espécie de galeria de arte e, por isso, relaciona-se com ele sobretudo com a sua sensibilidade. E com o olhar. Mas às vezes (poucas) não era assim. Que o diga a sua Ofélia. Mas tem, de facto, consciência de que o mundo não se reduz ao que se vê da janela (embora seja isso o importante). Lembro a fórmula excessiva do Berkeley: “esse est percipi”. Diz ele, e bem: uma coisa é a ideia filosófica de árvore, outra é a própria árvore. A árvore não precisa da ideia de árvore para existir. Mas também poderia dizer que a árvore ganha em existência se também existir como ideia. Porque as ideias têm o poder de resgatar o real. E de o ter em ausência. Em suma, se o mundo não precisa dele para existir, também ele não precisa do mundo para ser, porque ele tem em si todo o mundo que deseja ser. O (seu) mundo é do tamanho do seu olhar, seja lá o que o mundo em si for.
SENTIR O POEMA
Um Amigo disse-me: “Alguém terá dito que poeta é também quem sente o poema”. Eu próprio o dissera também. E até falei de uma comunidade de “iniciados”, porque a poesia é uma linguagem em código, ou cifrada, cujo primeiro nível de compreensão deve acontecer em forma de sentimento, de registo de sensibilidade. Por isso, “poeta é também quem sente o poema”, por dentro.
DUAS JANELAS
“Andamentos” interiores do poeta – aquela dialéctica entre a perda e a recriação ao sabor dos mais íntimos e sofridos desejos. E lá vem o voo reparador para a ilha encantada, com ela (só ela) na alma. Perda e reconquista, em palavras, que são as asas do voo poético até à sua Neverland. Há aqui (no poema “ Miragem”) duas janelas, a da pintura (“A Outra Janela”) e a da musa. À dela não conseguia chegar porque ninguém lhe ia buscar uma escada. Não tinha a famosa Ama de Julieta, “prover-me de uma escada, para que vosso amor consiga o ninho do pássaro alcançar” (Shakespeare, Romeu e Julieta, II, V), para subir até ela. Metáfora que a coloca num lugar cimeiro e inalcançável. Submisso, pois, o poeta. Mas, agora, que a tem, só lhe serve para ver mais longe e para viajar com o olhar (e com ela, no olhar) no veículo poético feito de palavras e movido a combustível rimático e melódico até uma ilha encantada. O que mudou? A janela, que é a mesma, mas vista de fora, de um ângulo diferente. Mas a janela tem sempre como referência a musa, embora em condições diferentes. Se a outra se via do lado de dentro, com a musa, esta vê-se de fora, já sem a musa, que partiu. Por isso, este (o do poema “Miragem”) é um canto melancólico só compensado pela visão indirecta (interior e mediada pela memória) da musa, a sul, sob forma de fugaz estrela cadente. Uma luz que, sem o encandear (no passado, sim, encandeava-o), o ilumina por dentro, condição da sua própria génese e identidade como poeta. Trata-se do tempo subjectivo, “kairótico”, do “tempo oportuno” e criativo que permite, como um clarão (como o de “A une Passante”, do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal”), visualizá-la por momentos, para logo desaparecer (engolida pelo anonimato de que tanto ela gosta). Às vezes a visão é tão nítida que ele até ousa pintá-la, para dar maior realismo à sua visão interior, poética. Assim vai sobrevivendo, como jogral, cantando para espantar um mal que não tem cura, a não ser a da palavra. A poesia é o seu divã, o lugar onde dá curso às suas livres associações em busca do tempo e da musa perdidos. JAS@03-2025

