REFLEXÕES SOBRE A CONJUNTURA
Em Tempo de Eleições
João de Almeida Santos
SUMÁRIO. 1-2. Sobre a eleição do Papa Leão XIV e a reacção americana. 3-4. O caso de Alternative fuer Deutschland e a reacção americana. 5-10. As eleições legislativas de 18 de Maio de 2025.
1.
DOU SEGUIMENTO ao que escrevi no último Artigo sobre a eleição do novo Papa, que se viria a verificar no dia 8 de Maio, chamando a atenção para o que se iria passar: “A eleição do novo Papa, que começa hoje, com os ortodoxos em acção para evitarem a continuidade da linha do Papa Francisco”.
O que parece ter acontecido foi uma derrota em toda a linha dos ortodoxos, com a eleição de Leão XIV. Se o nome significar continuidade com o que representou Leão XIII – e significa, pelo que o Papa, entretanto, disse – isso representará uma grande atenção às “coisas novas” que estão a acontecer no nosso tempo, sobretudo no plano social, com a revolução pós-industrial e digital. A “Rerum Novarum”, de 1891, que pretendeu responder à fase da revolução industrial, é ainda hoje a bíblia da doutrina social da Igreja Católica e ela aconteceu (em 1891) poucos anos depois de Bismarck ter, nos anos oitenta do século XIX, inaugurado o chamado Estado Social. Mas este não será certamente um Papa ao estilo de Francisco. Isso pôde verificar-se logo na sua presença na “Loggia” central da Basílica de San Pedro, com os símbolos que sempre caracterizaram a figura papal na sua primeira aparição pública e que Francisco abandonara: a “mozzetta” vermelha, a estola pontifícia e o crucifixo em ouro. Ainda não se sabe se viverá no Palácio Apostólico (residência dos Papas desde 1870, com a excepção de Francisco), que deverá entrar em obras de reestruturação. Aguarda-se a decisão de Leão XIV para que se complete a simbologia ligada à tradicional figura do Papa. Mas o que já se viu indicia uma reposição (embora parcial, pois parece não integrar os clássicos sapatos papais) da simbologia abandonada teatralmente por Francisco, o que na altura (em 2013) deu lugar a fortes polémicas em Itália.
2.
Entretanto, o que se sabe é que os ultras do movimento MAGA, expressando, também aqui, o seu radicalismo, não ficaram satisfeitos com a eleição deste Papa, apesar de ser americano. Por exemplo, Steve Bannon ou Laura Loomer. Diz esta: “É anti-Trump, anti-MAGA, um woke a favor de fronteiras abertas. É um convicto marxista como o Papa Francesco. Os católicos não têm nada de bom a esperar: uma outra marioneta marxista no Vaticano”. Esta senhora, influencer, é muito chegada a Trump e uma ultra do MAGA. Está tudo dito. The show must go on.
3.
Novos desenvolvimentos sobre a declaração de Alternative fuer Deutschland (AfD) como movimento “extremista de direita”, com aquele partido a recorrer judicialmente, junto do Tribunal Administrativo de Colónia, contra o Departamento Alemão para a Defesa da Constituição (BfV) e este Departamento a suspender provisoriamente a classificação até que termine o processo judicial em curso. Lembre-se que esta classificação pode levar à suspensão do financiamento público do partido e até à sua ilegalização. Entretanto, as autoridades políticas máximas dos Estados Unidos, Trump e Marco Rubio, além do incontornável Musk, já declararam, pela voz de Rubio, a Alemanha como uma “tirania disfarçada” e não como uma democracia. Já não o fazem por menos. A declaração foi de Rubio, Secretário de Estado: “Germany just gave its spy agency new powers to surveil the opposition. That’s not democracy – it’s tyranny in disguise”. Clara manifestação de apoio à AfD, que, entretanto, já mereceu uma resposta do MNE alemão: “This is democracy. This decision is the result of a thorough & independent investigation to protect our Constitution & the rule of law. It is independent courts that will have the final say. We have learnt from our history that rightwing extremism needs to be stopped”. Pelos vistos, a trupe da Trump nada aprendeu com a história.
4.
Preocupante é que os protagonistas institucionais do maior ataque até hoje desferido contra a democracia americana venham fazer declarações públicas deste jaez, sem pingo de vergonha. Acresce a estranha declaração de Trump sobre a Constituição americana, não saber se tem o dever de a respeitar, esquecendo-se do juramento que fez na tomada de posse como Presidente dos Estados Unidos da América, ou seja, que: “I do solemny swear that I will faithfully execute the Office of President of the United States, and will to the best of my Ability, preserve, protect and defend the Constitution of the United States”.
5.
