NOVOS FRAGMENTOS (XVI)
Para um Discurso sobre a Poesia
João de Almeida Santos
RICARDO REIS
Começo por reproduzir parte de um poema de Ricardo Reis (de 1916), referido num comentário de uma Amiga a propósito de um poema meu (“As Palavras escondidas nos teus Riscos”):
“Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente”
1.
Sim, a realidade é sempre mais ou menos do que o nosso desejo e a nossa vontade. Não há identificação: umas vezes ela é mais, outras é menos. A vontade é o mecanismo que acciona o desejo. Então, a solução é recriá-la à medida da nossa fantasia, como expressão do nosso desejo e da nossa vontade. Só assim pode haver identidade. De certo modo, “esse est percipi”, como dizia o bispo Berkeley. Vemos o mundo à nossa dimensão e de acordo com o nosso desejo. Quanto ao resto, há sempre diferença, porque, no plano ontológico, a realidade não se confunde com a percepção. Mas é precisamente no intervalo entre nós e a realidade que cresce a poética fantasia. Nessa diferença. É nesse intervalo que o poeta se coloca e desenha a realidade à sua própria medida, embora a sua medida, enquanto tal, o transcenda. Um poema é sempre maior do que o poeta. Mas, ao transcender o real, num poema, o poeta transcende-se a si próprio. Como se a fantasia fosse preencher esta vala profunda que o separa de um mundo que, justamente, não é feito à sua medida. Uma ponte sobre um território vazio (entre si e o mundo) que o leva à outra margem. Por isso, a poesia não descreve o mundo – acrescenta-lhe vida, que leva através dessa ponte. O poeta caminha nela em direcção à outra margem como original construtor de sentido e de beleza. Esta ponte é a rua do poeta.
2.
É esse o seu destino. O Pessoa transcendeu-se a si próprio quando fugiu de si e encarnou outras personagens que não estavam previstas à nascença. Deu forma à sua vontade e à sua identidade através da fantasia. E ofereceu mais realidade ao mundo. A sua, que, no final, já era mais do que sua. Foi assim que ele regou as suas plantas, que amou as suas rosas e sentiu os perfumes dos jardins, que se ofereceu à vida e lhe devolveu os seus ecos, por mais diversos e silenciosos que fossem. Uma fonte sempre a brotar. O resto eram sombras de árvores alheias. Pois eram, até porque árvores alheias foi o que sempre houve por aí, sobretudo com a condição de simulacros em neblina, onde todos os gatos são pardos.
3.
Somos iguais a nós próprios? Sim, mas na medida em que nós somos a árvore que dá a nossa própria sombra e onde nos protegemos do excesso de sol, que abrasa. Iguais a nós próprios, verdadeiramente? Tão iguais que até nos vamos reconstruindo com identidades diferentes, à medida que o sol da nossa vida se vai deslocando da aurora para o entardecer, mas sem deixarmos de ser quem somos e o que somos. Ou seja, somos aquilo que, afinal, formos fazendo de nós. Diz ele, o Pessoa, que o quiseram encarcerar em si logo que nasceu. Sim, bem tentaram, mas ele fugiu. Sem sair dele, diga-se. Mas fugiu mesmo, desdobrando-se nas suas próprias sombras. Passou a ser do tamanho e da forma da sua própria fantasia. Deixou de ser sombra de árvore alheia, sobretudo quando, pela primeira vez, deu conta de si. Então, sempre que o mundo se apresentava menor do que a sua vontade de ser, ele reconstruía-o à sua medida, à medida da sua imaginação. Aumentava-o. É bem verdade o que diz o William Hazlitt: “a intensidade dos sentimentos compensa a desproporção dos objectos”; ou ainda: “a poesia é em todas as suas formas a língua da imaginação e das paixões, da fantasia e da vontade” (Do Prazer de Odiar e Outros Ensaios, Lisboa, Edições 70, 2025, pp. 103 e 110). É essa intensidade dos sentimentos, universo em que se inscreve a poesia, que permite agigantar o mundo, torná-lo maior, compensar a sua pequenez. Para isso, há a imaginação, a fantasia e a vontade. É esta a grandeza da arte, tornar o mundo maior e mais belo do que é. Gherardo, “maintenant tu es plus beau que toi-même”. É também por isso que o Baudelaire compara o poeta ao albatroz, essa ave gigante:
Le Poète est semblable au prince des nuées / Qui hante la tempête et se rit de l’archer;/ Exilé sur le sol au milieu des huées,/ Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.
