Artigo

O PS NA MOÇÃO DO FUTURO LÍDER,

JOSÉ LUÍS CARNEIRO

Vinte e Cinco Observações 

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

A MOÇÃO, na página nove, diz o seguinte: “Com este documento de estratégia política, a nova liderança do PS lançará um processo alargado de discussão e reconstrução do PS, não condicionando à partida os resultados que tal processo poderá alcançar. Essa discussão, aliás, já começou”. Onde, não sei. Ainda não dei conta. Mas eu, que já ando nestas discussões há muito tempo, aqui estou mais uma vez. A ver se alguém lê e se interessa pelo que digo. Não terá grande importância, mas sempre é um contributo. E compreendo que se abra um processo, até porque ele se está a tornar cada vez mais necessário. Mas, mesmo assim, não consigo alcançar o sentido do que se diz noutra parte do documento (um documento de candidatura a líder, note-se), a saber: “o presente documento de orientação política, que enquadra e sustenta a candidatura a Secretário-Geral do Partido Socialista, não se deve confundir com a Orientação Política do PS a aprovar, nem com a nova Declaração de Princípios a concretizar e, muito menos, com a nova visão de país que faremos nascer”. Compreendo, porque se aqui estivesse já tudo dito não seria preciso abrir o debate. Da discussão nascerá a luz. Sem dúvida. E, todavia, se não deve haver confusões entre o que diz o futuro líder e a luz que se acenderá no futuro, a pergunta é óbvia: que valor tem o documento que suporta a sua eleição? Até porque é o próprio que diz que este documento não deverá ser considerado (ou confundido) quer como orientação política quer como declaração de princípios do PS ou mesmo como uma ideia para o país. Mas, pergunto, ele não representa a visão do futuro líder do PS e não anuncia o que esse líder quer para o partido e para o país? Isso nada conta nem vale? O novo líder vai para lá como uma folha em branco que, depois, será escrita pelo colectivo? Que valor terá, então, a liderança? Não estaremos nós a eleger um líder pelo que ele pensa e propõe como sendo o melhor para o PS e para o país? Lidera fisicamente, mas não lidera nas ideias? Estranho! Não há alternativa, bem sei, mas o candidato deveria agir como se houvesse. Ou estamos mesmo a eleger, em tempos de hiperpersonalização da política, somente um secretário, um coordenador, uma espécie de notário que tomará boa nota de quanto, nos próximos anos, o colectivo decidirá, eventualmente até nem tomando em consideração as próprias ideias de quem elegeu como líder? Mas que liderança será esta que se recusa a apontar o caminho que considera ser o melhor, sendo, mesmo assim, votado como líder? Não entendo. A não ser que, atendendo ao histórico, tudo isto não passe de conversa para cumprir calendário. Até lá, à grande reforma, quais serão as ideias que deverão ser tomadas em consideração e que rumo seguirá um PS em crise e com as ideias suspensas, já que estas ou não são para tomar em consideração ou são apenas provisórias? É tudo provisório, incluindo o próprio líder apenas eleito? Se as ideias com que o candidato se apresenta a votos são estas, elas deveriam valer como bússola política e ideal do PS enquanto for líder, agora e no futuro. Até porque a política não pára para aguardar tranquilamente o produto de uma reflexão colectiva que poderá nem sequer vir a acontecer, como se viu no caso de Pedro Nuno Santos. Numa crise, o que se quer é um líder que a enfrente com ideias, o que parece não ser o caso, até pelo teor do documento que apresenta. E nem sequer é verdade que José Luís Carneiro venha completar o mandato de Pedro Nuno Santos, como julgo ter dito Miguel Prata Roque. Se assim fosse ele deveria governar provisoriamente o partido com as ideias daquele, o que não é o caso. Mas bem o entendo – não havendo disputa é como se não se trate de uma verdadeira eleição, mas de uma espécie de nomeação administrativa.  De certo modo, a moção sobre a qual, a seguir, desenvolverei 24 considerações até parece justificar essa ideia de interregno não só pela advertência que referi, mas também pelo pouco que diz. Mas, mesmo assim, vejamos mais de perto.

