A DERROCADA
João de Almeida Santos
PARA O PS, O RESULTADO DESTAS ELEIÇÕES só poderia ser este: a demissão de Pedro Nuno Santos (PNS). Cometeu o erro de, em nome da sua própria coerência, fazer o que Luís Montenegro (LM), seu adversário, queria: branquear com eleições o seu comportamento. E, de facto, branqueou e até aumentou em nove o número de mandatos (ainda não se conhece o destino dos 4 mandatos da emigração). O que até nem é grande coisa, se considerarmos que este resultado é inferior, em cerca de 2,5 pontos percentuais, à média geral dos resultados obtidos pelo PSD desde o 25 de Abril, ou seja, em 17 eleições. Mas serviu plenamente o objectivo de LM. E PNS acabou por pagar o preço final pela queda aparatosa que o PS sofreu. Há que reconhecer que não esperou que outros pedissem a sua cabeça (mas um deles, que nunca saiu da bolha partidária e que agora não sai das televisões, já o tinha feito): foi ele próprio que assumiu que não poderia reconhecer como primeiro-ministro alguém a quem não reconhece idoneidade moral para o cargo. Conclusão obrigatória para quem cultiva a coerência, que, como se viu, em política se pode transformar em rigidez fatal. PNS poderia ter assumido que, mesmo gravemente ferido, daria combate (como parece que irá fazer Mariana Mortágua), mas as vozes internas dos que há muito se distanciaram dele aumentariam de intensidade e tornariam o combate ainda mais difícil. Até porque aos erros cometidos (e foram muitos) e à deficiente organização do partido se junta uma crise que é estrutural e que afecta toda a social-democracia europeia. Que chegou aqui tarde, mas chegou. Esta, a primeira conclusão destas eleições.
1.
Depois, a catástrofe de, provavelmente, e pela primeira vez na história da nossa democracia, o PS passar a ser o terceiro partido no sistema de partidos português, ultrapassado por um recente partido da direita radical, se se verificarem os resultados de 2024 nos círculos da Europa e fora da Europa, onde o CHEGA obteve dois dos quatro deputados. É certo que em 1985 o PS, com António de Almeida Santos como candidato, obteve um resultado inferior, em percentagem, ao de domingo, cerca de 21%, mas tal facto tinha uma clara explicação: o surto do PRD (mas também em 1987, já com o PRD em queda, Vítor Constância viria a obter cerca de 22%). Inspirado na figura de António Ramalho Eanes, o PRD viria, naquelas eleições, a obter 18% dos votos, roubados no essencial ao PS. O PSD de Cavaco teve uma clara vitória, com cerca de 30%, se comparada com a derrocada do PS. Esta a segunda conclusão.
2.
O que se seguirá, depois disto, no PS, é motivo de preocupação. Em primeiro lugar, por não se vislumbrar (eu não vislumbro mesmo) eventuais sucessores capazes de inverter o ciclo de declínio, que parece ser estrutural, sobretudo porque me parece que a classe dirigente deste partido (toda ela) ainda não entendeu o que está a acontecer, num ambiente de progressivo esvaziamento do centro-esquerda por toda a Europa (o caso do SPD, na Alemanha, devia levá-la a reflectir). O PS tem, em boa parte, uma classe dirigente, por um lado, sem experiência de vida (é o que resulta do processo de gestação de uma parte significativa da classe dirigente a partir da juventude socialista) e, por outro lado, sem uma sólida cultura política que lhe permita sintonizar com a mudança, em vez de fazer política por inércia, repetindo mecanicamente lógicas e fórmulas ultrapassadas e não dando resposta às expectativas de uma cidadania que mudou profundamente de identidade. O que se vê são excessivos protagonistas de que não se conhece profissão e que toda a vida viveram e sobreviveram no interior da bolha partidária e das projecções institucionais que dela decorrem, sobretudo em períodos de vitórias eleitorais. Muitos há na primeira fila que nunca de lá saíram, conservando-se há décadas na bolha. Por outro lado, a endogamia é, também neste partido, muito intensa. Poderia referir nomes, mas não quero pessoalizar. Outras vezes o fiz, a propósito de malfeitorias cometidas no partido. Um exemplo? Acabar com o jornal de partido, desfigurando-o como uma simples secção de notícias do site do PS. Falo com total conhecimento de causa. Por outro lado, há muito que o PS desmantelou o pouco que tinha de estruturas onde ia acontecendo alguma reflexão sobre a política, ao mesmo tempo que foi fazendo política por inércia, não cuidando de preparar o complexo terreno do combate político quer no plano nacional quer no plano interno, vistas as profundas mudanças que estão a acontecer, designadamente no perfil ou na identidade do cidadão-eleitor. Isso vê-se com maior nitidez nos jovens. Na verdade, custa-me dizê-lo, mas o PS mais parece uma enorme federação de interesses pessoais do que uma organização bem estruturada e com um perfil doutrinário e estratégico à medida do tempo que vivemos. Basta fazer