Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XVII)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“O Desejo”. JAS 2021

O JARDIM

O JARDIM está mais lá no alto do que cá em baixo, na rua, na vida, nos tormentos, porque ele já faz parte do voo do poeta: a pista de descolagem, os perfumes para a libação e a propulsão, as flores para a poética polinização das almas sensíveis – tudo isso está lá, no jardim. No voo, o jardim também vai com o poeta, porque ele está inscrito na sua alma e na sua fantasia. O jardim é voo e é liberdade, nele não acontecem as agruras da vida. Nele, o poeta liberta-se delas. Ou da memória delas. Nele se processa a decantação da vida e da memória. No Jardim, o poeta embriaga-se com o acre perfume do jasmim. Entra em libações e, depois, em levitação. É, sim, um lugar de libações (aromáticas). Depois, acontece o voo propriamente dito, ou seja, o movimento apolíneo. O jardim, que está no vale, também está lá, na montanha. E este é já um terreno de liberdade e de fantasia. Quando o poeta parte, é dali. A partida poética. Como poderia, de outro modo, desenvolver o processo de polinização das almas sem o jardim, sem o pólen que as suas flores lhe fornecem e que ele leva no voo? No pólen vai todo o jardim. Polinização integral. Dali parte e ali regressa. Melhor: parte sem sair de lá. E como poetar sem o loureiro matricial, o do enlace, o que deu uvas no “momento oportuno”? Impossível. Seria como cortar a raiz ao poema. Que é como quem a corta também ao pensamento. E como voar sem o poderoso combustível do jasmim? Não haveria propulsão. Não há poesia sem libações. Ou, ainda, sem esse espanto, sempre recorrente, que a magnólia branca lhe provoca no mês em que começa a primavera, mês propício para a poesia. Magnólia que representa o intervalo entre o inverno e a primavera – flores que são farrapos de neve transfigurada pela primavera que desponta. Um casamento feliz que faz nascer a magnólia branca. Ali nasceu (como poeta), ali vai vivendo e compondo, mesmo quando não está lá, fisicamente. Ali nasceu e ali regressa sempre. É um auspicioso desafio continuar os voos com as palavras de que dispõe para que seja possível continuar a celebração poética dominical. A que permite dar asas à intimidade, sem a ofender. Bem pelo contrário. A intimidade oferece-se ao voo revestida por um fino véu translúcido, não se revelando integralmente, mas deixando ver o perfil.

REFLEXO

O poeta olha para um retrato – poderia ser “O Retrato” (2022), um quadro seu – e entra num monólogo (dialogado, mas sem interacção) sobre a musa e sobre o modo como a vê e como a sente. E tem saudades dos encontros (poéticos e plásticos) na praia da meia-lua, a pequena praia que gosta de visitar e onde imagina/deseja um (re)encontro ao luar. O poeta revive assim as suas fantasias como se elas fossem a outra face da sua vida, depois de a realidade o ter atropelado quando caminhava tranquilamente pela rua do desejo, a que também chama “do desencontro”. E assim vai sobrevivendo em estado de encantamento, o único que não pode ser interrompido por uma vontade alheia ao seu próprio discurso do desejo. O seu é um encantamento puramente interior. Resulta de uma luz que se lhe acende na alma, activada pela memória em certos momentos. “O Retrato” é simplesmente o reflexo transfigurado do que lhe reside na alma e da luz que se lhe acendeu lá dentro.

A FESTA DA SAUDADE

A festa da saudade é festa de vida vivida intensamente. Ter saudades da vida vivida ou, ainda mais, da que se ficou pelo desejo… não cumprido, mas vivido como expectativa. Cantar a saudade é cantar a vida e revivê-la em palavras com o poder de atingir a sensibilidade, a própria e a dos que fruem o canto. E talvez a da musa, não sei.  E isto é poesia. E nisto consiste a sua forte performatividade. Sim, a festa da saudade também é festa da vida, da que ficou registada na memória como acção ou como desejo que não se cumpriu. Ter saudades desse tempo dos desejos intensos… e revivê-los com palavras em modo poético também é viver. Viver, revivendo, convertendo o passado em futuro. Partilhá-lo para que outros o sintam com intensidade equivalente. O desafio da poesia é mesmo esse.

VIAJAR POR DENTRO DO POEMA

Gosto das viagens por dentro dos poemas que habitualmente faz um companheiro de liturgia poética. Elas animam o poema, dão-lhe vida. Neste caso, o leitor não se limita a fruir, entra diretamente no poema, fá-lo seu. É, pois, mais do que leitor e até do que comentador – é parceiro de caminhada. Às vezes, caminhando, interroga o poeta, outras vezes dá-lhe pistas sobre o percurso poético. Não é, pois, uma visão externa do poema, é uma incursão nele. É como entrar no palco durante uma representação em curso. Tornar-se também actor. E isso significa expandir por dentro o próprio poema e as personagens que o povoam. É por isso que eu gosto destas suas habituais incursões pelos poemas, como se eles, uma vez publicados, ficassem um pouco suspensos a aguardar a chegada de um novo personagem da narrativa… para a concluir.