2.

O desenvolvimento tecnológico, diz-se no documento, coloca-nos novas exigências. Certo. Mas deveria dizer-se também, e não se diz, que ele nos coloca novas e grandes oportunidades, assim as saibamos agarrar. Digo isto não por acaso, mas porque hoje a crítica às TICs, sobretudo às redes sociais e às grandes plataformas digitais, é muito forte, passando por cima do que elas podem representar efectivamente como oportunidade, como “tecnologias da libertação”, como no início eram conhecidas, e como fortíssimo desafio aos media convencionais e à sua aliança tácita com o poder, como a sua outra face. São conhecidos os desvios supervenientes, bem sei, mas eles não cancelam as oportunidades que elas podem favorecer (analiso longamente este aspecto no meu recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024). Lembro que a generalidade dos cidadãos anda com um pequeno computador no bolso, tendo, assim, acesso ilimitado a informação (e não só a desinformação).

3.

Fala-se de uma maioria absoluta “abruptamente interrompida” em 2023 por, como se sabe, o PR ter decidido convocar eleições (e não era constitucionalmente obrigatório) na sequência da apressada demissão do PM António Costa. Sim, é verdade, mas talvez se devesse dizer, e já, algo sobre isso: de quem foi a culpa, quais os intervenientes activos e passivos na operação, se houve e quem foi o arquitecto e as consequências desastrosas que teve para o PS e para o país. Mas não se diz.  Apenas que foi “abruptamente interrompida”. A posição do PS nessa altura (a sua mansinha submissão ao diktat do PR) também deveria ser objecto de uma profunda reflexão. O que não acontece e provavelmente nunca acontecerá. Mas a verdade é que esta derrocada começou aí.

4.

Como já disse, anuncia-se um grande debate a seguir à eleição do líder e eu pergunto se não seria esta, precisamente esta eleição, a boa ocasião para debater alternativas e pessoas. E também pergunto se só agora é que os protagonistas que por lá andam há tanto tempo se deram conta de que, agora, é mesmo necessário reflectir. Já, sem deixarem a reflexão para as calendas gregas, ficando-se pelo anúncio ou promovendo um debate artificial, como aqueles a que temos vindo a assistir. Sem consequências dignas de registo, sempre à espera de melhores dias. Mas mais vale tarde do que nunca, ainda que ele aconteça por pressão de circunstâncias negativas. Mas vamos a isso.

5.

Diz-se que a crise também está “inserida num quadro de significativa contração dos partidos socialistas democráticos, sociais-democratas e trabalhistas, no conjunto das democracias ocidentais”. Mas a verdade é que a crise não é de agora, há muito que se anuncia e verifica e muitos são os que têm vindo a alertar para isso. Eu fi-lo muito recentemente, e de forma muito detalhada, no livro que acima referi e em inúmeros artigos de fundo neste site. E, já agora, também me ocorre lembrar que talvez tivesse sido oportuno reflectir sobre a crise, em 2015, quando o PS de António Costa nem sequer obteve aquele “poucochinho” de António José Seguro, perdendo as eleições, a seguir a quatro anos de austeridade severa, com a troika cá dentro a vigiar o cumprimento (reforçado) do memorando pelo PSD de Passos Coelho (e note-se que, segundo o banco de Portugal, a dívida pública em 2010 ficou em cerca de 100% do PIB, acabando, em 2015, por se fixar em cerca de 131% do PIB). Não foi um fortíssimo sinal para ser interpretado? Não discuto a justeza constitucional e democrática da solução, mas talvez tivesse sido um bom momento para reflectir sobre o assunto, isto é, sobre a derrota, em vez de os holofotes terem ficado virados exclusivamente para a inédita experiência da “geringonça”, que haveria de levar, como veremos no ponto 15, a um desinvestimento público incompreensível.

6.

