Artigo

“NOVOS FRAGMENTOS” (XIV)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“A Montanha Encantada”, JAS 2022 (94×119, papel de algodão, 310gr, e verniz Hahnemuehle, em mold. de madeira e Artglass AR70)

O RAPTO DA MUSA

É a intensidade com que encontros e desencontros acontecem na vida do poeta que é decisiva e (poeticamente) exigente. A intensidade funciona como a velocidade: esses momentos ficam registados (quase) sem a mediação da consciência. A velocidade cega, como julgo ter dito Paul Virilio, no seu livro “L’Art du Moteur” (1993).  É como a luz de um repentino clarão. Encandeia e deixamos de ver o que se está a passar. E depois… “La nuit”. diria Baudelaire. Entra directamente na zona de penumbra da consciência, na zona escura.  E por lá fica registado, sobrevivendo ao tempo e emitindo sinais intermitentemente, até que chegue o momento de o reviver… em poesia, em arte. A fita da memória (na sua zona mais intensa e escura) é como a “moviola” ou a mesa de montagem de um filme, onde o realizador é o poeta. Só ele pode entrar nessa zona de penumbra e ver com uma certa nitidez e exactidão. Porque possui holofotes e sensores especiais, que detectam  sinais imperceptíveis à sensibilidade comum. Para mim, cada poema é um filme, uma curta-metragem. Exactamente: uma curta-metragem. E também é por isso que precisa de sinestesia, com a pintura. Assim, entra também em acção o olhar, juntamente com o ouvido (para a toada, a música).  Um filme. No poema “Tempo” acontece uma espécie de rapto da musa  (“Musa”, é precisamente a pintura ilustrativa) pelo tempo: a fugacidade dos encontros e o desespero do poeta que vê o tempo levar-lhe a musa quase antes de se encontrar com ela. O tempo é implacável. E é veloz. Tanto mais quanto mais intenso for o acontecer. E o desejo. E é disso que ele se lamenta. O título até poderia ser “O Rapto da Musa”… pelo tempo. Ou “O Desejo Traído”.

“ESSE EST PERCIPI”

Não vou ao exagero do bispo Berkeley, que disse que “ser é ser percebido” (“esse est percipi”), mas num certo plano cognitivo mais elaborado o real é mediado pela imaginação. Por exemplo, o real dos artistas. E há ilusões de óptica: duas linhas paralelas lá ao fundo convergem (as linhas do caminho de ferro, por exemplo). No deserto também. E a vida, às vezes, é um deserto. Por isso, a realidade está ali para ser interpretada de acordo com a disposição anímica do observador. E há os pessimistas, que vêem tudo a preto, e os optimistas, que põem luz em tudo o que vêem. A subjectividade faz parte de nós e tem um enorme papel no modo como nos relacionamos com a realidade. Se o real está lá fora, rugoso e opaco, também está cá dentro de nós, sob forma de representação, mediada pelo olhar, dos olhos e da alma. Dar forma a essa representação oculta e na penumbra na alma é a missão do poeta.

KAIRÓS

Com a ajuda da Musa, que avisou o leitor da chegada de um forte estímulo poético dominical, ele preparou-se para a chegada do poema. Talvez por ser primavera, a estação das musas. Tempo de polinização. Claro, isso acontece sempre aos que a sentem por dentro, a poesia. E aos que frequentam jardins. As musas são amigas e confidentes deles. Também Hermes anda por ali. Por isso, os cinco sentidos ficam sempre alerta. E, desta vez, com o poema “Tempo”, até propus duas imagens da musa, para melhor se visualizar o poema. Para lhe aceder com o olhar. Duas primaveras. O poema que se oferece duplamente ao olhar. Música tem-na que baste. Foi aspecto que, neste poema, o poeta cuidou com particular atenção. Mas não sei por que razão. Perdê-la, a musa? Sim, parece ser esse o drama do poeta, porque o tempo é raptor: leva-lhe a musa quase antes de ela chegar, de se cruzar com ela. Os encontros são mais desencontros do que oportunidades.  Fugacidade ao extremo. Um autêntico e permanente rapto pelo tempo. Ele sente-a assim: perdida quase antes de encontrada. A fugacidade do instante, do “tempo oportuno”. Kairós. O poder destruidor da velocidade e do tempo. Depois, a recomposição. Mas talvez seja impressão sua, do poeta: de tão intenso ser o encontro com a musa até parece que nunca aconteceu. Porque não foi registado na consciência. Ficou por ali perdido com tanta beleza. Vivido, sim, mas, de tão intenso, não registado na consciência. Mas percebe-se que aconteceu. É como ter um sentimento permanente de perda. Sente muito a perda quem muito quer o que sabe que vai logo perder. Mas o absoluto só se pode dar no instante. E o instante não é tempo, porque não é mensurável. Esse instante que é absoluto não pode ser captado, registado, retido. Mas a poesia atinge directamente a zona de penumbra da consciência, a zona escura, que só pode ser acedida com holofotes e sensores especiais. Também se considera que se chega lá através da hipnose. E, claro, através da poesia, cujo tempo é mesmo esse: o da “durée” (para usar o conceito do H. Bergson). O tempo kairótico. Os gregos também tinham a palavra “eksaíphnês”. O poeta anda por aqui. Vive assim a vida (digo eu, porque parece) e isso cria-lhe problemas existenciais que tem de verter (solucionar) em poesia. Tem uma vasta zona de penumbra na consciência e isso obriga-o a um permanente exercício de descodificação, trazendo à zona iluminada da consciência o que por lá ficara registado na zona escura, fruto de encontros e desencontros intensos e nunca concluídos.