uma curta viagem pelos currículos dos dirigentes mais em vista ou uma análise mais fina das estruturas concelhias e distritais do partido. E o problema da organização é coisa séria, quer no que diz respeito à existência de sólidas e duradouras estruturas internas quer no que diz respeito à mobilização do seu enorme capital humano e profissional quer para o interior do partido quer para além dos muros do partido. Só que os que por lá andam “borrifam-se” para esse universo. Os que por lá andam desmultiplicam-se em cargos e impedem a introdução de sangue novo por receio de perderem os lugares e não terem para onde ir na sociedade civil. Não falo por falar ou por maledicência: é o meu partido, conheço-o razoavelmente por dentro e gostaria que tivesse ganho estas eleições. Mas tem de mudar de discurso, de protagonistas e de deixar que as eleições internas sejam transformadas em OPAs a uma empresa de sucesso que é preciso ocupar para garantir rendimentos.
3.
É por isso que quem vier liderar o PS deverá concentrar-se no próprio partido, antes de se lançar no combate contra os adversários políticos externos ou antes de transformar o “CHEGA” no seu principal adversário, tendo como resultado, como vem acontecendo, continuar a promovê-lo ao topo da agenda mediática e pública. Lembro-me bem da crítica que fiz quando decorreu a disputa pela liderança entre Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro – pouco ou nada sobre o partido disseram ou propuseram. O que considerei estranho num partido com a dimensão e as responsabilidades do PS e com tantas fragilidades internas claramente visíveis. O que se viu foi uma ideia de partido como pura máquina eleitoral que aspira a viver e sobreviver à custa do Estado. Até na sua visão interna tem sido estatista, por esta razão. Serve internamente quem nos garantir sobrevivência no interior do vasto e generoso aparelho de Estado. E, para além do crescente e preocupante discurso identitário e “politicamente correcto” que se vai instalando no seu interior, o que se vê como identidade programática própria é unicamente a ladainha inócua sobre um Estado Social em crise, numa versão cada vez mais de tipo “caritas”, esquecendo-se de que, afinal, foi um aristocrático conservador como Otto Bismarck que o lançou (Wohlfahrtsstaat – Estado do Bem-Estar), que a sua versão “caritas” ficou plasmada na doutrina social da Igreja (inspirada na encíclica “Rerum Novarum”) e que o famoso modelo social europeu assenta as suas raízes no Relatório Beveridge, coordenado por um liberal, o economista inglês William Beveridge, nos anos quarenta. Pobre visão esta: ficar reduzida ao modelo social europeu, sem o repensar naquilo que urge fazer para o conservar, tornar eficaz e consolidar, e sem conseguir erguer outras bandeiras em sintonia com os tempos que correm. Exemplos? A eficiência do Estado (e que não seja somente no saque fiscal); a defesa generalizada dos cidadãos/consumidores perante os inúmeros oligopólios diante dos quais o cidadão singular está completamente desarmado (banca, telecomunicações, electricidade, combustíveis, centrais de consumo, etc.); o fim do assalto fiscal à cidadania (impostos directos e indirectos, taxas, multas, de uma dimensão absolutamente inaceitável); a distanciação de uma visão que eleva a pobreza a modelo heróico do seu discurso político como contraponto de uma visão trágica do capitalismo e da riqueza; ou, ainda, a aceitação passiva e sem sobressalto ético de duas categorias de cidadão: o da esfera pública e o da esfera privada, onde uns trabalham 35 horas e outros 40; onde uns têm emprego garantido para a vida e os outros podem ser despedidos a qualquer momento; onde uns correspondem a cerca de 750 mil e os outros, o da esfera privada, a mais de 4 milhões e meio. Mas estes são apenas exemplos perante a modorra intelectual de um partido que aspira a representar o futuro, conjugada com um descuido generalizado na preparação dos combates políticos. Basta ver como estão a ser preparadas as eleições autárquicas (o caso de Cascais é inacreditável) ou como foram escolhidos os deputados quer nas legislativas quer nas europeias e como foi decidida esta última ida a eleições legislativas (em nome de uma ingénua coerência relativa ao que, um ano atrás, dissera o secretário-geral). Com a impreparação política dos principais dirigentes, é muito fácil compreender o desastre do passado domingo e a vitória de um centro-direita também ele pouco qualificado e de duvidoso perfil moral. A vitória do PSD (porque é do PSD que se trata, e não desse cadáver adiado que é o CDS de Nuno Melo) não foi algo de que se possa vangloriar (aumentou 9 deputados ou 10, com os 2 círculos que falta apurar), quando a seu lado cresceu imenso uma direita radical anti-regime. Que provavelmente acabará por ter 60 deputados (se repetir os resultados de 2024).