Fala-se de “novas formas de fazer política, novos protagonistas e novas respostas para os problemas do nosso tempo”. É para levar a sério? Vêm aí novos protagonistas e uma nova política, com este unanimismo (por assim dizer) na eleição de um líder que foi secretário-geral adjunto de António Costa? Nada a objectar, mas será necessária mais coragem do que tacticismo para o empreendimento. Eu quero acreditar, mas já estou um pouco como S. Tomé.

7.

Usa-se a expressão a “desinformação alastra”, talvez aludindo às redes sociais (é o que está a dar), como se a desinformação não existisse há muito tempo nos meios de informação convencionais e os boatos fossem coisa de agora. Por exemplo, ela hoje existe em doses cavalares (perdoe-se-me a expressão) sob a forma de comentariado televisivo. Algo que se está a revelar profundamente tóxico e intoxicante, mas de que ninguém se queixa e se escandaliza. Os factos relatados nessas mesmas plataformas informativas já pouco significam, envolvidos que logo ficam por intermináveis aluviões opinativos. São estes os personagens que hoje modelam e estruturam a opinião pública, os novos ideólogos, os “fast thinkers” do pensamento “prêt-à-porter”, graças ao enorme poder do púlpito televisivo (que é superior ao que muitos pensam, como tive ocasião de demonstrar no meu livro Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012).

8.

Também se usa uma curiosa expressão para referir o problema da habitação: “iniquidade no acesso à habitação”. Traduzo: injustiça no acesso à habitação. Mas a minha pergunta é a seguinte: a habitação é um bem público que deve ser redistribuído? Qual é a responsabilidade de cada um de nós (e designadamente das famílias) na criação de condições para termos acesso a uma casa para habitar, comprada ou arrendada? Fala-se de “um grande projecto de construção e reabilitação de habitação”, ou seja, de um grande projecto de construção civil – tem o Estado vocação para isso? Não será, pelo contrário, a expansão do mercado de arrendamento a solução para este problema, podendo o Estado, para isso, tomar medidas fiscais, financeiras e procedimentais radicais? Por exemplo, abdicando de impostos? A solução não será de certeza a oferta pública de casas para arrendamento, com o Estado (incluídas as Câmaras) como senhorio, pois já se sabe como irá a acabar, atendendo ao histórico do Estado como administrador. Aliás, um dos grandes problemas do nosso país é precisamente a eficácia no funcionamento do Estado, designadamente na gestão dos bens públicos (só funciona bem na cobrança de impostos). Isto para não falar do enorme montante das dívidas de rendas, ainda por cima bastante baixas, às câmaras municipais (a crer no que se lê nos jornais e no que dizem os autarcas), que se vêem sempre impedidas de as cobrar ou de promover justos despejos pelo alarme social que causam.

9.

Fala-se, e bem, das “posições políticas iliberais e autoritárias”. Certo, mas elas são devidas a quê? É preciso ser claro sobre as causas dos movimentos iliberais e autoritários. Elas devem-se à natureza maléfica do ser humano ou a políticas erradas próprias do centro-esquerda e do centro-direita que nos têm governado? Não se estará a verificar uma saturação da “middle class” relativamente às políticas do bloco central? Isso não se vê no crescimento dos movimentos não partidários nas eleições autárquicas, mesmo com uma legislação inibidora? Isso não se vê no crescimento do CHEGA?  Isso não se vê na diminuição eleitoral do bloco central, hoje já pouco superior a 50% do eleitorado (54,6%), quando antes era muito superior ao valor de uma maioria qualificada? Limitar-se a apontar o dedo ao inimigo que vem aí ou que já cá está em território democrático, fazendo disso a orientação política principal (um antifascismo restaurado) para reorganizar as tropas de defesa do território democrático ameaçado, tem como resultado cobrir os erros e continuar a persistir neles, contribuindo, deste modo, para o crescimento desses movimentos ou partidos. Um exemplo recente: não será (animados pela onda identitária) fustigando-nos com o esclavagismo pretérito (abolido há séculos, embora haja sempre a possibilidade de reinventar um neoesclavagismo fundamentado numa qualquer “epistemologia do sul”), e seguindo as pisadas daquela activista brasileira, uma tal Bia Ferreira, que atribui as culpas dos actuais problemas do Brasil ao colonialismo português (“a gente paga essa conta até hoje”, no Expresso, em 2022), que reconheceremos as culpas e os erros que são mais próximos no tempo e as causas efectivas do crescimento destes movimentos iliberais e autoritários. Bem pelo contrário, é deitar gasolina no fogo, como já se está a ver.