MISTÉRIO

Efémero é, e não é, o tempo, porque o que o poeta procura é tomar eterno o que por natureza é efémero. O Goethe disse isso. Outras musas? Não, porque todas elas são rostos da mesma. O poeta é poeta porque uma o enfeitiçou. Estremeceu e ficou enfeitiçado. Mas, depois, na sua imagem transparente ele vê tantas outras iguais a ela… Talvez seja isto. Musas não lhe faltam… mas. ao que parece. são sempre a mesma. Não sei, porque a poesia é mistério em movimento. E o feitiço é fonte de mistério. Ou é o mistério que tem o poder de enfeitiçar? Talvez seja mesmo isso.

VOAR SOBRE O SILÊNCIO

A propósito do poema “Voar” (ilustrado pela pintura “Pássaro de Fogo”) – é uma experiência única, voar sobre o silêncio. Há uma sensação de paz, lá nas alturas. Mas é preciso, primeiro, ouvi-lo com a alma. Dizia Dionísio Longino, no Tratado do Sublime: “come il silenzio d’Ajace, nel Canto de’ Morti d’ Omero, egli è maestoso e più sublime d’ogni orazione” (Perì Hypsous, Secção IX, “Del Pensare”, na tradução italiana de Anton Gori, 1737, Firenze: Gaetano Albizzini ).  O silêncio é mais majestoso e sublime do que qualquer oratória.  E tem asas, que são as palavras. E tem eco.  Sim, ouvir o silêncio, o eco do silêncio, com a alma, mas, depois, é preciso ter asas e energia propulsiva para a descolagem. Eu creio que só os poetas conseguem voar sobre o silêncio, porque são eles os seus verdadeiros intérpretes, possuem combustível anímico para descolar e têm essas asas especiais que são as palavras, como dizia o Neruda. Sobem sobre as asas do silêncio e voam. Só lá em cima podem ouvir o seu eco. Eu gosto muito de voar sobre o silêncio. Gastam-se muitas energias e até dói, mas, no fim, é muito compensador. E foi por isso que pintei um “Pássaro de Fogo”. O voo acontece sobretudo quando o som do silêncio, o seu eco, é mais intenso. Mas sempre em surdina. Ouve-se, sim, mas com a alma.

PÁSSARO DE FOGO

Um voo até à janela da pessoa amada, ainda que não se saiba bem onde fica essa janela. Mas o vento sabe. E o íntimo é preservado, resguardado, sagrado. O “Pássaro de Fogo” não entra, apenas derrama as cores que leva consigo no parapeito da janela e voa de volta. E, assim, o mistério permanece, pois nem sequer o pássaro libertador (da dor do poeta) perturba a intimidade da musa. Ela permanece entrincheirada no passado, mas o poeta ilumina-a com as cores da sua arte e do futuro. Sim, o poema é mesmo um cântico. Que poderia ele fazer mais, marcado que está pelo destino? Uma ponte sobre as margens do silêncio é o máximo que pode conseguir, graças ao “Pássaro de Fogo”. O poeta (Álvaro de Campos) disse que ia atirar uma bomba ao destino.  Bem o compreendo. E eu gosto de lhe atirar poemas, que, afinal, são bombas íntimas prontas a deflagrar na alma de quem os lê, de quem os sente.

ÁGUIAS REAIS

Eu gosto mesmo de voar, tendo as palavras como asas. No voo posso observar os vários caminhos que existem no vale da nossa vida e escolher o que fizer mais sentido. Os olhos dos poetas são como os das águias reais porque vêem, ao longe, o que outros não conseguem ver. E os poemas são como voos picados para centrar algo que queremos para nós. Depois levantamos voo levando a “presa” connosco. A poesia está sempre associada às alturas – o Monte Parnaso. O meu chama-se Estrela e por cá encontramos, sim, águias reais. Tenho-as (duas) num quadro meu chamado “A Montanha Encantada”, inspirado no Maciço Central.

PARABÉNS

Parabéns à jovem musa que sempre inspira o poeta, disse um habitual leitor da minha poesia. De facto, respondi, sem ela não haveria poeta nem pintor. E a ilustração do poema é o pássaro da mitologia russa que tanto tem inspirado as artes, a música (Stravinsky, por exemplo) e o bailado. É um símbolo da liberdade, contra as garras do maléfico feiticeiro Katshey (que ainda anda por lá). JAS@04-2025

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