TRANSFIGURAÇÃO ONÍRICA

Os poetas transformam os sonhos em realidade e, depois, partilham-na. Sim, os sonhos fazem parte da vida, são a sua componente onírica. O Calderón de la Barca dizia que “la vida es sueño”, pela boca de Segismundo:

“Yo sueño que estoy aquí, 
destas prisiones cargado; 
y soñé que en otro estado 
más lisonjero me vi. 
¿Qué es la vida? Un frenesí. 
¿Qué es la vida? Una ilusión, 
una sombra, una ficción, 
y el mayor bien es pequeño; 
que toda la vida es sueño, 
y los sueños, sueños son.”

(Calderón de la Barca,La vida 
es sueño, Acto II, Cena XIX)

A poesia torna os sonhos visíveis, trá-los à consciência numa linguagem também ela moderadamente cifrada. Por isso, os poetas são amigos dos sonhos. Poetar é sonhar, é dar forma ao desejo e partilhá-lo, tornando-o, assim, real. A toada e a melodia ajudam à performatividade da poesia, porque são elas que mais directamente atingem a sensibilidade. “Quem não tem real caça com poesia”, dizia, ironicamente, o poeta, glosando o velho ditado. O poeta não o tem, mas tentou (tenta sempre) e deu-se mal. Mas, neste processo, o poeta nunca regressa a si, vindo do real propriamente dito, porque, afinal, ele já reside numa zona especial. Ficou lá desde que lhe aconteceu ser poeta. Mesmo quando sai, nunca abandona essa sua condição. A poesia representa uma espécie de estado intermédio entre o real e a fantasia – tem elementos de ambos. É transfiguração onírica do real ou conversão semântica do sonho. Com a intensidade afectiva ele pode compensar a falta de real, do que se lhe negou ou do pouco que teve. Além disso, o poeta também não está sujeito ao tempo cronológico porque habita um tempo que é passado, presente e futuro. Ou até absoluto: o “kairós”, o instante oportuno. Além disso, o sonho da poesia não é puramente subjectivo e latente: é universal-subjectivo (para usar o conceito de Kant na “Crítica do Juízo”) e manifesto, sendo comunicado com uma linguagem cifrada, parecida, sim, com a do sonho, mas mais descodificável e comunicável. Ele é accionado por um dispositivo que todos têm (intelecto e imaginação), embora em graus diferentes. Por isso, nele, os poetas sentem-se realizados pelo quase ajuste de contas com a realidade que lhes falhou, não importa por culpa de quem. A poesia é a continuação do sonho por outros meios na dialéctica da vida.

ANDORINHAS

É verdade, não foi nada fácil escrever um poema sobre as andorinhas. Mas tinha de ser. Elas andavam mesmo por ali, em torno do ninho em construção. Um poema em torno delas que, por sua vez, andavam em torno do ninho. Talvez o poema tenha sido mais difícil do que a construção do ninho pelas andorinhas, lá no terraço. Elas são obreiras extraordinárias, incansáveis, rápidas e perfeitas. Não acendia a luz (o ninho foi construído sobre ela) e não ia ao terraço para não incomodar. Seguia tudo do outro lado, por dentro. A construção era perfeita. Quando pintei o quadro ilustrativo ainda o ninho ia a meio. Depois, só ficou um buraquinho para elas entrarem. Tal era o cuidado com a segurança e com a temperatura do ambiente em que as crias cresceriam. Uma azáfama. Alguém me disse que talvez o Fernando Pessoa não tenha experimentado essa vivência. Ele era um citadino, é verdade. Não dava pelas andorinhas? Não sei. Mas sei que ele as invocava:

“Andorinha que vais alta, 
 Porque não me vens trazer  
Qualquer coisa que me falta  
E que te não sei dizer?”

(Fernando Pessoa em Quadras 
ao Gosto Popular)

Vivia a cidade como um estrangeiro que nunca sai da sua própria terra, mesmo quando visita outras? Talvez. Era como se elas fossem galerias de arte? Sim, pelo menos para o Bernardo Soares. Visitava a vida como quem visita uma galeria de arte. O seu era, pois, outro mundo e ele observava a cidade desde fora, como se observa um quadro, uma pintura. E a natureza também. Mas havia o outro, o Guardador de Rebanhos, diferente. O Alberto Caeiro. Tenho a vaga ideia de que esse talvez desse conta das andorinhas. Talvez. Mas ainda hei-de explorar com mais atenção esse terreno habitado pelo Caeiro, com o olhar sempre atento nas andorinhas. Entretanto, não resisti e sobrevoei-lhe a Obra Completa (Lisboa, Tinta-da-China, 2016) à procura das andorinhas e não as encontrei. Mas uma coisa é certa, ele gostava das aves:

“a ave passa e esquece, 
e assim deve ser”; 
(...)
“passa, ave, passa, 
e ensina-me a passar” 

(Alberto Caeiro, em O Guardador 
de Rebanhos, XLIII).