10.

O documento diz que é preciso “fazer renascer a ética na política”. E, acrescento eu, sobretudo a ética pública. Não poderia estar mais de acordo. Por isso, incentivo daqui o novo líder a começar pelo próprio partido, afastando (no âmbito dos seus poderes estatutários, claro) dos cargos dirigentes e de candidaturas institucionais os muitos que por lá andam simplesmente para tratar da vidinha (não servindo, mas servindo-se, para usar as palavras de António José Seguro), borrifando-se para a ética pública e para o interesse geral. Uma sugestão: começar logo pelos que andam por lá há décadas sem que se lhes conheça obra digna de registo (não será muito difícil identificá-los). Ou outros de quem se lhes não conhece profissão: “não tens profissão? Vai aprender a fazer alguma coisa na vida e, depois, aparece” (também não será difícil identificá-los). Alguns até já se dão ao luxo de escolher os cargos mais seguros e estáveis, não querendo arriscar outros desafios menos seguros. Outros, ainda, fazem-se eleger em legislativas, para, dois meses depois, abandonarem os mandatos que lhes foram confiados para se candidatarem a eleições mais interessantes e melhor remuneradas (as europeias, por exemplo). Ou os que se habituam a ter motorista e saltitam de câmara em câmara quando já não se podem candidatar a uma delas. Ou a incompreensível acumulação de cargos numa só pessoa como se num grande partido como o PS não houvesse pessoas qualificadas para além dos mesmos de sempre. São exemplos que quem conhece a realidade partidária certamente já pôde testemunhar. Portanto, sim, “fazer renascer a ética na política” e começar por algum lado.

11.

Para “este trabalho exigente”, diz-se no documento, “o PS tem de abrir as suas portas”. Claro, a começar logo por dentro, pelas portas do interior do edifício, em relação aos próprios militantes, em vez de manter uma insuportável endogamia que afasta o partido da sociedade civil e até dos seus próprios militantes e simpatizantes. Bem sei que há a chamada lei de ferro das oligarquias partidárias, de que falava o Robert Michels, mas isso pode ser superado. Assim haja vontade e imaginação organizativa.

12.

Não entendi bem a seguinte formulação do documento sobre o Estado: “A organização do Estado, seja na Administração Central, inclusive desconcentrada, seja na Administração Local, passando pelos mecanismos regionais e supramunicipais, carece de legitimação democrática” – que, depois, introduz a necessidade de uma reforma da lei eleitoral, em particular da lei eleitoral autárquica. Na verdade, quer nas CCDRs quer nas entidades intermunicipais temos processos electivos (colégios eleitorais: um, para a eleição das Assembleias das CIMs; o outro, para a eleição do Presidente e do Vice-Presidente). Portanto, não é bem (num país tão pequeno como o nosso) de uma questão de legitimidade que se trata, mas do bom funcionamento quer do governo central e das suas estruturas quer do governo local, incluindo, neste caso, também o reforço das competências das assembleias municipais e a formação de executivos homogéneos e, eventualmente, o aperfeiçoamento das CIMs. Mesmo assim, congratulo-me pela proposta, que, de resto, eu próprio aqui fiz e fundamentei,  recentemente, no meu artigo “Três Propostas – Para a Legislatura” (link: https://joaodealmeidasantos.com/2025/05/28/artigo-205/);  como, de resto, e ainda que a formulação seja menos explícita, me congratulo pela exploração da revisão constitucional de 1997 com vista a uma aproximação entre eleitos e eleitores, certamente através da criação de círculos eleitorais uninominais, proposta que no meu artigo acima referido também avancei e fundamentei. Esta última mudança teria profundos efeitos a montante, sobre os próprios partidos e sobre a selecção dos candidatos a deputados e, em geral, dos dirigentes políticos.