Por cá, entre nós, há um aspecto importante que merece ser sublinhado: já enjoa o que se vê e se ouve nas televisões, a um ponto tal que julgo ser acertado dizer que se tornaram verdadeiramente tóxicas. Sim, tóxicas e fontes de desinformação. Uma verdadeira intoxicação nacional. Elas tornaram-se o espaço decisivo onde está a decorrer a campanha eleitoral, com montes de intérpretes (os famosos comentadores), sem qualificação que se lhes conheça, a explicarem aos telespectadores o significado do que estes também vêem, sabem e viram. As televisões já não são espaços de informação, mas espaços de opinião mal-amanhada. Os programas dos partidos são ilegíveis, pela montanha de páginas que tudo dizem e nada explicam. O conjunto dos programas dos partidos com assento parlamentar, a saber, PSD/CDS (AD), PS, Chega, IL, Livre, BE, PCP, PAN, corresponde, nada mais nada menos, a 1452 páginas. Repito, por extenso: mil quatrocentas e cinquenta e duas páginas. Algum eleitor lerá, como, em tese, deveria, dada a importância da decisão eleitoral, estas páginas? O que sobra, pois, são fórmulas publicitárias e, como disse, os “pistoleiros” (sobretudo) televisivos de serviço a tentarem convencer o eleitor de que a verdade está do seu lado e das forças políticas e interesses que representam. Nem vale a pena dar exemplos, de tão evidente e amplo ser este fenómeno. Mas a verdade é que, em tese, os eleitores deveriam conhecer os programas dos partidos, conhecer os candidatos que aspiram a ser eleitos e os estatutos dos partidos que se apresentam a eleições e nos quais se vota. Todos, todos, todos, para uma decisão reflectida e argumentada. Mas, assim, estaríamos quase ao nível de um pequeno curso profissional, tendo em consideração a dimensão dos documentos (1452 páginas só para os programas dos partidos com assento parlamentar) e do trabalho de investigação sobre os candidatos (e não só sobre os líderes). Na prática, nada disto acontece, mas tenho a certeza de que os “comentadores” leram tudo. O que, entretanto, sobra, para o vulgo, ou seja, para todos nós, são vagas impressões, o impacto da propaganda e um impreciso sentimento de pertença. A informação sobre o que está em causa é o que menos importa. A consolação que nos resta é a de que sempre temos quem se informe por nós e nos instrua acerca da decisão que todos devemos tomar. Alguém duvida de que Ricardo Costa, Bernardo Ferrão ou a senhora Ângela Silva leram todos os programas, todos os estatutos e as biografias de, pelo menos, 230 dos inúmeros candidatos? Eu não. Amen.
6.
Só o Bloco de Esquerda apresentou um Manifesto eleitoral de dimensão reduzida: dezasseis páginas (mas não sei se tem um programa eleitoral com 200 ou 300 páginas). Portanto, um documento acessível e legível. Fui lê-lo e o que vi? 1) Habitação – resolução administrativa de um grave problema económico estrutural; 2) Trabalho – trabalhar menos e ganhar mais, antecipação da idade de reforma e, se possível, acabar com os turnos nocturnos (visto que representam uma inversão do ciclo natural da vida) ou remunerá-los e regulamentá-los melhor; semana de trabalho de 4 dias, salário mínimo de 1000 euros (já em 2026) e reforma aos 40 anos completos de contribuições; 3) Riqueza – acabar com os super-ricos e distribuir a riqueza por todos; 4) Impostos – imposto sobre as grandes fortunas (acima de 3 milhões de euros) e imposição de um leque salarial; 5) Público versus Privado – privilegiar o público contra o privado (hospitais, TAP, CP); fim das privatizações e da exploração mineira rejeitada pelas populações; 6) Energia – transição ambiental até 2030, renacionalizar as empresas privatizadas, transportes públicos gratuitos em todo o país, travar a exploração extractivista, as indústrias poluentes e reflorestar o país; 7) Contra a extrema-direita – pelos direitos das mulheres e das pessoas com deficiência e acesso ao aborto seguro; 8) Imigração – contra o racismo estrutural (um saborzinho a woke); 9) Serviço Nacional de Cuidados – para protecção das crianças, idosos e pessoas com deficiência; 10) Digital: segurança e protecção contra o cyberbulling das grandes plataformas digitais e serviços públicos digitais; 11) Internacional – contra a Rússia, Israel e USA, contra o rearmamento europeu à custa do Estado Social, a favor da Palestina e do Saara ocidental, devendo a UE aceitar a soberania dos seus Estados e organizar-se militarmente fora da NATO e do controlo americano. No essencial é isto. E li e escrevi tudo isto em cerca de uma hora e vinte e cinco minutos.
7.