4.
Mas é preciso reconhecer que estas eleições tiveram outros efeitos sobre a chamada esquerda. E que é necessário ter na devida consideração. Confirmaram a irrelevância do PCP (que perdeu um deputado, ficando com três), mas sobretudo avançaram no processo de extinção de um Bloco de Esquerda dirigido por uma radical capaz de assustar mesmo alguém que se considere de esquerda. Ficou reduzido a um deputado, tendo perdido eleitores para o partido unipessoal “Livre”, dirigido por uma espécie de frade, levado ao colo pelo establishment mediático e que já exibe, sozinho, o mesmo número de deputados do PCP, Bloco de Esquerda, PAN e JPP. O que é espantoso é o crescimento global da direita, com uma maioria qualificada no parlamento, em condições, pois, de alterar a Constituição da República. Uma situação que pode levar a uma perigosa viragem radical no nosso ordenamento constitucional.
5.
Há muito que venho alertando para os problemas com que o PS se confronta (veja-se o artigo “Estupefacção” e os 16 anexos, links, todos sobre o PS, que aqui publiquei em: https://joaodealmeidasantos.com/2025/01/22/artigo-187/#respond), mas os que por lá andam têm mais que fazer do que ouvir os que, sendo militantes e com quotas pagas, fizeram as suas vidas a trabalhar sobre estas matérias e, em muitos casos, podendo exibir também experiência política, além de uma sólida experiência profissional. O PS é um grande partido, tem quadros altamente qualificados no seu interior, mas tem vindo a ser gerido de forma pouco esclarecida, pouco eficaz e mal alinhada com o que de mais nobre este partido representa. De repente, surgem génios da política só porque um PM do PS os chamou à governação, despachando-os, depois, para o governo do PS, numa operação que já qui designei como “colonização” do partido pelas escolhas pessoais e discricionárias do chefe. Foi a surdez desta classe dirigente que levou a esta situação, mas também já só faltava saber quando é que a crise da social-democracia europeia iria cá chegar. Soube-se agora que já chegou. Mesmo no Reino Unido, onde o Labour de Keir Starmer governa, as recentes eleições locais parece não serem de bom augúrio, vistos os consistentes resultados obtidos pelo Reform UK do radical e protagonista do Brexit Nigel Farage.
6.
É tempo, agora, de reflectir seriamente sobre o futuro de um grande partido como é o PS. Farei a minha parte, para além do que já fiz ao publicar recentemente o livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024), onde avancei com uma extensa análise da política actual, porque não sou indiferente à evidente crise do espaço político onde se inscreve a minha opção política. PNS foi atropelado pelos acontecimentos políticos de nível nacional e já nem pôde promover a reflexão colectiva que se impunha a um partido que cada vez mais está a precisar dela. O que se espera é que os acontecimentos políticos que se seguem não sejam a desculpa para, uma vez mais, adiar o que se está a tornar cada vez mais urgente. Que haja, pois, debate entre propostas políticas diferentes com protagonistas diferentes.
7.
Finalmente, parece-me justo deixar aqui uma pergunta que talvez nem precise de resposta: será Pedro Nuno Santos o único responsável por esta derrocada? A minha convicção é de que não é o único responsável por esta rápida evolução regressiva do PS, já que ela começou precisamente com o abandono de António Costa. Pedro Nuno Santos e o PS acabaram, assim, por ser as vítimas herdeiras da apressada partida de António Costa rumo a Bruxelas. JAS@05-2025