13.

Já agora, e independentemente da posição sobre a reforma constitucional (que não é um bicho de sete cabeças, pois já esteve em apreciação recentemente, tendo sido interrompida por mais uma convocação de eleições), por que razão não se põe a hipótese da eleição do PR por um colégio eleitoral (e esta foi a terceira proposta que fiz) mais amplo do que a Assembleia da República (poderia ser constituído também pelos presidentes das CCDRs, das comunidades intermunicipais – da assembleia e do executivo -, pelos presidentes dos principais órgãos superiores do Estado – supremo tribunal, tribunal constitucional, tribunal de contas -, pelos presidentes dos governos regionais e das assembleias regionais, etc. etc.). Assim se evitaria esta longa e quase insuportável procissão presidencial e garantiria uma escolha que não espelharia necessariamente a composição política do parlamento e que podia ser consensualizada sobre uma personalidade responsável, respeitável e democrática para um cargo cujas funções são exíguas, desde que não se desate (como fez o actual PR) a convocar eleições por dá cá aquela palha ou, pior ainda, para que o seu partido de origem alcance rapidamente o poder (e alcançou).

14.

Já quanto ao Pacto Portugal Futuro para 2050, talvez fosse mais aconselhável fazer, sim, um diagnóstico sobre o que já está a acontecer (e é muito), em vez de olhar para tão longe, até porque a velocidade a que hoje se processa a política e a história é muito rápida, tornando obsoletos projectos políticos excessivamente dilatados no tempo. E isso acontecerá sobretudo se estes projectos passarem inadvertidamente sobre as profundas mudanças que já estão a ocorrer. É olhar para o que tem acontecido nos USA pós-Obama (faz lembrar a maioria absoluta de Costa e a catástrofe que se lhe seguiu) ou para a evolução rapidíssima da inteligência artificial. Do que se precisa é de uma autêntica cartografia cognitiva (Jameson), de uma declaração de princípios com ela alinhada e de uma forma organizacional do partido eficiente, democrática, selectiva e participada, que seja mais, muito mais, de que uma mera marca (ainda que prestigiada) para fins eleitorais e do que deles pode resultar (financiamento e cargos no vasto aparelho de Estado). Um partido de esquerda tem de ser um organismo vivo. E não uma máquina intermitente, exclusivamente em função dos ciclos eleitorais (internos e externos).

15.

Contas certas? Sim, desde que sejam respeitadas duas condições: a) que não se transforme os contabilistas de serviço em ideólogos do PS; b) que não impliquem um investimento público inferior ao do tempo em que a troika esteve por cá, como, de facto, aconteceu (segundo o Pordata: 2011-2015= 2,50% do PIB; 2016-2023=2,12%; mas se compararmos com os valores de 2016-2019 a diferença é muito maior: 1,77% para 2,50%). Portugal, em 2015, estava, em investimento público em percentagem do PIB, em 25.º lugar na UE, passando, em 2023, para 26.º lugar (em 2001 era o 2.º da UE, com 5% do PIB, e em 2009 o 17.º, com 4,1% do PIB). É nisto que penso quando ouço falar de contas certas e de investimento público.

16.

Ainda sobre o Pacto Portugal Futuro. Uma longa conversa filosófica politicamente correcta, mas que nada de concreto diz, excepto (e é muito relevante) que quer o SNS, a Segurança Social pública, investimento na escola pública e, em geral, as políticas que todos sabem que o PS defende. Mas o que verdadeiramente interessa é dizer quais as causas e as soluções concretas para resolver as dificuldades nos sectores nevrálgicos do Estado. Como no tratamento das doenças e nos respectivos medicamentos, o que é preciso é descobrir o princípio activo que resolve a maleita, neste caso, os problemas fundamentais do país (que não são muitos, embora sejam difíceis: saúde, habitação, eficiência do Estado, carga fiscal, desenvolvimento e emprego). A política lá estaria para conseguir os consensos necessários para adoptar boas soluções.

17.

