Artigo

 POLÍTICA E JUSTIÇA EM DEMOCRACIA

A Propósito do Caso Francês

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

ESTA RELAÇÃO É MUITO DEBATIDA, problemática e delicada. E é interessante comparar as fórmulas “Estado democrático” e “Estado de direito”, ao que parece, segundo Pierre Rosanvallon, postas em oposição por Marine Le Pen, a propósito do seu caso com a justiça francesa, e como se fossem antitéticas (Rosanvallon, em entrevista a Anne Chemin, “Le Monde”, 12.04.2025). Como se o “Estado democrático” fosse concebível sem ser ao mesmo tempo um “Estado de direito”. Não, não me parece possível. A designação “Estado de direito” não é suficiente, ela deve estar sempre associada a democracia representativa. Mas esta também não será suficiente se não tiver associada a designação “Estado de direito”. O “Estado democrático” e o “Estado de direito” estão necessariamente ligados. Mas o “Estado de direito” pode existir sem democracia? Se puder, o problema residirá, então, em saber: “que direito”? O do autocrata?  Tal como o mercado: este também poderá existir sem democracia, não parecendo, aqui, ser necessário perguntar “que mercado”? O que não pode haver é uma democracia representativa sem “Estado de direito” e sem mercado, sem império da lei, igual para todos, e sem plena liberdade económica. Parece não haver dúvidas de maior sobre isto.

1.

Mais interessante é discutir os dois tipos de legitimidade que estão associados ao Estado de direito democrático: a “legitimidade substancial” e a “legitimidade funcional”, para usar, relativamente à política de origem electiva e à justiça, a distinção proposta por Pierre Rosanvallon, que, entretanto, as equipara. A primeira decorreria do processo eleitoral concorrencial e do chamado “povo-aritmético”, o que se exprime através do princípio da maioria num parlamento e que conduz à formação de um governo; a segunda decorreria do “povo-comunidade” e ocorreria por nomeação para a constituição de guardiões dos direitos do indivíduo, os juízes, e para desempenhar uma função estruturalmente democrática, tendo por instrumento a justiça e como fim último a garantia dos princípios fundamentais e os termos do contrato social. Esta, de resto, corresponderia, segundo Rosanvallon, a uma temporalidade longa em contraposição aos cada vez mais curtos ciclos eleitorais da democracia política. Portanto, duas legitimidades diferentes, mas equivalentes em dignidade, correspondendo a dois tipos diferentes de soberania popular: a do “povo-aritmético” e a do “povo-comunidade”. Mas esta é a posição de Rosanvallon.

2.

Esta concepção parece contradizer-se nos próprios termos, porquanto as duas legitimidades não são, de facto, iguais, não têm o mesmo peso, não se equivalem e, sobretudo, não têm fundamentos diferentes. A ideia de um “povo-comunidade”, existindo paralelamente ao povo político e sendo fundamento do “Estado de direito”, não me parece que tenha fundamento defensável, logo porque o “Estado de direito” exprime a organização que o “Estado democrático” determina. Na verdade, a “legitimidade substancial” confere aos seus agentes o poder de determinar a matéria sobre a qual os agentes da “legitimidade funcional” actuam, enquanto o contrário não é possível, nem se verifica. Precisamente porque é funcional relativamente ao sistema político de origem electiva. Ou seja, esta tem de ser obrigatoriamente funcional àquela, à primeira, não se verificando o contrário, pois aquela é de natureza ontológica porque remete directamente para a soberania popular, para um povo, não para dois. E isto acontece em níveis diferentes: a primeira legitimidade acontece, primeiro, no plano constitucional e, depois, no plano legislativo. Sobre os dois planos os agentes da primeira legitimidade podem agir, modificando os seus termos. A “legitimidade funcional” também ocorre nestes dois planos, mas somente para garantir a congruência entre o plano constitucional e o plano legislativo (tribunal constitucional) e entre o plano legal e o quadro em que ocorrem as acções dos cidadãos (ministério público e tribunais). Trata-se, pois, de uma legitimidade técnica, somente técnica e subsidiária da primeira. Procurar encontrar um fundamento ontológico diferente para ela é, no meu entendimento, errado e desviante, porque o “povo-comunidade”, para efeitos políticos e de aplicação da lei é subsumível no “povo-aritmético”. É este que conta, é este o titular da soberania, para além do próprio princípio da maioria, uma vez que no parlamento estão presentes as diversas sensibilidades políticas presentes na sociedade e não somente a maioria. O parlamento é maior do que a maioria que nele se constitui para dar origem a um governo. Sim, nele não está presente o povo abstencionista nem o povo menor de idade, poder-se-ia contra-argumentar. Mas não é isso que o invalida porque a própria abstenção é um exercício de liberdade do “povo- aritmético” e a menoridade encontra-se representada na respectiva tutela (responsabilidade parental). Portanto, se a justiça é efectivamente o garante dos princípios, valores e conteúdo do contrato social através do seu desempenho funcional, daqui não pode, todavia, resultar a ideia de que, tendo como fundamento um suposto, e fictício, “povo-comunidade”, ela adquira um estatuto igual, em termos de legitimidade, ao das instituições de origem electiva. Tal como a justiça dispõe de mecanismos internos para corrigir imputações erradas, também o sistema político electivo tem mecanismos internos para garantir o cumprimento das suas deliberações e decisões e corrigir os desvios – e desses mecanismos faz parte a própria justiça. Ecco. A justiça é um mecanismo interno do próprio sistema político, enquanto garante da sua autoridade e com poderes sancionatórios por aquele sistema previstos e decididos. Mas o que me parece que resulta do raciocínio de Rosanvallon é que estamos perante duas realidades autónomas, equivalentes e paralelas, dois subsistemas equivalentes no interior de um mesmo sistema social. Mas, não, não é assim, como ele próprio reconhece, ao defini-los, um, como substancial e, o outro, como funcional. Na verdade, um tem uma dimensão ontológica enquanto o outro tem uma dimensão funcional, técnica, subordinada. Na hierarquia dos poderes o legislativo é o primeiro, porque é ele que, por um lado, representa a soberania popular, e, por outro, lhe dá expressão e forma concreta através precisamente do ordenamento jurídico. Este facto deveria tornar clara a ideia da separação de poderes, que não equivale, de facto, a igualdade de poderes. E esta lógica deveria servir para clarificar as relações do poder político de origem electiva, substantivo, com o poder judicial, de natureza funcional, em particular na relação com o ministério público. A autonomia do ministério público e a independência dos juízes são tão-só justificáveis como necessidade de garantir plena autonomia técnica, rigor, neutralidade e imparcialidade na imputação dos factos ao direito e suas consequências.  Nada mais.