Príncipe das nuvens, as suas asas gigantes impedem-no de caminhar… a não ser lá no alto sobre a imensidão dos oceanos. Assim é o poeta.
4.
Diz Ricardo Reis que grande e nobre é “viver simplesmente”. Pois é, se a fantasia o permitir, abrindo imensas clareiras que vão dar a lado nenhum (Holzwege). Ser poeta é isso – habitar uma floresta onde o eco do silêncio é a melodia que se ouve por entre o bulício das folhagens sopradas pelo vento. É andar lá sem destino aparente. É dar simplesmente voz à vida vivida com a fantasia, inspirado nos sendeiros da paisagem existencial por onde circulamos, mas onde domina o silêncio e a solidão. O poeta vive nas clareiras da floresta da vida.
ABRIGO QUENTE
O abrigo quente da poesia situa-se sempre no centro dos poemas. É lá que o poeta se refugia das tempestades que o apanham a meio da caminhada da vida. Fugiu com ela, com a musa? Não, mas seguramente quis isso quando a encontrou lá, na rua da sua vida, encantando-o. E, nesse momento, ele estremeceu. Uma doce e criativa tempestade. Quis logo levá-la dali para a ilha da utopia. Quem não quereria isso com tão arrebatadora beleza? É interessante o significado que tem na minha terra a expressão “fugiu com ela”. Quando a pressão familiar e/ou social, em comunidades fechadas, impedia um amor, os amantes “fugiam” para poderem acasalar noutro lugar qualquer. Mas, às vezes, o amor fracassava, cedia perante as imposições. Muitas vezes, era mesmo fuga territorial, fuga da cidade; outras, era fuga para o “abrigo quente da poesia”. Um dia, o poeta viu-a, da janela, passar na rua do seu jardim e reconheceu-lhe a beleza inatingível, impossível. Ela não desapareceu, engolida pela multidão, como a mulher do Baudelaire de “Les Fleurs du Mal” (“À une Passante”). Vendo-a passar na rua, regularmente, ele sentia “Un éclair…”, mas quando, lá ao fundo, ela dobrava a esquina, também acontecia “la nuit!”. Sentia sempre isso. E isto acontecia. E repetia-se quase diariamente. E dizia de si para si: “com ela, sim, eu fugia”. Mas nunca fugiu. As musas não o permitem.
Este poema a que me refiro inspira-se nesse outro do Baudelaire. E dá-lhe solução e continuidade: o poema é o sonho (a luz) que se segue à noite. É por isso que ele (no sonho, no poema) se debruça sempre nos gradeamentos do seu jardim e olha a janela circunstante como se ela lá esteja por detrás das cortinas em diálogo silencioso consigo (na pintura “O Jardim e a Janela”, para o Poema “As Palavras escondidas nos teus Riscos”). Assim, a noite escura nunca chegará. Mas, se chegar, sempre haverá o sonho, uma luz na noite. Do jardim para a janela fronteiriça – um diálogo permanente entre dois seres que apenas se pressentem. No dizer dele, porque até pode ser apenas uma ilusão – imaginar no lado de lá o que apenas lhe subsiste na memória. Mas isso pouco importa se a ilusão der origem ao canto e a uma doce melancolia.