Ainda sobre a habitação: o PS quer que “no prazo de dez anos, todas as famílias tenham acesso a uma habitação condigna, fazendo conjugar a oferta de mercado com a oferta municipal de habitação e os incentivos à construção de casas a preços acessíveis”. Como? O que é que isso – “todas as famílias tenham acesso a uma habitação digna” – quer dizer, para além de ser a formulação de um justo princípio humanista? Como conseguirá o PS atingir este objectivo? As dúvidas sobre o princípio activo são imensas, para quem pense um pouco no assunto. Mas é assunto relevante e está no topo da agenda. Por isso, é preciso dizer qualquer coisa e a tendência é dizer que o Estado resolverá o problema, seja qual for a solução. Não, o Estado ajuda, e pode ajudar muito (por exemplo, desonerando fiscalmente), mas a solução residirá na sociedade civil, na esfera privada. A tentação do Estado-Caritas é sempre grande, fácil e até generosa, mas este é um problema (escassez e preço das rendas e das casas para compra) que, como já disse, só a expansão do mercado de arrendamento pode efectivamente resolver. Estou profundamente convencido disso.

18.

Já sobre a justiça, o que de essencial é dito é que é necessário “um salto qualitativo”.  Também acho que sim, a começar pela clarificação dos poderes do Ministério Público (que não é feita) e a tudo fazer para acelerar a lentíssima máquina da justiça. Mas confesso que, com a timidez reinante na classe política, as minhas esperanças são poucas ou nenhumas. A famosa separação dos poderes lá está para funcionar como bloqueador automático, ainda que seja claro que poderes separados não são, por isso, poderes iguais. O poder judicial não ocupa o mesmo patamar na hierarquia dos poderes que o poder legislativo. Só este exprime directamente a soberania popular, tendo mandato explícito para isso.

19.

Sobre as cinco áreas (política externa e europeia, defesa, segurança, justiça e organização do Estado), nada é dito que mereça aqui ser anotado (para além do que já referi, sobre o Estado e sobre a justiça), mas poderia ser dito que nestas matérias o PS está disposto a negociar e a ser proactivo, ao mesmo tempo que reafirma o seu alinhamento com a União Europeia, tendo bem consciência de que o nosso é um pequeno e periférico país, com as limitações daí decorrentes. O reconhecimento das próprias limitações é sempre a melhor maneira de avançar para novos patamares.

20.

 “O PS reverá a sua organização interna, com vista a promover um nível de reflexão, coordenação e decisão à escala intermunicipal. O PS investirá na formação contínua dos seus militantes e quadros, com vista a garantir um nível cada vez mais elevado do debate interno em todas as suas estruturas”. Isto é bom para um partido que sempre deu pouca (ou mesmo nenhuma) importância à escala intermunicipal, de que as CIMs são hoje o rosto institucional, talvez por, erradamente, ter sempre olhado para a sua origem como algo “pecaminoso” (a famosa Lei Relvas). A verdade é que o território nacional está hoje estruturado, à escala supramunicipal, em 23 CIMs (não considerando as áreas metropolitanas). Fui sete anos presidente da Assembleia de uma CIM (“Comurbeiras”) e pude, lamentavelmente, constatar isso. E, por isso mesmo, considero esta uma boa notícia. Se o actual modelo será o melhor, isso pode ser discutido, mas é o que existe em termos supra ou intermunicipais. Que o partido se alinhe por esta realidade até se pode considerar que é somente uma consequência lógica, mas, na verdade, trata-se de uma realidade diferente da actual, a das federações distritais. Os territórios são, de facto, diferentes. Há, todavia, um problema: os círculos eleitorais continuam a coincidir com os distritos (e é só para isso que agora estes servem). O novo desenho dos círculos eleitorais uninominais poderia resolver o problema, introduzindo coerência na organização administrativa do país.

21.