3.

Isso quer dizer que se verifica uma autonomia funcional (na linha da separação dos poderes) que torna possível um uso técnico da lei para corrigir disfuncionalidades ocorrentes e repor o funcionamento do sistema de acordo com a dupla deliberação do poder político de origem electiva, ou seja, a constitucional e a legal. A “legitimidade funcional” consiste nisso. Sendo proprietário e condutor de um automóvel, quando ele avaria sou obrigado a entregá-lo à competência de um técnico de automóveis para que o reponha em funcionamento de acordo com os padrões mecânicos estabelecidos pela “marca” para que o automóvel funcione. Entretanto continuo proprietário e condutor. A justiça, onde a “marca” é a constituição e a lei, funciona do mesmo modo. E tal como há bons e maus mecânicos, também há bons e maus magistrados ou juízes. Como em tudo na vida e, designadamente, na política.

4.

Se formos ver  as soluções que Rosanvallon propõe para o bom funcionamento de uma sociedade democrática, encontramos a reinvenção dos processos democráticos, para além do estrito processo de escolha de quem governa, através do accionamento de duas importantes “funcionalidades”: a deliberativa e a de vigilância sobre o funcionamento do sistema. A primeira implica uma democratização da deliberação política, sob o pressuposto de que a sociedade não é redutível ao seu sistema político formal (às instituições políticas propriamente ditas), porque ela é mais, muito mais, do que o “povo- aritmético” e do que os ciclos em que o cidadão é chamado a deliberar através do voto. Só neste sentido Rosanvallon poderia falar de “povo-comunidade”, algo que não é subsumível integralmente no sistema político nem redutível ao “povo-aritmético”. Isto é verdade e exige que o sistema político metabolize os fluxos da sociedade civil e lhes dê expressão política, legislativa e executiva, designadamente através de procedimentos que tornem isso possível e que não se esgotam nos ciclos eleitorais formais. É isso que acontece na chamada política deliberativa e na correspondente democracia deliberativa (veja-se, por exemplo, Habermas em Faktizitaet und Geltung, de 1992, cap.s 7 e 8). Ou seja, a política que transborda para as margens do sistema político formal e inunda “campos e sementeiras”, fertilizando-os. Glosando um antigo Presidente da República, há, de facto, mais vida para além do subsistema político formal, é verdade, mas mesmo essa vida é regulada por este subsistema. E sobretudo o sistema de justiça, que Rosanvallon parece querer, erradamente, separar, logo na raiz (a soberania do “povo-comunidade” contraposta à do “povo-aritmético”), do sistema político, apesar de fazer intrisecamente parte dele. E, entretanto, não podemos esquecer que, desde há muito, tem vindo a crescer um fenómeno chamado “lawfare”, ou seja, um uso ilegítimo das imensas prerrogativas e poderes do subsistema judicial para efeitos políticos, dando origem a uma indesejável inversão de factores e a uma crise da democracia representativa, tal como também tem vindo a crescer, simetricamente, um uso indevido do poder político para limitar e condicionar a autonomia técnica da justiça. Ambos os casos são bem conhecidos e abundantes tal como os seus efeitos deletérios sobre o sistema democrático.

