O PLEBISCITO
As Eleições que Ninguém Queria
João de Almeida Santos
AFINAL, DO QUE SE TRATA, NESTAS ELEIÇÕES, não é só de um plebiscito sobre um primeiro-ministro eticamente (se não judicialmente) problemático, mas sobre todo o governo. Um desvio de atenção para um plano mais amplo. E o poder legislativo, cuja reconstituição deveria ser o centro das atenções, aparece neste processo como um vago cenário de enquadramento de um autêntico plebiscito sobre Luís Montenegro e o governo.
1.
A verdade é que o que motivou estas eleições foi um problema de confiabilidade do PM, sendo, pois, natural que o que deveria estar em causa fosse precisamente isso. Ou seja, a confiabilidade da pessoa do PM. Mas Luís Montenegro quis tornar as eleições sobre o seu problema pessoal, o plebiscito sobre a sua conduta, sobre a sua confiabilidade, em plebiscito sobre o seu próprio governo, repondo a política no debate, tornando-a a verdadeira moeda de troca. Uma mudança substancial, pois. Porquê? Porque decidiu levar 66,6% (72,2% se contarmos com Miguel Pinto Luz, n.º2 na lista de Lisboa) dos seus ministros a escrutínio directo dos eleitores – doze ministros, em 18, são cabeças de lista nos 22 círculos eleitorais (54, 5%), a que acrescem ainda dois secretários de Estado como cabeças de lista (um deles, Hernâni Dias, foi, mas já não é SE), elevando para 77,77% a presença governativa na liderança do PSD nos círculos eleitorais (14 em 22). Nem sei mesmo por que razão Luís Montenegro não levou todo o governo, a nível ministerial (mesmo todo, 100%), a sufrágio, tornando assim ainda mais claro que não se trata de eleições legislativas, mas de eleições executivas, isto é, eleições sobre si e o seu governo, sob forma de plebiscito. Algo ainda mais profundo do que o famoso “premierato” (a eleição directa do PM) da senhora Giorgia Meloni. Algo inédito na nossa democracia e talvez mesmo em todas as democracias do mundo. A prova? O Conselho de Ministros acaba de entrar directamente em campanha eleitoral no mercado do Bolhão, no Porto, sem um sobressalto digno de nota. Formalmente, nada a apontar, mas estas eleições (escolhidas por Luís Montenegro, com o acordo de Pedro Nuno Santos, que as tornou possíveis) são uma operação que visa relegitimar directamente o governo e, por implicação, a figura do próprio primeiro-ministro. E se vencer as eleições a conclusão é clara: os eleitores ter-lhe hão dito que aprovam o seu comportamento, lhe reiteram a confiança e que pode continuar com a mesma equipa e nos mesmos termos em que governou até agora. Quem são os deputados que irão representar a nação, isso tem pouca ou nenhuma importância. Um mal de que a nossa democracia representativa sofre cada vez mais.
2.
Mas, diriam os orgânicos do PSD, de qualquer modo, o argumento não pode ser exactamente este, porque só há como cabeças de lista 66,6% (ou 77,77%) do governo e não 100%. Mas, digo eu, além de ser uma gigantesca representação governativa em directo confronto eleitoral, talvez a restante percentagem não aconteça para não comprometer excessivamente a formação do próximo executivo, porque, a ser integralmente sufragado no dia 18 de Maio, este governo, em coerência, deveria ser reposto na sua forma original, fazendo, depois, e por consequência, subir ao Parlamento as outras obscuras figuras que figuram em segundo lugar e que ninguém conhece. Algo parecido a isto acontece nas eleições autárquicas, com o executivo a ser eleito directamente. Mas talvez o PM não tenha querido assumir este compromisso tão global, até porque, por exemplo, um dos membros relevantes do seu governo vai ser candidato à Câmara do Porto, Pedro Duarte. Ou porque não tenciona indicar certos ministros para o futuro governo, por exemplo, a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues (que, todavia, já disse em entrevista ao JN que gostaria de continuar) ou a da Administração Interna, Margarida Blasco, por razões bem conhecidas, ou seja, por uma prática excessivamente conflitual ou por manifesta incompetência, respectivamente. Mas, como disse, o número de ministros apresentados (12, em 18, sem contar com Pinto Luz) é mais do que suficiente para surgir como um sufrágio para a reconfirmação e a relegitimação directas do governo. E mais: de um governo já remodelado. Luís Montenegro faz, assim, uma tripla operação: a) remodela o governo em pleno processo eleitoral; b) transfere para o conjunto do governo o seu problema pessoal; e c) transforma as legislativas em eleições directas para o executivo, ou seja, um plebiscito, ou um referendo, sobre o conjunto da equipa governativa, agora remodelada. Uma operação arguta, sem dúvida, mas muito problemática à luz da matriz constitucional do nosso sistema político, para não dizer à luz da própria matriz da democracia representativa, mas em linha com a interpretação presidencial do sistema, aqui por mim evidenciada no meu último artigo. (https://joaodealmeidasantos.com/2025/04/01/artigo-196/). A democracia parlamentar, tal como está configurada na Constituição, a deslizar progressivamente para o presidencialismo e o decisionismo do primeiro-ministro. Concordarão os eleitores com este desvio à constituição e, já agora, à própria ética pública a que deve obedecer o exercício de funções públicas desta dimensão?