Mas fala-se também de formação dos militantes e quadros. Foi para isso que acabaram, já lá vão uns anos, com o Acção Socialista (apesar de conservar o nome, não é um jornal o que actualmente existe, mas uma pobre secção informativa do seu site)? Sei bem do que falo porque fui eu que o informatizei e o relancei quando, nos anos noventa, o dirigi. Um simples dado: publicámos, no jornal, em cerca de 3 anos, cerca de 150 ensaios sobre o futuro da esquerda, escritos, sobretudo, pelos melhores intelectuais da esquerda europeia. As duas revistas que parece que ainda existem, para um número ínfimo de leitores, não são hoje mais do que a projecção de dois egos à procura de autores, não representando verdadeiramente o PS, uma política editorial robusta, regular, eficaz e consistente, à altura de um partido com a dimensão e as exigências do PS. Gabinete de Estudos? Não se fala disso e é inexistente. Fundação Res Publica, a mesma coisa. O que temos hoje é um PS sem estruturas orgânicas especializadas e eficazes capazes de o dinamizar. É um partido que vive do e para o Estado, estando reduzido a partido eleitoral, a mera marca, ainda que prestigiada. E isto é pouco para um partido que se quer de esquerda.

22.

Considero interessante a referência ao sindicalismo e às organizações da sociedade civil num partido cujo corpo orgânico se vem reduzindo drasticamente, dando lugar a esse partido eleitoral (no plano interno, que é cada vez menos competitivo, e no plano externo, para a captação de cargos e de fundos financeiros), e que, ainda por cima, recorre sistematicamente a outsourcing nos períodos eleitorais e cada vez menos às suas “forces propres”. Acresce que, em tempo de permanent campaigning, tem estado clamorosamente ausente do debate público e dos meios de comunicação de massas, por perda de influência (um ou outro que por lá anda serve mais para se promover a si próprio do que para promover o partido e o seu património ético-político e ideal). É necessário, urgente e vital revisitar o próprio conceito de partido, o que não tem sido feito.

23.

De resto, e mais uma vez, um candidato a líder de um grande partido como é o PS não perde tempo (há pouco mais de uma página, em 40) a debruçar-se sobre a organização que vai liderar e governar, num tempo que ele próprio reconhece que está a ser difícil para o partido. Já na anterior campanha para líder acontecera o mesmo, com JLC e com PNS. Não devia ser assim. Não houve tempo, dir-se-á. Mas nunca há tempo. Mesmo assim, diz-se, felizmente, do partido, que é preciso “repensar o seu modelo de organização e modo de funcionamento”, os estatutos e práticas. Sobretudo as práticas. Ou seja, parece estar reconhecido, e bem, que é absolutamente necessário mudar. Mas que não seja para que tudo fique na mesma. Que José Luís Carneiro não seja o Tancredi (de “Il Gattopardo”, de Lampedusa) do PS é o que eu mais lhe desejo. Sendo melhor do que a decadência bourbónica, não será suficiente, pois ele, Tancredi Falconeri, representa, e com o acordo do Príncipe de Salina, o verdadeiro “transformismo”: “se quisermos que fique tudo como está, é necessário que tudo mude”. Dos Bourbon aos Savoia. Mas isto não vai lá com transformismo. Será preciso muito mais, ou seja, mudança efectiva. Sabe-se o que aconteceu aos Savoia a seguir à segunda guerra mundial.

24.

Agora, sim, finalmente, uma observação sobre os deputados.  É sempre útil lembrar que, em democracia representativa, os deputados são livres, não são portadores de mandato imperativo e representam a nação, não o partido que os propôs nem o círculo eleitoral onde foram eleitos. Pelos vistos, há muita gente que não sabe isto e a própria formulação do documento é algo equívoca. A sua consciência, a do deputado, deve sempre ser convocada, e não apenas nas questões de consciência. Presume-se, naturalmente, que os deputados tenham uma robusta formação ético-política em linha com o património ideal e a mundividência política do partido. Certamente, embora  sobre isso haja dúvidas legítimas. Mas é daí que decorrerá o seu comportamento político, a sua acção, o seu inequívoco alinhamento com o respectivo grupo parlamentar. Mas é também por isso que o PS deve ter uma identidade ideal e política muito clara, para que lá dentro não proliferem visões que pouco ou nada têm a ver com o seu património, mas que evidenciam pretensões hegemónicas, e que sejam fonte de desvios para além das fronteiras daquela que é a identidade ideal do partido. Em tempos de perigosa expansão daquela que alguns designam por “síntese identitária” (Yascha Mounk, em A Armadilha Identitária, de 2023, por exemplo), mas que eu prefiro designar por “esquerda identitária dos novos direitos”, mais se justifica uma clarificação ideológica do PS. Parece ser hoje aceite que um dos alimentos preferidos da nova direita radical é precisamente esta esquerda, tendo com isso obtido fartos ganhos eleitorais, até porque na sua retórica acaba sempre, grosseira e indevidamente, mas com segura eficácia, por identificar com ela todo o centro-esquerda.