Ao menos, o Bloco diz claramente ao que vem e de forma directa, simples e acessível. Há ali propostas partilháveis, mas a filosofia de fundo não o é, pelo seu radicalismo, irrealismo e impraticabilidade. Por exemplo, não me parecem possíveis transportes públicos nacionais gratuitos, semana de 4 dias (mas o governo do PS andou a estudar isto), resolver o problema da habitação por via administrativa e impositiva. Por exemplo, a proposta de bloquear administrativamente as rendas corresponderia a uma contracção do mercado de arrendamento cuja expansão parece ser, no meu entendimento, a solução para o problema da habitação (preço para venda das casas e rendas). Mas o que quero sublinhar (sem discutir o programa, com o qual não concordo) é que se esta dimensão do programa é aceitável, seria também desejável evidenciar o “princípio activo” de cada solução para os principais problemas do país, a respectiva causa e a correspondente solução, sem aumentar a dimensão do documento. Só escreve muito quem não tem clareza de análise. Mas, repito, o princípio está certo, embora o conteúdo não seja aceitável na sua maior parte nem explicado no essencial, no que interessa. O manifesto também é muito elucidativo pelo que não diz. Mas esse é outro assunto.
8.
Em termos gerais, é provável que o resultado destas eleições não altere significativamente a situação que temos neste momento. E, se assim for, haverá que perguntar o seguinte: por que razão fomos para eleições, se isso já era previsível, dada a progressiva fragmentação do sistema de partidos? Fomos para eleições para branquear o comportamento de Luís Montenegro (solução PSD)? Ou fomos para eleições para punir Montenegro (solução PS)? É que a causa das eleições foi exactamente o comportamento de Luís Montenegro, tendo, todavia, sido possível evitá-las através da abstenção do PS. Na verdade, vamos para eleições legislativas como quem vai para um plebiscito travestido: na causa está inscrita a consequência (que, neste caso, é incomensuravelmente maior).
9.
Se o resultado for a vitória da AD, então esteve mal Pedro Nuno Santos ao fazer a vontade a LM e ao não se abster para que não houvesse eleições e para que fosse apurado (por uma CPI) tudo o que houvesse a apurar? Se, pelo contrário, o PS ganhar as eleições e conseguir formar governo, então elas teriam sido benéficas porque teriam correspondido à vontade de os eleitores afastarem LM da chefia do governo? Sempre de um plebiscito se trata, qualquer que seja o resultado. Mas eu creio que há uma gigantesca desproporção entre a causa que motivou as eleições e a sua consequência, porque o comportamento de uma pessoa concreta nunca deveria ser causa de um processo desta dimensão: decidir quem irá governar o país (apesar da cada vez maior hiperpersonalização do sistema político). Disse-o em relação ao abandono de António Costa e digo-o agora. O PR, o Ministério Público, o PSD, o próprio e a oposição tudo deveriam ter feito para confinar o processo à pessoa de LM e agir em conformidade. Retirá-lo ou não de cena. E isso poderia ter sido feito através de uma CPI. O país é maior do que LM ou do que PNS e ao terem decidido chamá-lo a votos em razão de um comportamento individual deram um grave sinal de desvio daquilo que um país deve sempre preservar – a robustez e a centralidade das instituições em face da fragilidade e da precariedade dos seus intérpretes. O PR esteve mal ao não nomear um outro PM quando a confiança foi negada a este, tendo em consideração a causa da recusa de confiança pelo Parlamento. E o PSD também. As eleições legislativas não podem ser transformadas em plebiscito sobre uma pessoa, seja ela quem for. De resto, a CPI, ao tornar mais claro e fundamentado aquilo que já se sabe, iria certamente obrigar o próprio Ministério Público a investigar o caso. Acresce ainda que, chegados aqui, um qualquer partido político poderia e deveria perguntar ao Presidente da República por que razão mantém ilegalmente em funções o actual PGR, escolhido precisamente por Montenegro (veja-se a Lei 68/2019, de 27.08, os art.s 13 e 193, que não deixam margem para dúvidas). Tudo em nome da sanidade do nosso sistema político. E os plebiscitos são realmente de má memória.
10.
Na verdade, o que teremos no próximo domingo é um teste civilizacional e de maturidade democrática ao nosso país. Já que foram chamados a isso, saberemos se os portugueses aprovam o comportamento de um primeiro-ministro que continua a sua actividade de lobbing remunerado, sendo primeiro-ministro, abrindo, assim, as portas a um futuro onde vale tudo, onde a política é o canal aberto, seguro e legítimo para facturar usando a rede de influências construída na política e com os cargos institucionais entretanto desempenhados. Se a resposta for positiva, depois disso, quando se falar de corrupção, a única reacção legítima será a de uma sonora e resgatadora gargalhada. JAS@05-2025