3.
Mas o problema não fica por aqui, pois esta evolução para o presidencialismo do primeiro-ministro, para um problemático decisionismo e para a centralidade do executivo, a ponto de desviar o sistema do seu centro axial, que é o parlamento, também tem consequências profundas sobre o sistema de partidos, em especial, sobre os chamados partidos da alternância, os que estão em condições de aceder à gestão governativa do país. O que acontece é que os primeiros-ministros, tendo a faculdade constitucional de escolher os membros do governo, adquirem, ipso facto, um poder que transborda para os respectivos partidos, dando lugar a uma autêntica e efectiva colonização do território partidário, até tendo em conta que estes partidos vivem cada vez mais do aparelho de Estado (em empregos e em finanças). E como? Enviando os “centuriões” governativos (por si livremente escolhidos e portadores de prestígio governamental) para a gestão e a representação do território partidário e dando lugar a uma autêntica colonização deste território, onde os “nativos” deixam de contar, como se vê pela formação das listas do PSD (mas não só) para as eleições ditas legislativas e, em parte também, para as câmaras municipais. “Paraquedistas” com patine governativa e com chancela presidencial (do presidente do partido e PM). O que, ao fim e ao cabo, acontece é uma imposição a duas escalas (parlamento e partido) da vontade do líder, com o consequente atrofiamento do corpo orgânico quer do parlamento quer do partido, este substituído quer pelos “centuriões” quer por agências de comunicação. Uma cabeça grande num corpo atrofiado. Algo pouco compatível com a cultura democrática e com a própria matriz da democracia representativa. Todo o complexo institucional é constituído à imagem e semelhança do líder.
4.
Este caso do PSD e do governo de Luís Montenegro é bastante exemplar neste sentido. Mas já com António Costa algo muito parecido foi acontecendo. E, todavia, no caso actual, a escolha destes ministros (e já não falo da escolha do Presidente da AR, Aguiar Branco, ou do seu líder parlamentar, Hugo Soares, que são escolhas naturais), do secretário de Estado das comunidades, José Cesário, ou do antigo secretário de Estado, Hernâni Dias, para cabeças de lista, que, como disse, se contabilizados, fariam subir de 66,66% para 77,77% a percentagem de cabeças de lista com chancela governativa, atinge uma tal dimensão que é difícil não retirar daí ilações sobre os seus efeitos na própria natureza do sistema político. Neste processo é, pois, também a natureza dos partidos que é posta em causa. A personalização extrema da política, que é uma tendência geral, está a ter efeitos que já põem em causa a própria matriz do sistema representativo e o sistema de partidos tal como os conhecemos.
5.
Esta evolução do nosso sistema político não me parece ser boa para a saúde da democracia. Em primeiro lugar, porque anula a centralidade do parlamento, ou seja, da pluralidade dos representantes da nação; em segundo lugar, porque entroniza o líder que chegou a primeiro-ministro e permite a captura integral do partido que lhe serve de suporte; em terceiro lugar, porque menoriza o território partidário, o torna integralmente dependente do Estado e do líder de turno e impede a emergência de figuras autónomas e independentes da vontade (sempre) centralizadora das lideranças. Ainda por cima reforçada com o tipo de sistema eleitoral que temos, com listas fechadas e identificadas com o símbolo do partido. Numa palavra, o partido fica reduzido a mera projecção da vontade do líder, como se está a ver neste caso, com um PSD totalmente “domesticado” e alinhado com a estratégia pessoal do seu líder, ou seja, com o seu comportamento pessoal e privado, mesmo que generalizadamente posto em causa. Impera, assim, uma linearidade exasperante em partidos que atingiram uma considerável dimensão eleitoral porque é suposto representarem uma grande diversidade de sensibilidades. Com esta mudança, a diversidade no interior do partido, mas também no próprio parlamento, passa a ser coisa do passado. E a verdade é que esta tendência é a mesma que se está manifestar com toda a exuberância na direita radical. Mas, pelos vistos, até nos partidos de centro-direita ou mesmo de centro-esquerda ela parece estar a fazer o seu caminho com grande sucesso.
6.
O que se está a passar neste momento em Portugal é uma profunda anomalia relativamente à matriz da democracia representativa e à sua matriz constitucional. Uma espécie de via paralela que está a ser seguida nas margens da constituição: o legislativo tornou-se simplesmente um sub-rogado irrelevante do executivo, tal como o próprio partido que lhe serve de suporte; as eleições adquirem uma natureza de tipo plebiscitário e estão inteiramente subordinadas à vontade do líder e chefe do governo; e, finalmente, a ideia de representação política parece estar a ser substituída por um decisionismo exacerbado, centrado no primeiro-ministro, que confisca as competências do legislativo e do partido maioritário e os transforma em meros instrumentos de combate numa guerra de generais por ele nomeados. O melhor espelho, muito deformado, de tudo isto é o que está a acontecer, neste momento, nos Estados Unidos, com a presidência de Donald Trump. JAS@04-2025