25.

O PS viveu, nos últimos dois anos, dois momentos complicados devido a acontecimentos que exigiram rápidas decisões ao mais alto nível, ou seja, a designação electiva do líder: em 2023, devido à apressada e, quanto a mim, injustificada saída de António Costa, rumo a Bruxelas; e, agora, devido à hecatombe eleitoral nas recentes eleições legislativas e à saída de Pedro Nuno Santos, culpado de não se ter abstido na moção de confiança, fazendo, exacta e ingenuamente, o que o adversário queria. Na primeira, houve disputa entre dois candidatos à liderança; na segunda, há um só candidato. Dois momentos fulcrais em cerca de ano e meio, com a passagem de uma maioria absoluta para uma inglória terceira posição, em mandatos no parlamento. Algo deveras estranho e que exige uma reflexão muito séria, não só porque se trata de um grande partido democrático e que ocupa um espaço político virtuoso, mas também porque se trata do funcionamento da nossa própria democracia. É algo muito grave, pela rapidez e pelo modo como tudo aconteceu, e já não é possível disfarçar o problema nem atirar, comodamente, responsabilidades para o que mais convier. A verdade é que a direita tem hoje cerca de 70% dos mandatos parlamentares e o PS já é a terceira força política, com menos dois deputados do que o CHEGA (ainda que tenha mais uns votos, cerca de quatro mil e trezentos). Não é algo que possa ser iludido ou contornado, porque, se assim for, o futuro ficará entregue por muito tempo à direita e aos seus próceres, alguns bem conhecidos pelas negociatas que os têm feito engordar. Outros, mais humildes, enquadrados noutro hemisfério político, não se incomodarão por aí além desde que tenham o seu lugar garantido no parlamento ou numa câmara municipal. O resultado é que será o país a perder. E por isso não é saudável ficarmos sentados comodamente num sofá a observar um espectáculo que, afinal, somos todos nós que pagamos, com os impostos. Embora cada vez mais pareça espectáculo, a verdade é que a política não é realmente um espectáculo, pois não só não a financiamos com uns míseros bilhetes, mas sim com uma boa parte do nosso rendimento, como é ela que determina efectivamente as condições em que ocorre a nossa vida. E esta também é a razão que justifica este longo texto de considerações sobre a moção de José Luís Carneiro, o futuro líder de um partido que é também o meu. JAS@06.2025

UMA NOTA

No passado domingo António José Seguro apresentou nas Caldas da Rainha a sua candidatura a Presidente da República, depois de ver uma boa parte do PS, ao nível dos militantes, declarar-lhe apoio. Esteve, depois de ter sido líder do PS durante três anos (2011-2014), longe da política, mas entendeu livremente candidatar-se a um cargo suprapartidário, juntando-se, assim, a Luís Marques Mendes e a Gouveia e Melo. Fica, assim, por agora (e já devia chegar), coberta a área política do centro-esquerda, do centro e do centro-direita. Mas se, por um lado, se confirmar o que dizem as sondagens e, por outro, se se confirmar uma certa saturação política relativa aos partidos do bloco central (bem visível no crescimento dos movimentos não partidários e do CHEGA), o mais certo é que venha a ser Gouveia e Melo o vencedor das eleições presidenciais. Mesmo assim, desejo os maiores sucessos eleitorais a António José Seguro.

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