5.

Como em tudo na vida, o que é necessário é uma boa e imparcial interpretação do sistema social com vista a um seu bom e justo funcionamento, algo que parece já estar fora de modo, tendo vindo a acentuar-se, agora de forma quase pornográfica, uma identificação perniciosa da política com o puro exercício do poder, extremamente personalizado, sem qualquer preocupação com a justiça, a ética e até com a estética, de tão grosseiras serem as deformações do sistema, quer no plano da política quer no plano da justiça. A deformação do sistema político implicará sempre a correspondente deformação da justiça, mas a transformação da justiça em poder autopoiético e corporativo (e até assumido como tal pelos próprios agentes da política – “à política o que é da política, à  justiça o que é da justiça” – como se a justiça fosse exterior à política, à gestão da polis, da causa pública) pode também ela provocar danos irreversíveis na própria democracia representativa. JAS@04-2025

NOTA SOBRE A JÁ FAMOSA "AVERIGUAÇÃO PREVENTIVA" 
SOBRE PEDRO NUNO SANTOS

A PGR acaba de entrar na campanha eleitoral. Já não bastava a senhora ex-PGR Lucília Gago (e o PR, com quem ela estava quando o famoso comunicado foi divulgado)  ter dado origem à queda de um governo de maioria absoluta, sem que, passados 17 meses, se saiba da consistência desse inquérito-fantasma… que, agora, o seu sucessor, Amadeu Guerra, decide, com base numa carta anónima e sobre um assunto mais que requentado e explicado, entrar em campanha eleitoral com a divulgação de uma “averiguação preventiva” sobre Pedro Nuno Santos, sugerindo que, afinal, também o líder do PS tem um problema equivalente ao de Luís Montenegro. Não tarda que a empresa do pai entre (mas parece que já entrou) na dança das denúncias e sobre ela seja aberta mais uma “averiguação preventiva”. De “averiguação preventiva” em “averiguação preventiva” até ao desfecho final das eleições de 18 de Maio. A divulgação dessa estranha figura da “averiguação preventiva” (que não é, tanto quanto sei, uma figura que conste da lei), não deveria acontecer, pois é um mero procedimento administrativo interno que não tem de ser divulgado (mas que, pelos vistos, foi “bufado” ao jornalista de serviço no “Observador”, Luís Rosa). Fica, assim, reposta, por obra da PGR, a igualdade de tratamento entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos. Bastou uma carta anónima (mas até um procurador pode escrever uma carta anónima a si próprio para, depois, ele próprio abrir uma “averiguação preventiva” sobre o assunto) para informar o distraído eleitor, a um mês das eleições legislativas, de que, afinal, estes políticos são todos iguais. Bom trabalho.

1.

Bom trabalho, de facto, o deste Ministério Público, liderado por um PGR em situação de manifesta ilegalidade, o que já deveria ter levado à cessação de funções.  À data da nomeação pelo PR ainda era legal a nomeação, mas, agora, que já tem 70 anos, a permanência no cargo é claramente ilegal. Diz o Estatuto do Ministério Público (Lei 68/2019, de 27 de Agosto), no seu Artigo 13: “São magistrados do Ministério Público: a) O  Procurador-Geral da República”…” ; e no Artigo 193: “Os magistrados do Ministério Público cessam funções: a) No dia em que completem 70 anos de idade;”. O PGR encontra-se, assim, em situação ilegal porque já tem 70 anos de idade (nasceu em Tábua, a 9 de Janeiro de 1955). Sendo missão fundamental do Ministério Público garantir a legalidade no nosso país por que razão ainda não foi suscitada, designadamente pelo próprio Ministério Público, esta questão legal relativamente a si próprio, ao seu máximo representante? E por que razão ninguém ainda a suscitou? Na verdade, a questão é muito relevante não só porque é ele, e os tribunais, o garante da legalidade, mas também pel seu poder de reiterada interferência nos processos políticos.

2.

Tudo isto faz sentido quando se vê que o Ministério Pública anda, de facto, a interferir de forma pesada nos processos políticos. Foi assim com António Costa, com as consequências gravosas que teve, e é assim, agora, a um mês das eleições, com Pedro Nuno Santos. Quem informou o jornalista do “Observador” deste mero acto administrativo interno da Procuradoria e, mesmo assim, sobre matéria mais que requentada e que nada tem a ver com as questões suscitadas pelo conhecido e publicamente comprovado comportamento de Luís Montenegro? A PGR não pode ser transformada, como está a ser, num agente político que põe e dispõe do destino das instituições políticas de origem electiva, violando grosseiramente a separação dos poderes ou até a própria legalidade. Lawfare à portuguesa. JAS@17.04.2025

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