ASAS
A poesia é a arte que melhor representa a liberdade. Porque é um mundo onde pomos asas e voamos. Para Neverland. Como Sininho e Peter Pan. Essas asas que não voam nas ruas que são proibidas ou porque são demasiado estreitas para permitirem levantar voo. Lembro-me sempre do Baudelaire e do poema sobre o Albatroz. Asas grandes demais para se poder mover em terra. E muito menos em ruas proibidas. Só sobre a imensidão dos oceanos. Assim são os poetas. Têm asas grandes demais para se poderem mover nas vielas estreitas da vida. E é por isso que voam mais alto. Voam sempre. Sobre os mares ou sobre a terra. Mas sempre lá bem alto. Afinal, eles não se ajeitam com a vida, com as rudes leis da vida, com os estreitos sendeiros, com a aspereza dos corpos sólidos esparsos nas ruas e nas praças. O poeta gosta de voar na montanha e sobre os vales ou sobre o oceano. A poesia foi criada para levitar, em homenagem à leveza. O passo/momento de dança de que o poeta mais gosta é o “ballon”.
LIBERDADE
A liberdade é um processo que alimentamos interiormente ao longo da nossa vida. Mas é um estado vivido em tensão. Ela é sobretudo interior, mas também precisa de um ambiente externo para melhor se manifestar. Muitas vezes encontramo-nos num processo de confronto entre a liberdade interior e a coacção externa, que até pode ser sistémica. Ou simplesmente psicológica ou afectiva. Interpessoal. Muros que se apresentam inultrapassáveis. Ela é, pois, sempre uma conquista sobre as limitações do mundo exterior ou do mundo interior, pulsional, magmático. O voo já é apolíneo. A poesia é uma das mais belas expressões da liberdade – metaboliza as pulsões e dá-lhes forma (semântica, plástica e musical) de acordo com a sua sensibilidade e os padrões da beleza. Como a música ou a pintura.
A ALDEIA E A MEMÓRIA
Não é por acaso que muitos de nós passam parte dos seus dias nas suas aldeias, revisitando o tempo de vida, o passado, mas também o futuro, como projecção do passado que deixou saudades: do que aconteceu ou do que não aconteceu. Deixa sempre. Mas também é privilégio de alguns que sempre viajaram nesse tempo paralelo das palavras em busca do que lhes corria nas veias como tempo interior, às vezes como tempo inacabado, mas desejado. Persistentemente desejado. A poesia é a projecção e a fixação desse tempo em moldura estética e intemporal. Isto vale para o tempo de juventude ou mesmo de infância, que se pode reconstruir no lugar onde tudo começou, com palavras ou com riscos e cores. Na aldeia. Isso é (re)viver uma segunda vida. É uma curta-metragem nessa mesa de montagem que é a memória. Curtas-metragens poéticas. Ir ao cinema ver um filme de que nós próprios somos autores, realizadores e actores. A poesia.
A PORTA
A porta da Casa-Mãe é uma porta que é também uma janela. Dela saí para o mundo, conservando-a sempre comigo. Por isso foi sempre um marco identitário. Ela é para mim uma vitamina existencial porque nela se conjugam vários elementos fundamentais: a montanha (em frente), um telhado (para onde dá a porta, que lhe é sobranceira), a saída para o jardim (para a porta principal de entrada), o seu granito amarelo (com cristais), sendo também a fronteira entre a Casa-Mãe e o Mundo, que começa naquelas escadas e que nunca mais tem fim. Como não havia eu de a cantar? Tinha de ser. E no domingo em que entreguei a minha bela pintura sobre a aldeia (aqui publicada), como se ela resumisse o mundo tal como ele se avista da minha janela, mais razões haveria para o fazer. E assim foi.
ARCO-ÍRIS
Finalmente. A poesia é voo lá mais para o alto da fantasia onde se respira melhor e de onde podemos olhar para o vale da vida sentados num arco-íris (que sempre os há na atmosfera poética). Vemos, lá do alto, o mundo em refracção, através das gotículas finíssimas que formam o arco-íris. Assim, a poesia é como um caleidoscópio. JAS@06-2025