Será isso que lhe falta, ao Pessoa? Aprender, com as aves, a esquecer?

O NINHO

Foi uma surpresa, o ninho. E onde elas o foram construir! E a perfeição! E a azáfama! E a argamassa e, depois, os restos no chão do terraço, talvez de um “colchão” em construção, onde deitar as crias! A vida em construção. Podia lá eu passar por isto sem escrever um poema e pintar um quadro? Impossível. E não foi fácil, ainda que tenha uma poética ou um modelo que ajuda sempre. Uma semana a observar, a escrever e a pintar. E feliz por ver o renascer da natureza e a sua própria inteligência em acção. O ninho é perfeito, belo. Mas no jardim há mais ninhos. No loureiro, esse mágico arbusto cantado também pelo Hölderlin, Der Lorbeer:

“Agradeço-te! Da desconversa da gente
Me salvaste, confidente solidão!
Para que eu cante o loureiro, 
ardentemente, /
A quem já entreguei meu coração.” 

(Hölderlin, Todos os Poemas, 
Porto, Assírio & Alvim, 2021, p. 73).

O loureiro é um autêntico parque de campismo, com as tendas montadas enquanto a vida não se autonomiza e parte em voo. É por isso que não o podarei nos próximos dias. Também encontrei um intenso aroma de jasmim. Quase embriagava. À noite era mais intenso. E o Jardim é uma “selva”, mas toda ela bem ordenada e cuidada pela Teresina. Flores, arbustos, latada, relva. Pequeno, mas intenso. E o loureiro, que está enorme e que vou ter mesmo de podar, embora não já, devido aos ninhos. Haverá queixas, quando o fizer, mas tem de ser. Já pedi ao meu Amigo Caldinho para o fazer. Entretanto, vou pouco ao terraço para não incomodar e preocupar as andorinhas. Não tarda, a passarada partirá lá para o alto, do terraço e do loureiro, deixando as casas abandonadas. Se pudesse alugava-as a outros pássaros. Preço? Uns chilreios e autorização para poder ir ao terraço e subir ao loureiro as vezes que eu quisesse. Não seria pedir muito. Mas não sei qual seria a reacção das andorinhas e dos outros pássaros se passassem por ali, de novo, e vissem as casas (ou as tendas) ocupadas. Não iam gostar e até poderia vir a ter um processo no tribunal da passarada.  E a ter de responder em verso com rima. Não sei ainda o que farei quando entregarem as casas ou as tendas. Na verdade, os ninhos das andorinhas são mais casas (porque são feitos de argamassa) do que os ninhos do loureiro, que são mais tendas (porque são feitos de palhuço). Mas logo vejo o que farei.

ESTAR SEMPRE DE PARTIDA

As andorinhas em permanente migração, a leveza do voo, a beleza – a olhar para elas também nós sentimos essa leveza e partimos com a imaginação. O poeta também está sempre de partida e procura a leveza das andorinhas para poder voar. Os poetas são como as aves migratórias.

EM BUSCA DO ABSOLUTO

O poeta tem muito de andorinha. Anda sempre a fazer ninhos. E voa e esvoaça. E migra para Neverland. Vai lá ao passado tanto como ao futuro, sem sair de onde está. A sua argamassa são as palavras. Com elas constrói ninhos e desova, chocando-as para criar vida. Nos ninhos poéticos que vai construindo. E cada ninho pode mesmo valer como se não houvesse mais, sobretudo quando tenta pôr todo o mundo e toda a vida num só poema, num só ninho. Coisa recorrente. Em busca do absoluto. No acto da criação não há mais, só ele e o seu mundo. Só ele e o seu ninho. A poesia tem algo de absoluto. É como o tempo (na poesia), comprime-o no instante criativo. “Kairós” ou mesmo “eksaíphnês”, tempo oportuno ou raio temporal instantâneo que atravessa a fantasia do poeta e o põe em êxtase (poético). Instante criativo que esgota o tempo e o mundo. Durante uma semana nada mais vi e senti do que andorinhas. O mundo era, todo ele, um ninho de andorinhas que chocavam palavras para a criação de poemas para o voo, com o vento que haveria de passar. Os poemas têm de voar para terem vida. Os poemas são como as andorinhas. JAS@06-2025

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